Adalberto Vasconcelos*
O setor de infraestrutura de transporte passa por um momento sem precedentes na história do país, marcado pela expressiva quantidade de pedidos de devolução amigável de contratos de concessões aeroportuárias e rodoviárias, em decorrência da impossibilidade de adimplir com as obrigações contratuais ou financeiras assumidas. Até o momento, foram apresentados seis pedidos de relicitação de concessões rodoviárias, três de concessões aeroportuárias e um de concessão ferroviária, com a perspectiva de ampliação desses números.
Esse movimento requer, por certo, ampla e cautelosa reflexão, para compreender, afinal, o que levou esses contratos à condição de inviabilidade e, assim, evitar que novos ajustes se encaminhem para esse mesmo desfecho.
Com efeito, em sua grande maioria, esses contratos começaram a ser estruturados a partir de 2011 e apresentam, em certa medida, premissas econômicas e de políticas públicas comuns1.
O cenário econômico à época ainda se mostrava bastante otimista, tendo o Brasil assumido a sexta posição no ranking das maiores economias do mundo. No entanto, a infraestrutura de transportes, como sempre, era considerada grande limitador do crescimento econômico do país, além de ser percebida como gargalo à realização de dois grandes eventos mundiais – a Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas, em 2016 – cujas logísticas colocavam forte pressão sobre a já limitada infraestrutura existente.
Esse contexto otimista e desafiador foi retratado em premissas econômicas que informaram os EVTEAs (estudos de viabilidade técnica econômico-financeira e ambiental) e, consequentemente, o dimensionamento de investimentos para a ampliação de capacidade dos ativos a serem licitados e a estruturação de complexos e diversificados mecanismos de mensuração da qualidade de serviços a serem ofertados aos usuários.
Desse modo, foram constituídas obrigações contratuais, em regra, com marcos temporais fixos, que induziram ao sobreinvestimento e ao estabelecimento de padrões de qualidade de serviços com custo-benefício questionáveis e significativa repercussão em tarifas/outorgas. Tome-se, por exemplo, apenas no tocante às obrigações de investimento, o prazo certo para disponibilização de terminais de passageiro, pistas e pátios, no caso dos aeroportos, e a duplicação total de rodovias em curto espaço de tempo. Em ambas as situações, investimentos desvinculados da real demanda.
Ainda, naquela ocasião, notava-se grande preocupação dos órgãos reguladores em reduzir o custo regulatório associado à gestão desses contratos. De outra parte, havia forte propensão do mercado e dos agentes financiadores a preferir assumir os riscos de mercado, por eles conhecidos, a tomarem o risco regulatório, naquele momento, percebido como o mais acentuado. Por sua vez, também havia o receio dos órgãos de controle com frequentes pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro durante a execução contratual.
Esses aspectos resultaram, tanto nos contratos de concessão de aeroportos quanto nos de rodovias, em alguns casos, de forma até inconsciente, na adoção da regulação Non Cost-Based, sem a previsão de mecanismo de realinhamento periódico de preços, em detrimento da regulação Cost-Based, em que se realinha periodicamente o preço teto dos serviços, conforme evolução de custos eficientes da empresa ou de alguma referência estabelecida, sem a clara e a necessária correspondência com as características dos ativos em questão2.
Com efeito, o otimismo inicial dos formuladores de políticas públicas foi comprado e suplantado pelo otimismo do mercado, com a realização de leilões competitivos marcados pela oferta, conforme o critério, de ágios ou deságios bastante elevados, celebrados por todos como prova do êxito dos certames.
Passados quase 10 anos, contudo, a realidade se impôs. No setor aeroportuário, os investimentos iniciais e aqueles previstos para os primeiros anos de execução contratual, em quase sua totalidade, foram realizados. No entanto, o retorno é bem aquém do esperado para adimplir com os compromissos financeiros assumidos logo no início da concessão, em vista dos mencionados grandes eventos. De outra parte, no setor rodoviário, os investimentos previstos, em regra, não se concretizaram.
No intuito de tentar equacionar essas situações de forma mais célere e eficaz que os usuais mecanismos até então disponíveis, sobreveio, por medida provisória, em 2017, o instituto da relicitação, como instrumento de extinção amigável do contrato de concessão, que resguarda a continuidade da prestação do serviço e possibilita a nova licitação do ativo, sob novas bases contratuais. Instituiu-se, portanto, nova hipótese de extinção contratual, que se dá antes do prazo previsto originalmente para o termo contratual.
A princípio, o mecanismo foi concebido para atender situações específicas e pontuais. Contudo, tem se tornado a regra e aplicado até de forma bastante controversa – como no único caso envolvendo uma concessão ferroviária – o que, para além de um alegado e suposto comportamento oportunista das concessionárias ou de uma deficiente estruturação dos EVTEAs por parte do poder concedente, pode indicar que os mecanismos contratuais hoje vigentes não são suficientes para lidar, adequadamente, com as intempéries a que se sujeitam parcerias de longo prazo.
O instituto da relicitação alinha-se aos pilares da segurança jurídica, transparência e previsibilidade que sustentam ser as parcerias, celebradas por meio de concessões, projetos de Estado e não de governo, haja vista serem contratações de longo prazo que perpassam diversos gestores, não podendo, assim, determinada contratação ser relegada, por ter sido eventualmente celebrada em distinto governo. Daí se diz que esses ajustes são celebrados com o Poder Concedente, que é perene.
No entanto, não se pode crer que apenas extinguir contratos, sem buscar meios negociais e regulatórios para levar o contrato ao seu regular termo contratual, seja a solução desejável. A relicitação, ainda que concluída em bons termos, não deixa de ser hipótese de extinção antecipada da relação contratual pactuada. Trata-se de regra de saída prematura, com desgastes para ambas as partes contratuais e, sobretudo, com custos questionáveis, diante de alternativas legalmente plausíveis. Veja-se que o investimento em aumento de capacidade, muitas vezes, é desobrigado ao longo de todo o processo de relicitação, que, apesar de justificável em virtude da situação de insustentabilidade do contrato de concessão, acarreta expressivos efeitos indesejáveis na economia, com a interrupção da geração de renda e da criação de empregos. Ademais, o referido mecanismo ainda emite sinais negativos para os que manifestam interesse pela carteira de projetos no país, principalmente para os investidores estrangeiros que ainda não exploram ativos de infraestrutura no Brasil.
É bem verdade que houve significativa depuração das premissas políticas até então estabelecidas e a criação de novos instrumentos regulatórios, com o objetivo de acomodar riscos antes inadequadamente endereçados. Todavia, há que se pensar os problemas atuais de forma mais ampla, com a reflexão acerca da melhor interpretação possível das disposições contratuais e sua aderência à dinâmica do respectivo mercado, no qual o ativo está inserido, e à realidade pela qual o país atravessa, principalmente diante das consequências maléficas econômicas causadas pela pandemia da Covid-19.
Quanto aos novos contratos deve-se, necessariamente, refletir sobre a efetiva adequação do atual modelo regulatório contratual do setor de transportes e de sua estrutura de compartilhamento de riscos.
Por certo, não se trata de discussão trivial e rápida e que, eventualmente, não caberá em cronogramas de governos. Daí, mais uma vez, a importância de reconhecer que os contratos de concessões, tipicamente incompletos e de longo prazo, compõem uma agenda de Estado, sujeita, é claro, a aperfeiçoamentos, mas não a solavancos de alternância de governos.