iNFRADebate: Marco Legal das Garantias e os Projetos de Infraestrutura

Alberto Faro*, José Virgílio Lopes Enei** e João Pedro Martinelli de Gouvêa***

Sancionada em 30 de outubro, a Lei 14.711/2023, mais conhecida como “Marco Legal das Garantias”, busca aprimorar o regime de garantias no Brasil. Ao longo dos últimos meses, o Congresso Nacional discutiu o Projeto de Lei 4.188/2021, com o objetivo de inovar e trazer mudanças significativas para o mercado em geral — principalmente no que diz respeito ao barateamento do custo operacional da captação de crédito, à flexibilização de instrumentos já amplamente utilizados e o incentivo ao desenvolvimento de novas operações financeiras.

As garantias são fundamentais para contribuir para a maior disponibilidade de crédito. E, consequentemente, a atualização de seus dispositivos e a solução de controvérsias jurídicas tem impacto direto no barateamento de operações dessa natureza.

Nesse sentido, levando em consideração o cenário de financiamento de projetos no Brasil e os mecanismos de financiamento doméstico, destacamos alguns pontos abordados pela Lei 14.711/2023 que impactarão mais diretamente a forma de se estruturar operações de dívida e a construção dos pacotes de garantia no âmbito do project finance.

Aprimoramentos aos institutos da alienação fiduciária e hipoteca
A Lei 14.711/2023 introduz uma série de aprimoramentos aos institutos de garantia da alienação fiduciária e hipoteca, promulgando dispositivos que resolvem discussões antigas e reformulam redações pouco precisas.

A primeira alteração, ao instituto da alienação fiduciária, resolve discussão antiga sobre a quitação de dívida na hipótese em que, no segundo leilão, não haja lance que cubra o valor da dívida: a nova redação não deixa dúvidas de que o devedor permanece obrigado pelo montante devido não coberto pela venda do imóvel.

A Lei 14.711/2023 estipula exceção caso a alienação fiduciária garanta financiamento para aquisição ou construção de imóvel residencial do devedor, conjuntura na qual, mesmo que o segundo leilão não atinja valor que atenda ao valor referencial mínimo, a dívida será considerada extinta.

Essa mudança implementa dois regimes de execução distintos da alienação fiduciária de imóvel em garantia: (i) para o mercado de financiamentos residências para pessoas físicas, promovendo maior proteção ao financiado e (ii) outra para um mercado de crédito mais amplo, no qual a manutenção da dívida após falha do segundo leilão constitui uma proteção relevante ao credor, reduzindo o risco do crédito.

Ainda, a Lei 14.711/2023 também introduz expressamente a possibilidade de extensão da alienação fiduciária para garantir novas obrigações de crédito, hipótese na qual a mesma propriedade fiduciária passa também a garantir as novas obrigações contraídas. A extensão é condicionada à manutenção do mesmo credor das obrigações já previamente garantidas e à sua realização dentro do âmbito do Sistema Financeiro Nacional.

Nessa esteira, a Lei 14.711/2023 também tipifica a alienação fiduciária de imóvel sucessiva. Segundo o regramento, o fiduciante pode constituir novas propriedades fiduciárias sobre bem já gravado, com sua eficácia condicionada à extinção da anterior.

Outra alteração positivada pela Lei 14.711/2023 é a previsão de execução extrajudicial para hipoteca. Anteriormente, a execução hipotecária teria que, necessariamente, passar por processo judicial, sujeitando-se à morosidade e tornando o processo de execução possivelmente ineficiente.

Com as mudanças, vencida a dívida, o registro de imóveis, a requerimento do credor, intima o devedor para purgação da moral no prazo de quinze dias. Não purgada a mora, procede-se para o leilão público do imóvel.

O regramento acerca da execução extrajudicial hipotecária também prevê que, caso o segundo leilão não providencie os recursos suficientes para quitação da dívida, o credor pode (i) apropriar-se do imóvel ou (ii) realizar a venda direta do imóvel a terceiro, constituído mandato legal para representar o garantidor hipotecário, com plenos poderes sobre o imóvel objeto da hipoteca.

