João Carlos Mello*
Desde o ano passado, quando começaram os debates sobre alternativas de melhorias ao atual modelo de planejamento energético – como a adoção de um padrão híbrido junto com a incorporação de parâmetros de aversão ao risco (CVaR) mais rigorosos – o NEWAVE, ferramenta central por essa ação de médio e longo prazo do setor elétrico brasileiro, ganhou visibilidade. Com esse movimento, vieram à tona fragilidades que há anos são apontadas por especialistas, mas que agora ganham contornos mais evidentes.
O NEWAVE é um modelo computacional que simula a operação do sistema elétrico nacional a partir de cenários hidrológicos e premissas técnicas. É peça-chave para definir a política de operação, ou seja, quando e quanto gerar em cada usina do país. Seu objetivo é encontrar a estratégia mais econômica, sob a ótica sistêmica, respeitando restrições técnicas e ambientais.
No entanto, o modelo tem demonstrado uma sensibilidade excessiva aos parâmetros internos, como o número máximo de interações de cálculo, que não estão relacionadas às condições reais do sistema, como demanda por energia, quantidade de chuvas ou água acumulada nos reservatórios.
Esse tipo de instabilidade compromete a confiabilidade dos resultados gerados pelo modelo. Em outras palavras: decisões bilionárias – como quanto de energia será despachado e qual será o custo marginal da operação, que influencia o preço no curto prazo – podem ser impactadas por ajustes técnicos internos a esse padrão, e não por mudanças reais nas condições do sistema elétrico. Isso representa um risco relevante para o planejamento e a previsibilidade do setor.
Um exemplo recente ilustra esse quadro. Durante as reuniões de andamento do PMO (Programa Mensal da Operação), o ONS (Operador Nacional do Sistema) informou a mudança no tratamento da Usina Hidrelétrica Canastra (44 MW) – capacidade instalada do Sistema Elétrico Brasileiro (SIN – Sistema Interligado Nacional) é superior a 236 GW –, que passou a ser modelada de forma individualizada no NEWAVE – ou seja, com todas as suas características físicas e operacionais simuladas diretamente, como volume útil, área do reservatório, curvas de produtividade e parâmetros hidráulicos.
A alteração, que em teoria seria simples e tecnicamente neutra, resultou em efeitos inesperados. O NEWAVE passou a “acertar” o ponto ótimo da operação logo na primeira rodada de cálculos, eliminando o comportamento típico de múltiplas interações sucessivas – o que levanta dúvidas sobre a robustez do algoritmo de convergência. Como consequência, o custo total da operação estimado pelo modelo aumentou em cerca de R$ 2 bilhões, e o CMO (Custo Marginal de Operação) – uma referência de preço da energia – subiu em aproximadamente R$ 150/MWh.
Este efeito vai acionar a bandeira vermelha 2 com repercussão para todos os consumidores cativos. Este impacto é de cerca de 10% a 15%, o que não é nada desprezível. Segundo cálculos anteriores da FGV (Fundação Getulio Vargas), a bandeira vermelha 2 tem um reflexo de 0,42% na inflação mensal. Não é razoável um abalo tão amplo no bolso dos consumidores, causado por equívocos num modelo matemático de preços devido a uma mudança tão pequena…
Ao retirar a usina da configuração do modelo, os resultados voltaram ao padrão anterior, tanto em termos de custo quanto no comportamento esperado do processo interativo. Esse cenário evidencia uma vulnerabilidade crítica que merece atenção do setor: a inclusão de uma única usina – que representa apenas 0,019% da capacidade instalada do SIN – na modelagem do sistema, sem qualquer mudança no restante deste sistema, foi suficiente para desestabilizar o resultado do modelo e elevar consideravelmente o custo da operação. Espera-se que ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), MME (Ministério de Minas e Energia) e ONS voltem atrás nessa modelagem da usina até que se entenda o que aconteceu.
Portanto, a discussão sobre o futuro do NEWAVE não deve ser encarada como um ataque a uma ferramenta que, por décadas, cumpriu seu papel com relevância. Mas, sim, como um convite à modernização. Com um setor cada vez mais complexo, que incorpora fontes intermitentes, novos modelos de negócio e necessidades de previsibilidade, é legítimo – e necessário – questionar se o modelo atual ainda responde de forma adequada aos desafios contemporâneos.
Por sinal, as autoridades setoriais lançaram recentemente uma consulta pública sobre o modelo matemático que está dando sinais de preço pouco razoáveis. O momento exige um olhar técnico, transparente e comprometido com a evolução do setor. Uma transição para modelos mais robustos, que incorporem inovação sem renunciar à confiabilidade, pode ser o caminho para garantir que o planejamento energético continue a servir de alicerce para o crescimento sustentável do país.
*João Carlos Mello é CEO e fundador da Thymos Energia, liderando os projetos de Consultoria, P&D e Gestão. É membro da Academia Nacional de Engenharia e diretor-presidente do Cigre Brasil. Mello é doutor e mestre em Engenharia Elétrica pela PUC-RJ. Já atuou no Cepel (Centro de Pesquisas de Energia Elétrica).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.