iNFRADebate: Autorizações ferroviárias – um avanço para o desenvolvimento do país

Marcus Quintella*

A malha ferroviária brasileira começou a ser implantada em 1854, com a construção da Estrada de Ferro Mauá, no Rio de Janeiro, e alcançou a extensão de cerca de 37 mil quilômetros, na década de 1950. Atualmente, segundo dados da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), divulgados em matéria da Revista Ferroviária, edição de julho/agosto de 2022, o Brasil possui 29.878 quilômetros de ferrovias. Desse montante, 62,1% dos trilhos (o equivalente a 18.554 quilômetros) encontram-se subutilizados e 23,7% (7.076 quilômetros) ociosos. Em suma, o Brasil possui menos de 30% da capacidade instalada sendo utilizada para o transporte de carga. 

A Argentina, três vezes menor que o Brasil, tem 37 mil quilômetros de ferrovias. Em termos de densidade de transporte (que é a divisão da extensão total da malha ferroviária por mil quilômetros quadrados de área territorial – km/1.000 km2), o Brasil se destaca negativamente na escala mundial, com apenas 3,4, contra 72,1 do Japão, 22,9 dos EUA, 17,0 da Rússia, 13,3 da Argentina, 8,9 da China e 7,8 do Canadá. 

Diante desses números, pode-se concluir que o setor ferroviário nacional foi gravemente negligenciado, prejudicando, sobremaneira, o desenvolvimento econômico do país, que foi obrigado a movimentar suas produções agrícolas e industriais pelo modo rodoviário, de forma predominante e prejudicial. 

Tanto no período em que esteve sob gestão direta do governo federal, por intermédio da Rede Ferroviária Federal S/A, criada em 1957 e que operou por mais de 40 anos, assim como de outras empresas sob responsabilidade de alguns estados da federação, ou mesmo no período pós-concessão das ferrovias ao setor privado, salta à vista a incapacidade do Brasil em desenvolver competentemente o modo ferroviário. 

A consequência da preferência pelo modo rodoviário é o alto custo logístico, que contribui pesadamente para elevar o Custo Brasil, cuja estimativa chega a R$ 1,5 trilhão por ano retirado das empresas instaladas no país, segundo a CNT (Confederação Nacional do Transporte). Esse montante astronômico corresponde a cerca de 20,5% do PIB nacional, que acarreta em forte impacto nos preços finais dos produtos e serviços. Para efeito comparativo, o custo logístico nos EUA gira em torno de 8% do PIB americano.

Nesse cenário, torna-se absolutamente imprescindível que novos modelos de exploração do setor ferroviário sejam estudados e implementados, como é o caso do novo regime de autorizações para a iniciativa privada, ancorado pelo Novo Marco Legal das Ferrovias, Lei 14.273/2021, sancionada no final de 2021. Cabe ressaltar a MP 1.065/2021, que, embora não tenha se transformado em lei, serviu de base para a Lei 14.273/2021 e precisa ter importantes pontos conciliados com o Novo Marco Legal das Ferrovias, para que não haja prejuízo algum das autorizações assinadas sob amparo da referida medida provisória.

Como compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de transporte ferroviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de estados ou territórios, as autorizações ferroviárias chegam com o objetivo de implantar novas ferrovias no país, em complemento às concessões ou à administração direta, que já demonstraram não serem capazes de realizar a expansão das malhas recebidas e promover a universalização dos serviços ferroviários.

Além disso, o quadro ferroviário atual não gera interesse em novos investidores e empreendedores para o patrocínio do desenvolvimento logístico do país. Atualmente, a matriz brasileira de transporte de cargas é dominada pelo modo rodoviário, que detém uma fatia de 65%, ficando o modo ferroviário com apenas 18% (21% em algumas fontes). As autorizações ferroviárias podem contribuir decisivamente para maior racionalidade e melhor equilíbrio da matriz de transportes de cargas, oferecendo transporte para o agronegócio, produtos industrializados, combustíveis e contêineres, que hoje respondem por cerca de 20% de todas as cargas ferroviárias do país, pois 80% das cargas são minérios para exportação.

O regime de autorizações ferroviárias é mais simples e menos burocrático, pois permite maior flexibilidade e agilidade na implantação de novos ramais e trechos ferroviários, e garante melhor acesso ao mercado financeiro brasileiro e internacional, atraindo para novos investimentos para o setor ferroviário.

Com isso, empresas que necessitam de grande capacidade de transporte de granéis, como mineradoras e grandes grupos agroindustriais, terão a possibilidade de implantar novos trechos com origens e destinos congruentes com os principais fluxos de mercadorias que, hoje, são movimentadas majoritariamente pelo meio rodoviário, com toda penalidade social, econômica e ambiental que acompanha esse modo de transporte.

Esse novo regime também permitirá que grupos empresariais com foco em operações logísticas de transporte e armazenagem, ainda que não detentores de carga própria, criem oportunidades de negócios por meio de investimentos diretos em ramais ferroviários que, conectados às poucas linhas troncais em funcionamento, aumentem a eficiência do transporte de mercadorias para as regiões interiores do Brasil.