As alterações tornam o instituto da hipoteca mais atraente, ao diminuir a exposição do credor aos riscos inerentes ao processo judicial e tornando a recuperação do crédito mais célere.

Por fim, Lei 14.711/2023 também apresenta um capítulo específico sobre a execução extrajudicial imobiliária em concurso de credores, alteração necessária posta a introdução da extensibilidade da alienação fiduciária e da execução extrajudicial hipotecária.

Para facilitar a visualização, relacionamos sinteticamente na tabela abaixo as principais mudanças nos institutos da alienação fiduciária e hipoteca:

TemaMarco atualNovo marco
Hipóteses de quitação por frustração do leilãoDiscussão quanto à preservação da dívida caso a alienação não seja suficiente para quitar o valor totalAfirmação expressa da preservação da dívida em favor do credor
Extensão da alienação fiduciáriaSem previsão da extensão da alienação fiduciária para novas dívidasPrevisão expressa da extensão da alienação fiduciária, permitindo que a mesma garantia seja utilizada para assegurar novas dívidas do mesmo credor
Alienações fiduciárias de segundo grauSem regulação específicaAlienação fiduciária em segundo grau tem tratamento específico, aumentando a segurança do instituto
Execução extrajudicial de hipotecaHipoteca deveria ser obrigatoriamente executada pela via judicial, mais morosa e arriscadaPrevisão de execução extrajudicial da hipoteca, processo mais célere
Execução extrajudicial imobiliária em concurso de credoresNão havia previsão específica para a execução extrajudicial em concurso de credoresPrevisão específica da modalidade provê segurança jurídica e previsibilidade ao processo

Contrato de administração fiduciária de garantais
A Lei 14.711/2023 também regula a figura do agente de garantias, conferindo ao instituto a segurança jurídica necessária para seu aperfeiçoamento. O agente de garantias poderá realizar o registro do gravame, gerenciar bens e executar judicial ou extrajudicialmente a garantia. Também estabelece expressamente o dever fiduciário do agente de garantias em relação aos credores.

Outro aperfeiçoamento, em linha com o caráter fiduciário do serviço prestado pelo agente de garantia, é a constituição de patrimônio separado para alocação dos produtos da realização da garantia, ainda não entregue aos credores. A medida blinda os recursos de execução direcionada ao agente de garantia.

Anteriormente à regulação, não era claro qual disciplina legal seria aplicada ao papel dos agentes de garantia, pois diversos institutos poderiam englobar a figura do agente de garantias. Com a efetivação das mudanças, o instrumento conta com disciplina legal clara e específica, corrigindo algumas problemáticas e tornando-o mais atrativo e seguro, principalmente no contexto do project finance.

Abaixo, síntese visual dos pontos principais introduzidos pela Lei 14.711/2023 em relação ao contrato de administração fiduciária de garantias:

TemaMarco atualNovo marco
Agente de garantiasRisco do agente agir em interesse próprio, em detrimento do credorDefine expressamente que o agente deve agir em prol dos interesses do credor
Segurança jurídicaSem previsão legal específica, imprevisibilidade do regulamento aplicávelRegras específicas e claras, maior previsibilidade e segurança jurídica
Substituição do agente de garantiasSem previsão legal sobre a substituição do agente de garantiasPrevisão expressa do procedimento de substituição
Vulnerabilidade das garantiasOs recursos advindos das garantias ficavam sob a propriedade do agente de garantias, deixando-os vulneráveis à execução do agente de garantiasOs recursos agora são alocados em patrimônio separado, blindando-os das hipóteses de falência/recuperação judicial do agente de garantias
Prazo distribuição dos proventos das garantiasAgente de garantias não tinha prazo legal para distribuir os proventos das garantias aos credoresInstituído prazo máximo de dez dias para distribuição dos proventos das garantias

Mudanças no regime das debêntures
Além disso, o procedimento de emissão de debêntures será simplificado, tendo em vista a inclusão de novos dispositivos na Lei 6.404/1976, a LSA (Lei da Sociedade por Ações). Os novos dispositivos preveem, por exemplo, a dispensa ao registro da escritura de emissão em junta comercial e a aprovação da emissão de debêntures não conversíveis pelo conselho de administração ou diretoria tanto de companhias abertas quanto fechadas.

