Guilherme de Paula*
No momento em que o Congresso Nacional se debruça sobre mudanças relevantes no marco regulatório das concessões e PPPs (Parcerias Público-Privadas), surge a oportunidade de se revisar um ponto bastante sensível da legislação: o nível de detalhamento exigido nos estudos de engenharia para fins de estimativa dos investimentos. O avanço do PL (Projeto de Lei) 7.063/2017 reacende o debate: até onde é necessário ir no detalhamento do anteprojeto para garantir segurança e competitividade, sem engessar a modelagem e afastar investidores? Mais do que uma mera tecnicalidade, o tema evidencia uma diferença importante entre PPPs e concessões e regimes de execução contratual tradicionais.
A discussão sobre o grau de detalhamento prévio de projetos não é nova. No início da década de 1990, a Lei 8.666 surgiu como resposta a um contexto de baixa transparência e sucessivos escândalos envolvendo contratações públicas. O projeto básico, com orçamento detalhado, composição analítica dos custos e especificações técnicas mais precisas, tornou-se o núcleo desse modelo, garantindo ao poder público previsibilidade de custos e reduzindo alterações durante a execução.
Essa lógica, no entanto, diverge daquela aplicável a contratos de longo prazo ou com forte componente de operação, como as concessões e as PPPs. Quando a Lei 8.987, de 1995, instituiu o regime de concessões de serviços públicos, o legislador identificou essa diferença ao flexibilizar a exigência, permitindo que os estudos de engenharia que embasassem a modelagem dos projetos apresentassem “elementos do projeto básico”, transferindo o risco projetual ao concessionário.
O RDC (Regime Diferenciado de Contratações Públicas), instituído em 2011, deu um passo adiante ao trazer ao ordenamento jurídico a figura do anteprojeto, associada a regimes contratuais públicos similares aos contratos turnkey privados, como a contratação integrada. Se antes, na lei de concessões, definia-se o detalhamento dos estudos de engenharia pela negação – o elemento de projeto básico foi amplamente recepcionado pela doutrina como uma parte, não o todo do projeto básico, conforme delineado na Lei 8.666/93 –, agora cria-se uma figura nova que se ampara em construções técnicas paralegais para sua definição.
O RDC previu quatro elementos como essenciais ao anteprojeto (art. 9º, § 2º, I): (i) a demonstração e a justificativa do programa de necessidades, com visão global dos investimentos e as definições quanto ao nível de serviço adequado; (ii) as condições de solidez, segurança, durabilidade e prazo de entrega; (iii) a estética do projeto arquitetônico; e (iv) os parâmetros de adequação ao interesse público, à economia na utilização, à facilidade na execução, aos impactos ambientais e à acessibilidade.
A alteração surgida no RDC gerou repercussões rapidamente. A Lei 12.766/12, surgida da conversão da Medida Provisória 575/12, alterou a Lei de PPPs para inserir o § 4º em seu art. 10. Assim, a Lei de PPPs passou a contar com redação idêntica à do RDC, afastando a aplicação do art. 18, XV, da Lei de Concessões. Chama a atenção, nesse sentido, que a Lei n.º 12.766/12 optou por não incluir, na redação do art. 10, § 4º, os quatro elementos essenciais listados no RDC – o que revela que, desde aquele momento, sabia-se que se tratava de regimes contratuais significativamente diferentes.
Maurício Portugal Ribeiro, Gabriel Galípolo e Lucas Navarro Prado, em artigo de janeiro de 2013, esclareceram que a opção pela incorporação do anteprojeto como nível de detalhamento projetual para PPPs surgiu como uma solução para a discussão existente anteriormente quanto ao que exatamente seriam os “elementos do projeto básico” a que se referia a Lei 8.987/95. Diziam que, à época, a dúvida sobre se os ditos elementos consistiriam em detalhamento inferior “foi superada em praticamente todos os entes governamentais que realizaram projetos de concessão ou PPP”. Contudo, ainda que não houvesse dúvidas sobre o que estes elementos não seriam, restavam dúvidas sobre o que, de fato, seriam. Para tanto, foi inserida, no RDC, a figura do anteprojeto.
Do ponto de vista prático, a implementação do RDC revelou algumas dificuldades associadas aos elementos básicos do anteprojeto. Isso porque alguns temas se mostraram cruciais em projetos de obras públicas. Nesses casos, o TCU (Tribunal de Contas da União) se manifestou seguidas vezes.