A complexidade desses projetos é normalmente muito grande, e é certo que as autorizações ferroviárias não serão uma solução que em um ou dois anos riscarão o mapa brasileiro com dezenas de novas linhas férreas. Certamente, autorizações ferroviárias são um grande avanço para o setor ferroviário nacional e devem ser vistas como um importantíssimo passo na direção certa, que viabilizará, no primeiro momento, a experiente e competente engenharia consultiva brasileira, com a contratação de projetos conceituais, básicos e executivos e estudos de viabilidade financeira, econômica e ambiental, que, de outra forma, não seriam possíveis.

Vale destacar que o regime das autorizações ferroviárias difere bastante das atuais concessões, que são estruturas públicas passadas à exploração privada, e dependem de licitação prévia e modelagem realizada pelo governo. Por isso, as autorizações ferroviárias permitirão que empresas privadas possam propor projetos privados de forma menos burocrática.

Quanto às medidas para maior redução dos trâmites burocráticos no desenvolvimento de projetos, o princípio da autorregulação deve ser priorizado, na medida em que haverá a possibilidade de criação de uma entidade autorreguladora pelas próprias administradoras ferroviárias, com o estabelecimento de padrões técnico-operacionais sem a ingerência do Estado, cuja limitação será restrita à mediação e regulação das questões de segurança e situações pontuais.

Ademais, as atuais concessionárias, caso sejam afetadas pela entrada em operação de alguma ferrovia autorizada, poderão migrar para o novo regime jurídico de autorização, sem prejuízo das obrigações contidas nos atuais contratos, no que se refere a investimentos e manutenção do transporte de cargas e passageiros. 

Por outro lado, cabe observar que as atuais concessionárias ferroviárias fazem uso da malha atual, predominantemente, com o transporte de cargas próprias, em virtude das barreiras de entrada para novos players, em especial por conta da maior burocracia do regime de concessão, que cria um encarecimento financeiro e, até mesmo, um “bloqueio indireto” para a circulação das mercadorias de terceiros interessados.

Destarte, espera-se uma abertura para entrada de novos players, redução da carga regulatória incidente sobre o investidor/operador da ferrovia, além de maior liberdade para a definição de cronograma dos projetos, bem como a garantia de mais prazo no cronograma de investimentos, de forma a gerar redução do custo do transporte ferroviário de cargas.

É imprescindível, entretanto, que o novo regime de autorizações ferroviárias seja acompanhado de uma regulação alinhada com o planejamento estratégico definido pelo Ministério da Infraestrutura, para viabilizar a obrigatoriedade do tráfego mútuo e direito de passagem nos novos ramais, trechos ferroviários autorizados e nas ferrovias existentes, que são operadas sob o regime de concessão. Essa regulação pode ser desenvolvida pela ANTT, que precisa ser dotada de corpo técnico adequadamente preparado para supervisionar o nível de cumprimento que autorizatários entregarão à sociedade e as obrigações dos concessionários com foco no atendimento ao público, evitando-se distorções de mercado que se assemelhem a monopólios privados. Nesse aspecto, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) pode, e deve, participar dessa supervisão.

Deve-se ainda estudar, com mais detalhes, se a migração dos atuais contratos de concessão para contratos de autorização contribuirá efetivamente para o aumento da competitividade do transporte ferroviário, sempre tendo como objetivo principal a expansão da malha, seu uso mais intenso, com a conquista de novos mercados e o desenvolvimento de novos serviços, como, por exemplo, o transporte de contêineres marítimos diretamente dos portos para os centros consumidores das mercadorias importadas. Isso será muito importante para disponibilizar os contêineres vazios que possam ser estufados com mercadorias produzidas no interior do país e que sejam direcionados para a exportação ou para o transporte de cabotagem.

Em certos círculos, há um certo ceticismo quanto à viabilidade de todos os novos projetos cuja autorização foi solicitada ao Ministério da Infraestrutura, sob a égide da nova Lei 14.273/2021. É possível que nem todos eles sejam viabilizados, seja por razões econômicas, seja por questões de engenharia, mas tal fato não invalida a expectativa de que o novo regime permita a implantação de novas infraestruturas ferroviárias que, no regime atual de concessões, jamais seriam sequer cogitadas.  

Como parte das exigências para solicitação das autorizações ferroviárias, devem ser apresentados cronogramas de estudos e de implantação, que podem ser monitorados pela ANTT, assim como por outros órgãos de controle, como a CGU (Controladoria-Geral da União) e o TCU (Tribunal de Contas da União), além, é claro, da própria sociedade, cuja participação nos projetos deve ser sempre estimulada.

Em última análise, cabe lembrar que todos esses novos esforços substituirão, em parte, a necessidade de investimentos públicos no setor, visto que as ferrovias, como todas as infraestruturas de logística e transportes, são investimentos de grande monta e indutores do desenvolvimento, e novas fronteiras econômicas podem ser abertas no Brasil com um transporte ferroviário eficiente e econômico, como a vasta experiência mundial demonstra há mais de um século. As autorizações ferroviárias, entretanto, apresentam-se neste momento como uma nova e muito importante alternativa para a realidade da estagnação do transporte ferroviário nas últimas décadas.

Este artigo expressa a opinião de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião institucional da FGV.

*Marcus Quintella é doutor em engenharia de produção pela Coppe/UFRJ, mestre em transportes pelo IME, pós-graduado em Administração Financeira pela FGV e engenheiro civil pela Universidade Veiga de Almeida. Atualmente, é diretor da FGV Transportes, editor-chefe da RBT (Revista Brasileira de Transportes) e coordenador acadêmico dos cursos de MBA da FGV.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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