iNFRADebate: O sistema elétrico evolui, mas as leis da física são as mesmas

Xisto Vieira Filho*, Hermes J. Chipp** e João Carlos Mello***

Um fenômeno interessante para observar é como as opiniões e modas vão passando com o tempo. Nas décadas de 60 e 70, os hits musicais no Brasil eram a Bossa Nova e o rock. Atualmente, é o sertanejo, o funk e o piseiro (o que quer que seja esse ritmo). As roupas masculinas eram calças de boca larga, atualmente são de boca bem fina. A mudança ocorreu também no setor elétrico. 

Na década de 70, a moda foi referente às hidrelétricas, que, realmente, trouxeram e trazem grandes benefícios ao sistema elétrico brasileiro. Mas, como dependem de chuvas, algumas UTEs (usinas termelétricas) foram adicionadas para assegurar que, em períodos secos, o país pudesse ficar livre do racionamento. E, já neste período, havia alguns “pensadores setoriais” que criticavam a introdução dessas térmicas, sob o argumento que elas poderiam resultar em vertimento do reservatório das hidrelétricas em períodos chuvosos.

Recentemente, os setores elétricos em todo o mundo lançaram a “moda verde”, com objetivo, muito importante, de minimizar o aquecimento global. E é por isso que hoje o planeta fala, discute e atua em prol da transição energética. Exatamente por sua importância, essa transição precisa ser bem pensada e planejada. Em alguns países, as transições dos sistemas elétricos devem ocorrer com maior intensidade – e velocidade – e, em outros, nem tanto. 

Por exemplo, um sistema que tenha uma matriz elétrica com 80% de termelétricas e 20% de RENs (fontes renováveis) está realmente contribuindo de forma significativa para o aquecimento global, e deve procurar aumentar, fortemente, o montante de RENs em sua matriz. Essa mudança deve ser feita de forma acelerada, porque o montante de térmicas remanescentes garante a segurança do sistema.

Como se sabe, as RENs são fontes excelentes em termos ambientais, mas não reforçam a segurança dos sistemas elétricos. Isto porque são intermitentes e não dispõem de mecanismos de auxílio à referida segurança e à resiliência dos sistemas. Então, o ideal nesta fase de transição, é aumentar o número de RENs, mantendo o devido suporte das UTEs. 

No caso do Brasil, a situação é bem diferente: temos 83% de fontes renováveis e 17% de UTEs. O mais importante é que o nosso sistema ainda é predominantemente hidrelétrico (63%), e a grande maioria das UTEs é de usinas flexíveis, só despachadas quando são mais baratas do que o “custo equivalente da água”. Nunca é demais lembrar que o setor elétrico brasileiro só é responsável por 2% do total de emissões de GEE (Gases de Efeito Estufa) do país.

Dito tudo isto, vamos agora aos fatos que ocorrem no nosso sistema elétrico:

(i) Tomados pela “moda verde” que chegou ao mundo, a maioria das entidades e os ditos “pensadores” que militam ou opinam no setor elétrico passaram a “demonizar” as UTEs, mesmo as menos poluentes, como se essas usinas não tivessem salvado o sistema, em várias ocasiões, de potenciais racionamentos (como em 2021 e 2014) e blecautes;

(ii) Como se sabe, uma expansão otimizada do sistema elétrico envolve três fatores: preço, segurança e meio ambiente, aplicados em suas devidas proporções a depender das características da matriz elétrica;

(iii) Em nosso país, os ditos “especialistas” olham o planejamento e sugerem tomar uma decisão “sui generis”: fazer uma expansão sem UTEs, mas com segurança a qualquer preço. Legal essa decisão, mas como fazer isto? É mais ou menos impossível cobrir todas as situações. Mas é o que está no plano de expansão e o que vem sendo defendido nas “bocas opiniáticas” de alguns “especialistas” e “pensadores setoriais”;

(iv) No Brasil, além das UTEs, temos as hidrelétricas que são realmente a grande “bateria” do sistema com seus reservatórios. Acontece que, sem o suporte da “firmeza” no atendimento oferecida pelas UTEs, as hidrelétricas ficam à mercê da hidrologia e acontece o que vimos em 2021. 

Os “pensadores” falam que o regime de chuvas de 2021 foi um evento isolado e hoje estamos muito bem. Mas esquecem de dizer que, desde 2012, a hidrologia está muito abaixo das metas. O MME (Ministério de Minas e Energia) estuda, inclusive, mudar o “período crítico” para cálculo da garantia física das hidrelétricas: do famoso 1949-56 para o período  mais recente. Pelo jeito, a “ficha caiu” para a União, o poder concedente. Então, o “devaneio” de descomissionar todas as térmicas nas próximas décadas parece apenas um exercício teórico sem nenhum embasamento técnico.