No Acórdão 1510/2013 – Plenário, o Tribunal emitiu enunciado exigindo que, em contratações integradas, o anteprojeto preveja proposta de concepção arquitetônica da obra ou do serviço de engenharia. Em outra ocasião, no Acórdão 877/2016 – Plenário, o Tribunal apontou que a estimativa de preços no âmbito de anteprojeto deve, sempre que possível, ser tão detalhada quanto possível e referenciada em bases de dados como Sicro e Sinapi. Outro ponto que chama a atenção é o enunciado proferido no Acórdão 3.005/2015 – Plenário, em que a Corte exigiu a elaboração de pareceres de sondagem quando a definição da metodologia construtiva a ser adotada no projeto dependesse da capacidade de suporte dos solos.
Essas considerações do Tribunal de Contas da União foram incorporadas diretamente na Lei 14.133/2021, que consolidou o novo marco normativo das licitações e contratos administrativos. Ou seja, o rol de requisitos do anteprojeto – conforme originalmente previsto do marco do RDC – fora ampliado justamente para incorporar os enunciados construídos pelo TCU na sua aplicação em projetos de obras públicas sob o regime de contratação integrada, conforme previsto no art. 6º, XXIV, em suas alíneas “f” a “j”.
Assim, resta a dúvida: são aplicáveis às PPPs os elementos mínimos do anteprojeto previstos na Lei 14.133/21?
Embora a própria Lei 14.133/21 preveja, em seu art. 186, que suas disposições se aplicariam apenas subsidiariamente à Lei 11.079/04 e à Lei 8.987/95, parece claro que a pertinência dos elementos mínimos previstos no art. 6º, XXIV, para PPPs deva ser avaliada no caso concreto. Um exemplo que salta aos olhos é a exigência de pareceres prévios de sondagem. É evidente que um projeto de PPP que preveja a assunção e operação de infraestrutura preexistente (brownfield) e que, portanto, não contenha risco significativo associado às condições de terreno, possui um grau de sensibilidade quanto ao assunto bastante diverso de um projeto greenfield.
Em outra aplicação dos elementos do art. 6º, XXIV, a concessões, poder-se-ia chegar à conclusão de que seria exigível a realização de levantamento fundiário e topográfico prévio à realização do certame – o que inviabilizaria projetos de concessão de redes de transmissão de energia elétrica, por exemplo.
Para além dessas dificuldades práticas, convém ressaltar que a preocupação com a previsão de estudos de sondagem está atrelada à relevância dos custos de investimentos para o regime de execução contratual da contratação integrada: enquanto o capex é, para fins da contratação integrada, o elemento central de precificação da proposta comercial das licitantes, trata-se de apenas um dos elementos que informam o projeto de investimento que é a PPP ou a concessão.
Importante destacar que não é objetivo deste artigo relativizar a importância da adequada precificação dos investimentos de uma PPP. O ponto, na verdade, é frisar que os requisitos mínimos previstos para o anteprojeto na Lei 14.133/21 têm origem em um contexto específico, vinculado a um regime de execução contratual que possui uma lógica de alocação de riscos muito diversa da de uma PPP ou de uma concessão. Sua aplicação indiscriminada a projetos de PPPs e concessões, portanto, seria um equívoco.
Nesse sentido, o Projeto de Lei 7.063/2017, recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados e que se encontra em análise no Senado, parece ofertar uma saída satisfatória. Na redação aprovada na Câmara, foi prevista a alteração do art. 18, XV, da Lei 8.987/95, prevendo, em redação similar à da Lei de PPPs, a exigência de que os estudos de engenharia – para o caso de concessões precedidas de obra pública – sejam feitos com nível mínimo de anteprojeto. Como importante complemento, o texto também afasta a aplicação das alíneas “h”, “i” e “j” da Lei 14.133/21 como elementos necessários para a caracterização do anteprojeto, possibilitando, ainda, a justificada desconsideração de outros elementos previstos na Lei de Licitações. Se o Senado mantiver a redação do PL 7.063/2017, o marco regulatório das parcerias ganhará eficiência e atratividade, evitando que formalismos excessivos prejudiquem a entrega de infraestrutura de qualidade.
*Guilherme de Paula é gerente de Projetos na São Paulo Parcerias, estruturadora de projetos de PPPs e concessões no município de São Paulo. É advogado formado na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, com LLM em Direito da Construção na University of Strathclyde, de Glasgow.
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