Álvaro do Canto Capagio* e Felipe Freire da Costa**
Há pouco mais de quatro anos, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) apresentou à sociedade uma proposta inovadora de regulamento para o serviço regular de Trip (Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros).
Assim, rompia-se longa tradição estatal de técnica regulatória voltada a preservar o interesse de grandes grupos econômicos que dominam o setor de transporte rodoviário de passageiros, nos mais diversos entes da federação.
Entre as inovações propostas, destaca-se o conceito de Idade Média Operacional, que calculava a idade média dos veículos utilizados nas viagens de cada objeto autorizado, trazendo realismo ao conceito de idade média veicular, além de permitir a avaliação desse parâmetro em cada termo de autorização.
A Idade Média Operacional, a ser utilizada como critério de atualidade dos termos de autorização, a um só tempo, reforçava o compromisso com a segurança veicular, a flexibilidade operacional e a atualidade na prestação dos serviços de Trip, fatores essenciais em ambiente competitivo.
Colimava-se substituir a prática até então existente, de natureza meramente cadastral, que não guardava correspondência com o estado de conservação dos veículos efetivamente utilizados na prestação dos serviços delegados.
Ademais, considerando-se que todos os veículos cadastrados nos sistemas da ANTT atenderiam aos requisitos mínimos de segurança e estariam sujeitos a inspeções veiculares periódicas, é razoável assumir, respeitado o mesmo rigor em rotinas de manutenção, que a Idade Média Operacional seria componente da segurança operacional, assinalando-se a constatação apodítica de que veículos mais novos tendem a ser mais seguros que os antigos.
Os parâmetros propostos representavam maior preocupação com os critérios de segurança veicular em comparação com a redação então vigente da Resolução ANTT nº 4.770/2015. Em 2018, a norma foi alterada para permitir a utilização indiscriminada de veículos com até 20 anos de fabricação e suprimir o limite de idade média veicular, o que favoreceu determinados grupos empresariais.
De forma a corrigir esse equívoco, estipulou-se Idade Média Operacional máxima de 9,9 anos e a utilização de ônibus com até 15 anos de fabricação: clara evolução em relação ao regulamento então vigente.
A proposta foi discutida no âmbito da Audiência Pública nº 4/2020, evento precedido de consulta pública e sucedido por reunião participativa, todas abertas ao público e com todas as contribuições e críticas respondidas individualmente.
A despeito de tudo isso, a proposta seria rejeitada, sob a justificativa de que não proporcionaria segurança aos usuários.
Transcreve-se trecho do voto do diretor-geral, Declaração de Voto DG 1/2021, que sacramentou a rejeição da proposta que ampliaria a concorrência no setor de Trip:
“No processo, a SUPAS deverá abrir um prazo interno para que servidores da ANTT possam contribuir com a nova minuta antes da Audiência Pública, bem como deverá provar de forma cabal, por meio de Análise de Impacto Regulatório – AIR, que a proposta garante a segurança do usuário e que a Agência terá capacidade de fiscalizar o novo modelo proposto”. [destaques acrescidos]
Sem entrar na discussão sobre se seria possível assegurar plenamente a segurança dos usuários do setor de Trip, a Análise de Impacto Regulatório é instrumento relevante de transparência e suporte à decisão, porém, não se presta a provar algo – muito menos de forma cabal –, sobretudo porque se refere a uma análise prospectiva, ancorada em dados e informações pretéritos.
A Resolução ANTT 6.033/2023 e a garantia cabal de segurança dos usuários
Há pouco mais de um ano, a ANTT aprovou o novo marco regulatório dos serviços regulares de Trip: Resolução ANTT nº 6.033/2023.
Todavia, contraditoriamente, após estudos que deveriam assegurar cabalmente a segurança dos usuários do setor – consoante o voto do diretor-geral da ANTT –, a resolução aprovada representou um retrocesso, não somente no aspecto concorrencial, mas também sob a ótica da segurança veicular.
Além de não estabelecer nenhum indicador voltado à segurança operacional ou à atualidade nos termos de autorização, o novo marco regulatório suprimiu o pressuposto de Idade Média Operacional, não prevê limite expresso de idade média veicular e permite a utilização de veículos com até 20 anos de fabricação na alta temporada, período de maior insegurança viária, em razão da grande movimentação de veículos.
A justificativa consta da Nota Técnica – ANTT 9395 e foi acolhida “in totum” pela Diretoria Colegiada da Agência, a mesma que viu riscos à segurança dos usuários na proposta anteriormente rejeitada. Reproduzimo-la:
“A possibilidade de uso de veículos com idade maior em períodos de pico, procedimento adotado no início da vigência da Resolução 4.770/2015, é justificável, tendo em vista que é característica do transporte coletivo interestadual de passageiros a necessidade de aumento de capacidade de oferta para atender a elevação de demandas de picos acentuados (períodos específicos), o que exige, na situação de máxima solicitação (períodos de pico), disponibilidade de um maior número de veículos. Ademais, atualmente a idade máxima exigida na referida resolução é de 20 anos, por entender a Agência que essa idade não compromete a adequada prestação dos serviços”. [destaques acrescidos]
De forma resumida, em vez de permitir o incremento da concorrência, a ANTT entendeu mais razoável possibilitar que os atuais incumbentes atendessem à demanda adicional de usuários com veículos mais velhos, de até 20 anos de fabricação, sob a justificativa de que isso não comprometeria a adequada prestação dos serviços.
