Os desafios invisíveis para tornar a aviação um setor mais inclusivo

José Ricardo Botelho*

Imagine que você tem uma empresa e seu produto é o único que pode transportar órgãos para salvar a vida de alguém que está muito distante. Seu produto é o único que pode levar alimentos, perecíveis ou não, a lugares onde navios e caminhões não podem chegar. Em momentos de dificuldade, seu produto é o único que pode retirar pessoas de locais de conflitos ou transportar vacinas, máscaras e oxigênio.

Em momentos de alegria, fruto de eventos esportivos mundiais, seu produto se transforma completamente: muda de cor para apoiar seleções olimpíadas, paraolímpicas e, se falarmos em encantamento, adaptamos a pintura para homenagear o filme Star Wars, a Turma da Monica, Disney e muitos outros. Mudamos a cor para chamar sua atenção para campanhas importantes sobre o câncer de mama ou de próstata. Onde quer que esse produto chegue, estará a tecnologia, o desenvolvimento de empregos diretos, indiretos, catalisados, induzidos. Estará o desenvolvimento do turismo ou da logística de carga.

Este produto tem uma infinidade de coisas boas para entregar a todos. E o melhor, tem metas específicas para proteger o meio ambiente, programas de inclusão e, apenas para parar por aqui, é considerado o mais seguro da terra para transportar pessoas. Ah, vale lembrar, que muito do que se menciona aqui é feito de maneira gratuita por ter a consciência de sua finalidade social.

Este produto existe, se chama aviação, e passou a transportar mais de 100 milhões de passageiros neste país continental, ciente, ainda, de que se fosse tratado como uma prioridade nacional, seria capaz de fazer muito mais em benefício de todos. De que poderia incluir muitos mais CPFs voando. Somente ele pode unir os pontos cardiais do Brasil, das américas e do mundo.

Perfeita a aviação não é. E como é feita por e para humanos, nunca será. Mas tão pouco é a vilã da história. Novamente, pense em você sendo o responsável por este produto, chamando a todos para trabalhar juntos, mas tendo que nadar contra um dos preços de combustível mais caros do mundo, pagando cerca de 50% de seu custo operacional em dólar e vendendo seus tíquetes para essa aventura em real.

Imagine ainda que, mesmo com uma lei aprovada pelo Congresso Nacional, sancionada pelo presidente do país (Lei 14 034/2020, art. 4° que inclui o art. 351-A na Lei 7.565/1986), o sistema jurídico da nação gera um custo adicional de mais de R$ 1 bilhão porque desconsidera, muitas vezes, o dispositivo legal ou o contrato de transporte.

Aliás, é tamanho o contrassenso disso que, mesmo a lei sendo explícita sobre a questão da responsabilidade extrapatrimonial, mesmo as empresas fazendo parte de um sistema excepcional de mediação do Ministério da Justiça por meio da plataforma consumidor.gov, mesmo o Brasil tendo suas empresas entre as melhores do mundo em pontualidade, serviço etc., os sites abutres automatizados são criados e não coibidos, tirando o que podem das pessoas. Sim, na crença de que poucos se beneficiam desses sites, milhões são prejudicados porque pagam por essa insegurança jurídica que nos assola.

O setor aéreo não é perfeito e nunca será, mas a vontade de acertar sempre será grande. Não é racional que o Brasil detenha mais de 90% de todas as ações judiciais do planeta, que não se observe os limites e ditames dos danos extrapatrimoniais previstos em lei ou que não se observe as condições da ação para evitar os abusos. Como pensar que, se por mal tempo ou espaço aéreo fechado, a opção de não voar é exclusivamente para a segurança de todos, uma companhia pode ser responsabilizada sob a alegação de risco do negócio? Que lógica é essa onde um setor é punido por buscar cuidar de seus passageiros e sem qualquer relação jurídica causal?

Então, você não acha que está na hora de encararmos o problema de frente? Desde já achamos salutar a iniciativa governamental para trazer para a mesa o debate. Sim, este é o caminho. As companhias aéreas querem voar, as pessoas querem ser transportadas em segurança, rapidamente e os aeroportos precisam de passageiros para melhorar a infraestrutura e cumprir com suas responsabilidades contratuais.

A ALTA (Associação Latino-Americana e do Caribe de Transporte Aéreo) tem defendido a importância de agendas de estado para resolver problemas que podem prejudicar a toda a população e a muitos setores. É importante considerar os diversos fatores que contribuem para os custos operacionais das companhias aéreas.

É preciso ter uma visão mais abrangente, que pode destacar os desafios reais enfrentados pelas empresas do setor. O diálogo entre indústria e o governo para tratar essa questão são fundamentais e já vem acontecendo. Isso é um processo constante e importante.

Diminuir o preço das passagens e incluir mais pessoas neste serviço essencial é um desejo de todos, mas é preciso entender que essa conta não é tão simples como parece: a indústria aérea é caracterizada por demandar muito capital, com uma concorrência acirrada e margens estreitas. Tanto que o prejuízo acumulado de 2010 a 2022 pelas companhias aéreas do Brasil é de R$ 54 bilhões e neste período foram apenas três anos com lucro líquido (2010, 2017 e 2019). Ou seja, o setor enfrenta uma batalha constante para equilibrar eficiência operacional e acessibilidade para os passageiros.

Além disso, existe um trabalho a ser feito por todos os atores neste cenário e, também pelo poder judiciário. Inclusive, um projeto em curso, realizado pelo CPJ (Centro de Pesquisas Judiciárias) da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) em parceria com diversos envolvidos, vai trazer um levantamento importante sobre essa pauta.

Neste meio tempo, é urgente considerar a importância da análise econômica do direito, da aplicação dos artigos da Lei 14.034/2020, tratados internacionais, dentre outros. Essa balança precisa se equilibrar para entregar justiça social a todos, e uma mudança de postura traria resultados importantes para o Brasil.

É fundamental transcender as aparências e compreender os desafios operacionais enfrentados pelas empresas. A judicialização, os preços do combustível, custos regulatórios, insegurança jurídica e outros fatores contribuem para a complexidade do setor, impactando diretamente os custos e, consequentemente, os preços oferecidos aos consumidores. Não dá para simplificar a narrativa: é importante apoiar o setor com um diálogo franco para benefício de todos, como já fazem países como Panamá, Equador, Estados Unidos e outros.

*José Ricardo Botelho é CEO da ALTA (Associação Latino-Americana e do Caribe de Transporte Aéreo) e ex-presidente da ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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