Jéssica Aragão Everton*, Raphaela Esperança** e Fernanda Martinez Campos Cotecchia***
O setor ferroviário brasileiro vive um momento de inflexão, sendo um ramo tradicionalmente marcado por investimentos públicos insuficientes e pela predominância do transporte rodoviário brasileiro.
O Brasil agora aposta em um novo ciclo de expansão e modernização das ferrovias com a implementação do Plano Nacional de Ferrovias, o qual prevê investimentos estimados em cerca de R$ 138,6 bilhões, totalizando aproximadamente 18,8 mil quilômetros de malha ferroviária e representando uma das maiores iniciativas de infraestrutura logística da história recente.
Historicamente, o modelo de desenvolvimento ferroviário no Brasil foi estruturado em torno das concessões tradicionais, leiloadas na década de 1990, quando a União transferiu à iniciativa privada a operação de trechos já existentes. Nessa configuração, os contratos tinham como característica central a delegação integral de riscos à concessionária, responsável por manutenção, operação e eventuais expansões, mediante pagamento de outorgas e cumprimento de metas estabelecidas pelo poder público.
Nesse sentido, muito embora tenham permitido certa modernização e aumento da eficiência operacional, essas concessões mostraram limites evidentes: concentração em poucos grandes grupos, dificuldades de integração multimodal, gargalos em áreas estratégicas e, sobretudo, uma limitação de investimentos em projetos considerados menos rentáveis.
O Plano Nacional de Ferrovias introduz diferenças substanciais nesse modelo. No lugar de depender exclusivamente de concessões tradicionais, o governo optou por um formato híbrido, o qual combina concessões com aportes públicos diretos e repactuações de contratos existentes.
A mudança em questão faz parte do reconhecimento de que muitos projetos ferroviários, especialmente os chamados “greenfield” — como a Ferrogrão, ligando o Mato Grosso ao Pará — não possuem viabilidade econômica apenas pela tarifa e pela demanda projetada, exigindo subsídios ou complementações financeiras para atrair investidores. A criação de uma Política Nacional de Outorgas Ferroviárias pretende formalizar essas regras de apoio, definindo critérios objetivos para aportes governamentais e mecanismos de partilha de riscos.
Outro ponto que diferencia o Plano Nacional de Ferrovias do modelo tradicional é o escalonamento e o fatiamento dos projetos. O governo optou por priorizar os que apresentam maior maturidade regulatória, ambiental e de engenharia. Desse modo, os primeiros leilões já anunciados incluem o Anel Ferroviário do Sudeste (EF-118), previsto ainda para 2025, seguido do Corredor Fiol-Fico e da Ferrogrão, ambos projetados para 2026. Tal estratégia permite reduzir incertezas, testar os novos modelos contratuais e ajustar falhas antes da implementação em escala nacional.
Além disso, o Plano Nacional de Ferrovias prevê um conjunto de repactuações contratuais, especialmente em ativos como a Malha Oeste, a Malha Sul e a Ferrovia Transnordestina Logística. Diferentemente das concessões originais, essas renegociações podem incluir prorrogações condicionadas a novos investimentos, mudanças de traçado ou até mesmo a possibilidade de relicitação em caso de inviabilidade. Essa flexibilidade regulatória representa uma inovação importante, pois rompe com a rigidez dos contratos antigos, que muitas vezes limitavam a capacidade do Estado de exigir contrapartidas mais aderentes às necessidades logísticas atuais.
Outra inovação é a inclusão de projetos de ferrovias de passageiros, com previsão de cerca de R$ 8,9 bilhões em investimentos. Embora historicamente negligenciado no país, o transporte ferroviário de passageiros volta à agenda, com estudos em andamento para linhas como Brasília-Luziânia, Salvador-Feira de Santana e Fortaleza-Sobral. Esse movimento indica que o modelo de concessões não será mais restrito ao transporte de cargas, ampliando sua abrangência social e urbana.
É importante destacar também que visão estratégica de integração logística foi pensada no Plano Nacional de Ferrovias. Enquanto as concessões originais privilegiaram trechos isolados, muitas vezes voltados para a exportação de commodities específicas, o novo plano enfatiza corredores integrados, com conexões diretas a portos, rodovias e outras ferrovias. Neste aspecto, projetos como a ligação entre a Norte-Sul e a Transnordestina ou a extensão da malha até o Porto de Vila do Conde exemplificam essa abordagem, cujo objetivo é evitar “ilhas ferroviárias” pouco aproveitadas.
No entanto, as mudanças não eliminam os desafios, questões ambientais e jurídicas continuam sendo obstáculos significativos, como demonstrado no caso da Ferrogrão, atualmente sob análise do Supremo Tribunal Federal por afetar parte do Parque Nacional do Jamanxim. Há ainda riscos relacionados à viabilidade financeira dos projetos, à capacidade institucional de monitorar contratos complexos e à necessidade de garantir segurança jurídica a longo prazo para investidores.
Em síntese, o Plano Nacional de Ferrovias representa um redesenho profundo do modelo de concessões ferroviárias no Brasil. Ele rompe com a lógica exclusiva de delegação de riscos à iniciativa privada e adota um formato mais equilibrado, em que o Estado atua como indutor e parceiro, seja por meio de aportes financeiros, repactuações ou definição de políticas claras de outorga.
Assim, ao priorizar projetos maduros, ampliar o escopo para passageiros e focar na integração multimodal, o plano tem potencial de transformar a matriz de transporte nacional, reduzir custos logísticos e aumentar a competitividade do país.
*Jéssica Aragão Everton é advogada do Kincaid Mendes Vianna Advogados.
**Raphaela Esperança é advogada do Kincaid Mendes Vianna Advogados.
***Fernanda Martinez Campos Cotecchia é sócia do Kincaid Mendes Vianna Advogados.
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