Tendo em vista que esses usuários pagarão mais caro – característica comum dos períodos de alta demanda – para viajar em veículos mais velhos, parece razoável assumir que haverá um decréscimo nas condições de segurança, atualidade e modicidade dos preços, atributos do serviço público adequado.
Um olhar sobre os dados da ANTT
De forma a verificar se ocorreu decréscimo na qualidade dos serviços – sob os aspectos da segurança e atualidade – entre a vigência da Resolução ANTT nº 6.033/2023 e o que se propunha em 2021 (ou o que se exigia em 2015, na forma do art. 78 da Resolução ANTT nº 4.770/2015), nada é mais propício do que, em vez de alegações retóricas, elencar evidências pautadas em dados concretos, in casu, ofertados pela própria agência.
Para tanto, servimo-nos de dois conjuntos de dados, um referente aos veículos habilitados[1] e outro relativo às empresas, linhas e seções cadastradas no SIGMA[2], Sistema de Gerenciamento e Monitoramento de Autorizações.
Empregaram-se dados relativos ao mês de dezembro de 2024, atualizados no dia 30 daquele mês. Objetiva-se comparar os resultados atuais, sobre idade veicular, com o cenário resultante caso a proposta de 2021 fosse aprovada e estivesse vigente.
Isso posto, o passo inicial consistiu em calcular a idade média veicular das empresas que operam no setor regular de Trip, a partir da base de dados já referida. Para isso, selecionaram-se somente os veículos do tipo ônibus, considerando-se a data de 31 de dezembro para efeito de contagem da idade do veículo, conforme o regulamento setorial.
Desse conjunto de dados, selecionaram-se as empresas que não atenderiam ao indicador de idade média veicular da proposta de 2021 – ou de idade média cadastral do primeiro ano de vigência da Resolução ANTT nº 4.770/2015 –, ou seja, empresas que operam com idade média veicular maior ou igual a 10 anos.
Registre-se que, em razão da ausência de informações atuais sobre os veículos utilizados em cada viagem – os dados de monitoramento de viagens realizadas perfazem até o mês de novembro de 2024 –, utilizou-se a idade média veicular cadastral, por isso a referência à redação original da Resolução ANTT nº 4.770/2015.
Analisando-se apenas a base de dados de veículos habilitados, resultam 82 empresas cuja idade média veicular é maior ou igual a 10 anos. Esse número representa 1/3 do total de empresas com veículos cadastrados nos sistemas da ANTT.
Embora elevado, o número diz pouco, na medida em que somente 180 das 251 empresas com veículos cadastrados no SISHAB2 (Sistema de Habilitação de Transporte de Passageiros) possuem delegação para prestação dos serviços regulares de TRIP.
Delimitando-se a análise às empresas que possuem autorização para operar no setor de Trip, têm-se que 28% das delegatárias não atenderiam ao critério de idade média previsto inicialmente no regulamento setorial de 2015 ou na proposta de 2021.
Por entender que esse problema é mais grave nas ligações operadas de forma exclusiva por alguma empresa, nas quais os usuários não têm alternativa de escolha, restringiu-se a análise a essas empresas, identificadas a partir da relação de mercados monopolistas[3] no site da ANTT[4].
Dentro desse novo conjunto de dados, em que 163 empresas prestam serviço em pelo menos um mercado[5], de forma exclusiva, 27% dessas operam com idade média veicular acima da que a ANTT admitia em 2015.
Todavia, parte dessas empresas presta serviço em um número não significativo de mercados, razão pela qual se entendeu prudente promover uma análise mais conservadora, restringindo, mais uma vez, o objeto de avaliação.
Com esse intento, calculou-se o número médio de mercados delegado às empresas do setor, chegando-se ao valor de 273 ligações (mercados). Com isso, tem-se um universo de oito empresas que prestam o serviço em mais de 273 mercados e possuem idade média veicular superior a 9,9 anos.
Por fim, em razão da impossibilidade de identificar em quais termos de autorização essas empresas utilizam seus veículos, selecionaram-se aquelas que têm cadastrados veículos com 15 ou mais anos de fabricação, condição que não era admitida originalmente no regulamento de 2015, muito menos na proposta de 2021.
O gráfico abaixo apresenta o resultado desse recorte final de dados.
