Angelino Caputo*
Os antigos já diziam, contra fatos não há argumentos. E na licitação do STS10 no Porto de Santos, será que isso mudou? A disputa pelo novo terminal para movimentação de contêineres tem como pano de fundo a possibilidade de hegemonia comercial nesse importante mercado por grupos econômicos liderados pelos armadores.
Essas empresas globais, abusando de seu poder exclusivo de escolha sobre onde os navios de sua propriedade irão atracar, podem, em sendo proprietárias também de grandes terminais portuários, fechar o mercado para terminais independentes na movimentação dessas cargas e para recintos retroportuários, no armazenamento.
Essa política anticoncorrencial independe das condições de preço e eficiência dos terminais independentes, de forma que ela somente pode ser contida limitando-se o tamanho físico dos terminais vinculados aos armadores. Assim haverá uma distribuição mais justa das cargas entre todos os terminais e recintos existentes, o que, a longo prazo, garante a concorrência nesse mercado e o direito de escolha por parte dos importadores e exportadores que usam o porto.
Muito importante lembrar aqui. Não estamos criticando a verticalização da operação, que é uma das boas alternativas logísticas disponíveis atualmente no mercado. Se a verticalização ocorresse em ambiente concorrencial justo, ou seja, se o navio escolhesse o terminal que lhe cobrasse o menor custo ou lhe oferecesse a melhor eficiência para operar suas cargas, não haveria problema que alguns desses terminais fossem de sua propriedade.
Mas não é o que já acontece hoje. O terminal de propriedade dos armadores em Santos recebe muito mais atracações de navios de longo curso do que os terminais independentes e cobra dos navios pelo menos o dobro do que os armadores pagam para seus concorrentes carregarem e descarregarem os contêineres. E só não movimenta e armazena mais cargas porque não tem mais espaço físico, o que pode mudar completamente caso possa vencer a licitação do STS10. Esse efeito será o mesmo no caso de vitória do terminal portuário verticalizado ou de qualquer empresa ligada aos armadores proprietários desse terminal, seja de forma individual seja participando de consórcios.
O abuso de posição dominante por parte dos armadores, por meio de suas condutas artificiais e anticoncorrenciais de autopreferência (self-preferencing) em detrimento dos terminais independentes, se não limitado, pode resultar no fechamento dos concorrentes, que não faturariam o suficiente para honrarem seus compromissos financeiros. Assim, os arranjos verticalizados passariam a ter condições de praticarem o preço que quisessem para os consumidores finais quando estiverem sozinhos no mercado, o que deve ser impedido pelos órgãos de defesa da concorrência e balizado nas condições concorrenciais previstas nos editais de arrendamento do porto organizado.
Como é um tema polêmico e complexo de ser entendido pela maioria das pessoas, é normal que muita gente entre no debate de forma despreparada, sem conhecer os números e as provas empíricas das condutas nocivas de self-preferencing, misturando conceitos (às vezes de forma intencional) sobre a operação verticalizada praticada pelos próprios donos das cargas na busca de eficiência em suas respectivas cadeias logísticas (granéis vegetais, minérios, celulose etc.) com a aquela praticada pelo transportador, que pode deixar os donos das cargas reféns de sua operação.
Para facilitar o entendimento do que estamos defendendo, apresentamos a seguir uma série de argumentos utilizados por quem não conhece ou quer confundir o aspecto concorrencial envolvido na licitação do STS10 e os fatos comprovados pelos estudos técnicos realizados recentemente pela Abtra (Associação Brasileira de Terminais e Recintos Alfandegados) e anexados na consulta pública do edital para arrendamento desse terminal.
- Argumentos – A EPL (Empresa de Planejamento e Logística), competentíssima empresa estruturadora de projetos de infraestrutura, juntamente com a ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) e a SNPTA (Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários) concluíram que a metodologia e a jurisprudência do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), relativas à competição no mercado portuário brasileiro, não refletem bem a realidade do setor. Por isso, decidiram desenvolver um guia próprio, com parâmetros que “seriam mais adequados” do que aqueles consagrados pelo órgão máximo do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para aplicá-lo na análise concorrencial do STS10.
- Fatos – O edital para licitação do STS10 teve por base uma análise concorrencial desenvolvida a partir do Guia AIC-TP – Guia Para Análise de Impacto Concorrencial Para Novas Outorgas de Terminais Portuários. Por enquanto ele é apenas uma “minuta”, não representando um documento oficial do ordenamento jurídico e normativo brasileiro, assim como é o Guia H – Guia Análise de Atos de Concentração Horizontal, documento oficial da autoridade antitruste brasileira, o Cade. A utilização do Guia AIC-TP para a realização da análise concorrencial do edital do STS10 resultou em diversas imperfeições e em restrições insuficientes à participação no certame, de forma que não estão impedidas de participar da licitação certas empresas ligadas aos armadores.
- Argumentos – “Um armador verticalmente integrado geralmente não é capaz de desviar carga transportada para terminais sob seu controle, e possivelmente não tem interesse em fazê-lo.” – Afirmação da Maersk no âmbito do Ato de Concentração nº 08700.002350/2017-81 (Requerentes: Maersk Line A/S e Hamburg Südamerikanische Dampfschifffahrts-Gesellschaft KG), doc. SEI nº 0388639, p. 35; “Para a seleção do terminal, o preço e a localização são os principais critérios adotados pelas transportadoras marítimas para escolha dos terminais de contêineres.” – Afirmação da MSC no âmbito do Ato de Concentração nº 08700.002724/2020-64 (Requerentes: Maersk Line A/S e MSC Mediterranean Shipping Company S.A.), doc. SEI nº 0802265, p. 4.
