Fábio Vasconcellos*
Vinte anos atrás, a candidatura à Presidência da República do então ministro da Saúde, José Serra, enfrentava uma situação bastante adversa. O governo Fernando Henrique Cardoso, do qual fazia parte, iniciou o ano eleitoral de 2002 com 35% de reprovação. Cerca de 40% dos brasileiros avaliavam o desempenho de FH como regular, e apenas 24% como ótimo/bom, segundo o DataFolha. Após disputa interna no PSDB, Serra conseguiu ser indicado pelo partido para suceder a Fernando Henrique. Iniciava ali uma curiosa estratégia eleitoral de um candidato com discurso fora do lugar.
A alta reprovação do governo criava dificuldades objetivas para Serra. O clima no eleitorado era de mudança, mas o tucano representava a continuidade. Embora ocupasse o lugar da candidatura governista, a quem caberia defender os dois mandatos de FH, Serra procurou fugir desse lugar, com propostas e discursos de um político do campo da mudança. Interpelado permanentemente pela oposição como o candidato governista, Serra apresentava-se, muitas vezes, hesitante, buscando meios de responder de outro lugar: nem governo, nem oposição. Para sair das cordas, partiu para o ataque e buscou descontruir seus adversários. Não deu certo.
Campanhas eleitorais sofrem efeitos diretos de cada contexto, forças políticas em jogo e o clima do eleitorado. Apesar disso, dois fatores são bastante úteis para analisar as condições dos discursos. O primeiro deles é o lugar do candidato (situação versus oposição), e o segundo, a interpretação mais ou menos geral do eleitorado: a vida está melhor ou pior? A depender da percepção, eles vão preferir a continuidade (voto para o governo) ou a mudança (voto para a oposição). Esses dois fatores gerais, portanto, parametrizam o discurso de campanha dando pistas de como ele poderá ser organizado, direcionado e seus possíveis efeitos.
O que temos em 2022? A candidatura de reeleição do presidente Jair Bolsonaro parece, muitas vezes, repetir a estratégia do discurso fora do lugar. O governo inicia este ano com reprovação acima de 50%, cenário econômico desfavorável, com inflação em alta, crescimento em queda. O comportamento de Bolsonaro, contudo, busca um lugar no qual não pode estar, o da oposição. O presidente critica fortemente a Petrobras, associa os problemas da economia às decisões dos governadores e prefeitos durante a Pandemia. Governadores, segundo o presidente, também são responsáveis pelo aumento dos combustíveis.
É verdade que Bolsonaro tem outras bandeiras que associa como feitos do governo, como o “enfretamento” da corrupção ou Auxílio Brasil, mas a busca pelo lugar da oposição revela o quanto o clima no eleitorado influencia seu discurso. A última pesquisa Quaest/Genial mostra que o presidente tem entre 26% e 28% das intenções de votos, dependendo do cenário. A soma das demais candidaturas que, por óbvio, estão no campo da oposição, varia de 59% a 63%. Os eleitores querem um discurso de mudança porque a vida não está boa.
A estratégia discursiva de dissociação dos problemas do dia a dia dos brasileiros com o lugar político que Bolsonaro ocupa procura, portanto, atingir dois objetivos simultaneamente: mobilizar eleitores que preferem a mudança (a vida não está boa) e aqueles que preferem a continuidade (a vida está boa). É possível que o presidente consiga atenuar a atitude negativa de parte do eleitorado, mas o discurso sem lugar definido tende a gerar confusão: se está ruim, por que continuar com o candidato governista? Se está bom, por que mudar?
Talvez Bolsonaro esteja repetindo parcialmente sua estratégia de 2018, certo de que poderá surtir o efeito de quatro anos atrás. Novato na disputa nacional, Bolsonaro foi o candidato contra “tudo que está aí”. A forte descrença do eleitorado, a ausência de candidatura governista, o antipetismo e a crise econômica pavimentaram as condições para o seu discurso de oposição. No governo, após um período de “presidente oposicionista”, decidiu se aliar ao Centrão, aceitou as regras do jogo político, mas no jogo eleitoral há sinais de que a chave ainda não virou.