Outra mudança atinente às debêntures, a Lei 14.711/2023 inclui expressamente a previsão do coupon stripping na LSA, a ser regulado pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários). O instituto é processo financeiro através do qual os cupons de juros de um título são separados do principal, resultando na criação de títulos separados: um que representa os pagamentos de juros e outro que representa o pagamento do principal no vencimento.

Esses títulos podem ser comprados e vendidos independentemente e são usados para atender a diferentes necessidades de investimento, promovendo mais flexibilidade ao emissor.

A Lei 14.711/2023 também prevê a possibilidade de a CVM autorizar a redução do quórum para convocação da assembleia de debenturistas previsto no parágrafo 5º, do art. 71, da LSA, na hipótese em que a propriedade das debêntures estiver pulverizada e dispersa no mercado.

Essa medida evita a protelação de decisões relevantes por falha reiterada em convocar a assembleia, constituindo aperfeiçoamento relevante ao instituto das debêntures. Vale destacar que que a deliberação com quórum reduzido somente poderá ser adotada em terceira convocação.

Abaixo, síntese visual das mudanças introduzidas pela Lei 14.711/2023 no regime das debêntures:

TemaMarco AtualNovo Marco
Obrigatoriedade do registro da escritura de emissãoNecessidade de registro da escritura em junta, processo que leva de uma a duas semanasNão é mais necessário o registro da escritura em junta*
Votos mínimos para alteração das condições das debênturesPara qualquer alteração nas condições das debêntures, necessário votos equivalentes à, no mínimo, 50% das debêntures em circulaçãoPossibilidade de redução de quórum, a partir da 3ª convocação, agilizando o processo decisório
Órgãos competentes para deliberar sobre a emissão de debênturesApenas o Conselho de Administração ou Assembleia Geral poderiam deliberar sobre a emissão de debênturesO Conselho de Administração e a diretoria de companhias fechadas ou abertas podem deliberar sobre a emissão
Realização de coupon strippingInexistência de previsão legal sobre coupon strippingPrevisão do instituto do coupon stripping, permitindo maior flexibilidade aos emissores de debêntures*
*Matérias aguardando regulação específica da CVM

Conclusão
Em tempos marcados pelos juros altos, o Marco Legal das Garantias surge em um momento bastante propício, encontrando um contexto em que o Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) irá impulsionar ainda mais os projetos de infraestrutura, os financiamentos via fundos constitucionais continuarão sendo um pilar sólido para as empresas de energia renovável e o mercado de capitais ganhará cada vez mais tração com os cortes – ainda que graduais – promovidos pelo Banco Central na Taxa Selic. O aperfeiçoamento das regras e procedimentos das garantias, portanto, é fundamental para criar uma base de sustentação para a grande possibilidade de investimentos que virá, e gerar um ambiente com maior segurança jurídica e, consequentemente, com despesas operacionais menos custosas e mais atraentes aos investidores.

*Alberto Faro é sócio da área de infraestrutura do Machado Meyer Advogados formado pela Universidade da Pensilvânia e pela EDESP-FGV (Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas).
**José Virgílio Lopes Enei é head (coordenador) da área de Infraestrutura, Energia e Financiamento de Projetos do Machado Meyer Advogados, mestre em direito comercial e doutor em direito administrativo pela USP (Universidade de São Paulo).
***João Pedro Martinelli de Gouvêa é advogado da área de infraestrutura do Machado Meyer Advogados, com atuação em financiamento de projetos no âmbito da estruturação jurídica de operações no mercado financeiro e de capitais..
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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