Opinião
06/11/2025 | 12h37  •  Atualização: 06/11/2025 | 12h46

O risco da inadimplência e os limites da modicidade tarifária

Foto: Divulgação

Thiago Vilardo Lóes Moreira* e Bruna de Barros Correia**

O aumento recente dos casos de inadimplência no mercado livre de energia reacendeu um debate sensível no setor elétrico brasileiro: quem deve absorver os prejuízos quando uma comercializadora deixa de cumprir suas obrigações? A questão ganhou destaque após a recente recomendação da área técnica da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) para revogação da autorização de operação da Gold Comercializadora de Energia, medida motivada pela inadimplência reiterada da empresa junto à CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) e por riscos à estabilidade financeira do mercado.

Embora a agência tenha como objetivo preservar a integridade do setor elétrico e, em última instância, proteger os consumidores, os desdobramentos contidos nesta recomendação trazem reflexões importantes sobre a forma como são tratadas as penalidades aplicadas e os fluxos financeiros delas decorrentes. Por exemplo, a Nota Técnica nº 156/2025-SGM da ANEEL propõe reverter integralmente o valor das penalidades aplicadas à Gold para a modicidade tarifária dos consumidores antes do efetivo recebimento desses valores pelas distribuidoras.

Ou seja, caso o repasse para redução tarifária ocorra antes da entrada efetiva dos recursos, as distribuidoras serão oneradas por um prejuízo que não lhes é imputável. Em termos jurídicos, isso afronta o princípio do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, consagrado no art. 9º da Lei nº 8.987/1995.

Embora a intenção de beneficiar o consumidor seja legítima, a proposta, tal como apresentada, gera desequilíbrios e distorções que merecem atenção. É importante destacar que as distribuidoras já suportaram os efeitos financeiros da inadimplência da comercializadora no âmbito da CCEE, em razão do mecanismo de rateio de inadimplência previsto nas Regras de Comercialização (Módulo 5).

Conforme trazido pela própria nota técnica, a comercializadora em questão está em processo de inadimplência setorial, sendo certo que não há qualquer garantia de recebimento, pelas distribuidoras, do valor da penalidade, além de uma incerteza quanto aos custos administrativos e judiciais para sua cobrança. Sendo assim, a recomendação da área técnica pode comprometer a equação econômico-financeira das distribuidoras, que operam sob regulação tarifária restritiva e não dispõem de liberdade contratual.

Isso porque as distribuidoras não têm liberdade para escolher seus fornecedores. As contratações ocorrem no Ambiente de Contratação Regulada por meio de processos regulados, como os leilões definidos pelo poder concedente e no âmbito da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica e da ANEEL, em conformidade com a estrutura normativa regulatória instituída pela Lei nº 10.848/2004 e pelo Decreto nº 5.163/2004. Assim, atribuir às distribuidoras o risco financeiro decorrente do descumprimento contratual de uma comercializadora contratada nesse processo regulado e competitivo contraria o desenho institucional do setor e a matriz de riscos delineada pela legislação e pelos contratos de concessão, mostrando-se um caminho preocupante, que fragilizaria o equilíbrio econômico-financeiro do segmento de distribuição.

Mais que isso, pode-se prever que a execução judicial de penalidades aplicadas a comercializadoras inadimplentes não será facilitada, especialmente quando as empresas deixam o mercado sem ativos significativos. Nesses casos, repassar valores hipotéticos à modicidade tarifária seria equivalente a socializar prejuízos e privatizar ganhos, distorcendo os incentivos do mercado e comprometendo a confiança entre agentes.

A proposta da agência também sugere alterações nos Proret (Procedimentos de Regulação Tarifária), especialmente no Módulo 2, que trata da destinação de valores de multas, para dispensar o recebimento prévio dos valores antes do repasse tarifário. Diante do potencial impacto dessa medida, é essencial que qualquer mudança de regra seja realizada com total transparência, por meio dos instrumentos previstos em lei, como consulta pública e AIR (Análise de Impacto Regulatório), conforme exigido pela legislação (art. 9º da Lei Federal 13.848/2019), com o fim de assegurar previsibilidade, segurança jurídica e legitimidade às decisões do órgão regulador.

A defesa do interesse do consumidor é princípio basilar do setor elétrico, mas ele não pode ser alcançado à custa da sustentabilidade financeira dos agentes regulados. O caminho equilibrado é simples: o repasse dos valores de multa para a modicidade tarifária deve ocorrer apenas após o efetivo recebimento pelas distribuidoras, já descontados eventuais custos de cobrança judicial, devidamente comprovados.

Frente a esse cenário, é importante enfatizar que a adequada alocação de riscos é condição indispensável para garantir investimentos contínuos, eficiência operacional e tarifas justas. Preservar o equilíbrio econômico-financeiro das concessões não é proteger as distribuidoras, mas proteger a coerência e a credibilidade do marco regulatório brasileiro, base indispensável para um setor elétrico sólido, previsível e capaz de continuar atraindo investimentos para o país.

*Thiago Vilardo Lóes Moreira é advogado e professor. Gerente jurídico da Abradee, presidente da Comissão Especial de Energia da OAB/DF. Membro da Comissão Especial de Energia Elétrica do Conselho Federal da OAB.

**Bruna de Barros Correia é advogada. Sócia da área de Energia no BMA Advogados. Mestre e doutora em Planejamento de Sistemas Energéticos pela Unicamp. Vice-presidente da Comissão Especial de Energia da OAB/DF.

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