- Fatos – Desde a inauguração do Terminal BTP em Santos, de propriedade de uma joint venture formada pela TIL/MSC e APMT/Maersk, os armadores MSC e Maersk vêm praticando a conduta de self-preferencing, ou seja, esses dois armadores atracam preferencialmente seus navios no terminal BTP, independentemente dos preços cobrados por esse terminal para o carregamento e descarregamento dos navios, serviços conhecidos como Box Rate. Tomando-se como base a série histórica de atracações de navios de contêineres da MSC e da Maersk entre 2014 e 2021 no Porto de Santos, comprova-se que os navios de longo curso atracam 2,4 vezes mais (140%) no terminal BTP do que nos terminais independentes. Por outro lado, os navios de cabotagem desses dois armadores atracam 80% mais nos terminais independentes do que no terminal BTP, já que executam serviços de menor valor agregado para o terminal, comprovando que, além de direcionar as atracações para seu terminal verticalizado, os armadores, tendo que escolher entre os de longo curso e os de cabotagem, privilegiam também seu próprio terminal com os mais rentáveis, ou seja, é self-preferencing na quantidade e na qualidade.
- Argumentos – “Eu não entendo muito bem esse conceito de self-preferencing. Porque, para mim, me parece óbvio, se eu caso com uma pessoa, eu vou dar preferência a ela. Não tem porque ser diferente” (Afirmação do diretor-executivo da Centronave, no evento “Diálogo Público – Análise Concorrencial no Setor Portuário”, realizado no último dia 26 de maio de 2022, pelo TCU. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5Lk8y8o3J6E&t=2628s).
- Fatos – Analisando-se os indicadores de eficiência oficiais da ANTAQ entre 2015 e 2021 para os terminais de contêineres do Porto de Santos, quais sejam, prancha média geral e operacional e tempo médio de atracação de navios, comprova-se que o terminal BTP não é o mais eficiente. No entanto, como já demonstrado, é o que recebe a maior parte das atracações de seus controladores, limitadas apenas pelo tamanho físico atual do terminal. Além disso, conforme alegado pela própria BTP no processo ANTAQ 50300.007808/2019-20, que analisou o EVTEA do terminal, por força de um acordo de acionistas (documento SEI nº 0748537) entre o terminal BTP e seus controladores TIL/MSC e APMT/Maersk, os acionistas da BTP impuseram obrigações de volumes e preços às companhias de navegação coligadas com a finalidade de garantir receitas ao arrendatário até 2023. Por esse acordo, os preços remunerados pelos armadores coligados são duas a três vezes superiores à média praticada no Porto de Santos.
- Argumentos – “Não precisamos de vacina antecipada, conhecemos o remédio para coibir eventuais práticas anticoncorrenciais. Temos mecanismos regulatórios eficientes para controlar a concorrência pós-leilão”. (Afirmação de Bruno Pinheiro, gerente de regulação da ANTAQ, defendendo a participação de armadores no leilão do STS10, no evento “Diálogo Público – Análise Concorrencial no Setor Portuário”, realizado no último dia 26 de maio de 2022, pelo TCU). De forma geral e sem se aprofundarem muito nas questões concorrenciais pós-leilão, os órgãos de governo trabalham para priorizar a concorrência da licitação na B3. Por isso, tentam evitar ao máximo limitar a participação de empresas no certame, o que certamente é uma boa estratégia para se maximizar a arrecadação de outorga.
- Fatos – A conduta de self-preferencing já é uma realidade hoje, conforme foi provado pelos estudos realizados pela Abtra e não é coibida pela ANTAQ. A Abtra não está insinuando isso, está provando. Esses estudos estão à disposição de qualquer pessoa no site da Abtra, em https://www.abtra.org.br/documentos-abtra-consulta-publica-sts-10.
Entendemos que é muito difícil regular o armador, que, como cliente dos terminais do porto, escolhe atracar onde quiser e até pagar mais pelo serviço que recebe. Já o dono da carga conteinerizada não escolhe o terminal onde ela será movimentada. De novo, a escolha é do armador. A Abtra está tentando manter o ambiente concorrencial saudável na movimentação de contêineres no Porto de Santos.
O centro da discussão não é a verticalização na operação em si, sua tendência mundial e como isso aumenta a eficiência para o cliente final do porto, como se tenta desviar frequentemente o foco desse debate. A questão a ser enfrentada é a conduta anticoncorrencial de self-preferencing, que no caso em questão só pode ser praticada por arranjos verticalizados.
No longo prazo, com a quebra dos terminais independentes, teríamos uma situação monopolista, ou no mínimo oligopolista, que deve ser reprimida pelos órgãos de defesa da concorrência, como ocorre em qualquer outro setor da economia e em todas as nações civilizadas do planeta. No caso do STS10, a vacina é a restrição antecipada à participação na licitação do arranjo verticalizado TIL/MSC, APMT/Maersk e BTP, juntos ou separados.