As empresas indicadas no gráfico prestam serviços de Trip em número relevante de mercados, de 528 a 3.649 ligações. Portanto, preditos operadores atendem a um universo considerável de usuários, entre reais e potenciais.
Todas operam com idade média veicular superior a 10 anos e possuem percentuais significativos de veículos cadastrados com idade de fabricação igual ou superior a 15 anos (% 15+ no gráfico).
A exceção refere-se à empresa Norte e Sul Transporte e Turismo Ltda. Não obstante a autorizatária tenha um único veículo com idade superior a 15 anos cadastrado na base de dados da ANTT, ela opera uma única linha, com 2.603 mercados, logo, esse veículo necessariamente será utilizado nessa linha, no todo ou em parte, motivo pelo qual optou-se por mantê-la na seleção acima.
Outra característica comum dessas empresas é o elevado percentual de mercados atendidos de forma exclusiva (% monopólios no gráfico). Os números variam de 61,4% (Norte e Sul Transportes e Turismo Ltda.) até impressionantes 87%, caso específico da EMTRAM – Empresa de Transportes Macaubense Ltda.
Ainda no exemplo da EMTRAM, em praticamente nove de dez mercados em que a empresa atua, os usuários do setor de Trip estão sujeitos a serviços prestados exclusivamente por essa empresa, que opera com idade média veicular de 10,8 anos e quase 1/4 dos veículos com idade de fabricação igual ou superior a 15 anos.
Passa-se ao caso da Empresa Gontijo de Transportes, que atende 1.814 mercados em 195 linhas, a maior operação de todo o setor regular de Trip. A autorizatária mineira atua de forma exclusiva em mais de 64% de seus mercados delegados – 1.164 ligações – e opera com 285 veículos que somam 15 ou mais anos de fabricação, correspondendo a mais de 34% de sua frota cadastrada junto à ANTT.
Para se ter dimensão desses números, a frota de veículos com mais de 15 anos operados pela Gontijo equivale à sétima maior frota cadastrada no SISHAB2, posição superada apenas pela própria Gontijo e por empresas dos grupos JCA, Águia Branca e Guanabara, os maiores grupos empresariais do setor.
Esses números indicam que a Empresa Gontijo de Transportes foi a maior beneficiária da alteração normativa – promovida de última hora, porquanto não constante da proposta de marco regulatório e não acolhida no relatório da audiência pública – que permitiu a utilização de veículos mais velhos em períodos de alta demanda.
Os monopolistas e os veículos 15+, a falha regulatória
Em conclusão, ainda que se desconsidere o incremento concorrencial que ocorreria após a aprovação da proposta de 2021, rejeitada a partir de justificativas teratológicas, é razoável supor que os usuários do setor estariam sujeitos a condições mais adequadas de prestação de serviços de Trip – sob os atributos de atualidade e segurança – se os requisitos de segurança operacional previstos naquela proposta fossem preservados, ou mesmo se os requisitos originais da Resolução ANTT nº 4.770/2015 ainda produzissem efeitos.
Importante ressaltar que as empresas listadas estão no legítimo exercício de seus direitos de exploração da atividade econômica, seguindo as regras determinadas pela agência reguladora. A elas não se pode atribuir qualquer responsabilidade pelas atecnias do marco regulatório.
Infortunadamente, a boa técnica – fundamento para a instituição de uma agência reguladora formada por especialistas estudiosos do setor econômico – não prevaleceu, sujeitando-se parte considerável dos consumidores a serviços prestados em regime de exclusividade em condições inferiores às que seriam prestadas em uma situação de ampla concorrência, com critérios mais rígidos de atualidade e segurança operacional.
A segurança dos usuários precisa ser tratada com seriedade. Não se pode admitir que seja utilizada como instrumento de retórica para impedir a modernização e maior competição no setor de Trip. Enquanto permanecerem fechados os olhos para essa realidade, parcela significativa dos usuários do setor continuará refém do atraso, vítimas, por vezes fatais, do coronelismo sobre rodas[6].
O problema não está nas empresas, o problema está no Estado. O setor de Trip precisa de uma revolução regulatória, porém, de uma revolução de verdade.
[1] Dez2024 – Veículos Habilitados. Acesso em 4/1/2025.
[2] Dez2024 – Empresas, Linhas e Seções – SIGMA. Acesso em 4/1/2025.
[3] Mercados monopolistas. Acesso em 4/1/2025.
[4] Comunicados – Janela Extraordinária nº 1/2024. Acesso em 4/1/2025.
[5] Possibilidade de comercialização de bilhetes de passagem para um par de origem/destino interestadual.
[6] Sobre o coronelismo sobre rodas, ver: O voto de cabresto, o usuário cativo e o Coronelismo sobre rodas no aniversário da abertura de mercado de TRIP
*Álvaro do Canto Capagio é especialista em Regulação da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres). Doutorando em Direito da Regulação pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília.
**Felipe Freire da Costa é especialista em Regulação da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres). Mestre em Engenharia de Transportes pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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