Não é demais repetir: a transição energética competente tem que ser realizada com segurança, resiliência, custos mínimos e bom senso para alcançar as melhores soluções;

(v) Trocando em miúdos: como o objetivo é eliminar UTEs a qualquer preço, os ditos “especialistas” sugerem efetuar um planejamento tal que, para poder elevar bastante o nível de penetração de RENs sem adição de UTEs, há a necessidade de adicionar um número muito elevado de linhas de transmissão de extra alta tensão. Isso sem falar em instalar novos troncos de corrente contínua e um número espetacular de compensadores síncronos, máquinas com rotores possantes, dotados de inércia, mas que geram somente potência reativa. 

Esta rota implica em definir o que fazer em casos  de intermitências de porte, que levam ao desligamento de várias linhas de transmissão para controle da tensão (ué, e a confiabilidade?), ou colocar uma “penca” de reatores. Essa decisão vai gerar uma grande complexidade para o ONS (Operador Nacional do Sistemas Elétrico). Em resumo, o controle do SIN (Sistema Interligados Nacional) ficará extraordinariamente difícil para o ONS, com possibilidade aumentada de problemas no atendimento;

(vi) De fato, pela lógica desses especialistas, o que teremos é um sistema excepcionalmente caro – com bilhões de reais gastos em transmissão, compensadores síncronos e reatores bancados pelos consumidores – e nem assim estaremos cobrindo todo e qualquer risco. É isso que queremos? Pelo amor de Deus, essa “demonização” não pode continuar;

(vii) Não menos surpreendente ainda é ver instituições que dizem representar os consumidores – principalmente os cativos – aprovarem essa expansão caríssima. Será que os consumidores que eles representam estão de acordo com tais absurdos? A maioria deles não deve nem saber que existem esses organismos e fundações falando em seu nome.

É claro que as UTEs também estão na “onda verde”. As usinas estão se modernizando, com maior eficiência, menor nível de emissão, melhores requisitos de manutenção, entre outros aperfeiçoamentos. E, até 2030, muito possivelmente, teremos UTEs movidas a hidrogênio verde (H2V) com os custos dos eletrolisadores já bastante competitivos. 

Nos EUA, já temos UTEs operando com 10% de H2V e 90% de gás. Em 2030, vão chegar a 100% de H2V. Na Holanda, uma planta de 1.000 MW opera com 10% de H2V e 90% de gás, com eficiência de cerca de 67%. O eletrolisador é suprido por eólicas offshore, que têm fatores de capacidade mais elevados. Isso sem contar com os avanços na captura de carbono (CCS) que estão tecnologicamente bastante desenvolvidos para diminuir a emissão das UTEs.

Essas experiências mostram que uma matriz ótima é resultado da parceria entre UTEs e RENs, com cada fonte contribuindo com seus atributos. Ao contrário do que pensam os “demonizadores” das térmicas, não é “nós contra eles”, é “nós e, principalmente, eles”. 

Só assim teremos o trinômio preço, meio ambiente e segurança plenamente atendido, reduzindo as incertezas enormes que a operação do sistema terá que conviver.

Portanto, prezados “pensadores”, muito cuidado quando induzirem a um planejamento como vem sendo preconizado. As UTEs estão caminhando rumo à descarbonização e realmente têm capacidade de permitir o aumento de RENs, de forma segura e econômica, garantindo uma matriz mais robusta. É um jogo de “ganha-ganha” que vai culminar em um SIN mais forte, resiliente e com baixas emissões.

Está na hora de pacificar o setor elétrico e acabar com essa guerra de “narrativas”, que busca neutralizar as decisões mais racionais. Afinal de contas, as modas podem até mudar, mas as leis básicas da eletricidade ainda persistem, tais como sincronismo e controlabilidade das principais variáveis, ou seja, tensão e frequência.

E, por fim, se o que está sendo preconizado for realmente vigorar, nós defendemos que os seus “pensadores”, ideólogos e planejadores sejam nomeados para operar este complexo sistema resultante. Só assim seria possível verificar o que acontece na prática, e não em devaneios tecnológicos.

*Xisto Vieira Filho é presidente da Abraget (Associação Brasileira de Geradoras Termelétricas).
**Hermes J. Chipp é consultor da Abraget.
***João Carlos Mello é presidente da Thymos Energia e consultor da Abraget.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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