Roberto Rockmann*
As incertezas em relação ao processo de renovação dos ativos de distribuição, geração e transmissão foram uma das razões que pesaram sobre a queda de R$ 12 bilhões de valor de mercado nas empresas do setor de energia na última sexta-feira (17).
Entre gestores e diretores de fundos de investimento, circularam falas de 2021 do agora secretário-executivo do Ministério de Minas e Energia, Efrain Cruz, quando ele era diretor da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), sobre um fundo de estabilização para conter as escaladas das tarifas. Também circularam frases do ministro, Alexandre Silveira, destacando a modicidade tarifária como princípio do governo e que a renovação seria uma oportunidade para isso.
São sinais de que a queda de braço entre mercado, distribuidoras e governo começa a ganhar contornos em relação a um tema que envolve bilhões de reais. Do lado do governo, o relógio corre. Do lado das distribuidoras, fissuras entre elas começam a surgir, com algumas buscando a prorrogação dos contratos, outras a renovação sob novas condições, mas todas defendem o processo sem cobrança de outorgas.
Do lado do mercado, incertezas em relação a como ficam as concessões com problemas financeiras, caso da Light, e como ficarão o processo de renovação, se ele terá custos e como ficará a precificação dos ativos após ele.
No tabuleiro, o TCU (Tribunal de Contas da União) também terá papel relevante, sendo o fiel da balança. Assim foi em 2015, assim poderá ser agora.
Decisões da ANEEL ampliam pressão sobre MME
As decisões tomadas pela ANEEL na reunião do dia 14, sobre o reajuste anual da Light e sobre a revisão periódica da Enel-RJ colocam ainda mais pressão sobre o Ministério de Minas e Energia, o poder concedente, em relação ao processo de renovação dos ativos de distribuição.
No caso da Light, foi determinado às áreas técnicas que recebam e tratem os apontamentos da Light sobre perdas não técnicas e de diferença de mercado faturado, como pedido de revisão tarifária extraordinária. O trâmite, segundo especialistas, seria longo e poderia chegar a 12 meses. Isso já foi feito anteriormente, como aditivo contratual, mas desde 1997 tem sido raro a agência conceder o pedido.
No caso da Enel-RJ, que passou por revisão ordinária, que ocorre a cada cinco anos, a distribuidora também alegou perdas sobre a apuração de perdas não técnicas em áreas de acesso de restrito dos técnicos, bem como de mercado faturado de energia. A diretoria da ANEEL entendeu que mudança de metodologia de cálculo fora do Proret (Procedimentos de Regulação Tarifária) acarretaria distorções.
Durante a reunião também ficou determinado que as áreas técnicas da agência deverão avaliar em 90 dias a necessidade de reformular o Proret para aprimoramento do tratamento dado às perdas não técnicas em áreas críticas de segurança e de restrição operacional.
Essa medida também não é simples. Primeiro, porque o Proret foi criado a partir de consulta pública em duas etapas e ficou um ano em discussão, ou seja, pode ser decidido que ele já foi amplamente debatido. Segundo, caso seja feita a reabertura, também implicaria um outro longo tempo de discussão sobre um assunto complexo que envolve a segurança pública do Rio de Janeiro e extrapola o setor elétrico.
Apesar dos limites, especialistas apontam que a ANEEL teria armas à disposição para ir além do discutido. “O próprio Proret, sem mudar, permitiria à agência nos dois casos ir além do que foi colocado”, diz a consultora Angela Gomes, da PSR. Parte das perdas das duas concessionárias que atuam no Rio de Janeiro, em algumas áreas controladas por milícias, não foram repassadas. Cada ponto percentual de perdas não técnicas custa R$ 35 milhões por ano à Light e R$ 17 milhões por ano à ENEL-RJ, nas contas de Angela.
Para Edvaldo Santana, a reunião da ANEEL deu a entender que as distribuidoras com grandes áreas controladas por milícias e traficantes parecem não ter mais como enfrentar as elevadas perdas por furto de energia. “Parece que o regulador, pelo menos grande parte dos seus diretores, vê a coisa da mesma maneira. Tanto que, na discussão de duas horas, ninguém usou a palavra “incentivo” para combater o furto. No entanto, para a Aneel fazer o que querem as distribuidoras, como trocar a energia faturada pela medida, é necessário alterar os contratos de concessão”, destaca.
TCU, o fiel da balança
Em paralelo, a expectativa cresce em relação à renovação dos ativos de distribuição e à atuação do TCU, que poderá ditar o andamento do processo. Acórdão do TCU de 2015 estipulou que o governo federal deveria estabelecer as regras de renovação três anos antes do término da primeira concessão.
A EDP-ES é a primeira da fila, com contrato expirando em maio de 2025, ou seja, o governo federal deveria ter anunciado as regras de renovação até maio de 2022. Mas o governo Bolsonaro solicitou sete meses de extensão do prazo. Em troca de mensagens a que tivemos acesso, funcionário do Ministério, no ano passado, aponta existir um “pedido do MME de prorrogação (de 7 meses) para atendimento” do acórdão.
O prazo então expirou em fevereiro desse ano. Pelo acórdão, o TCU poderia multar o Ministério pelo descumprimento a partir deste mês. Já pela lei o governo teria de se pronunciar sobre a renovação até janeiro de 2024. O tempo corre, ainda mais com a situação financeira da Light.
Nas últimas semanas, executivos da Light estiveram em Brasília em companhia com José Mario Abdo, sócio da Abdo, Ellery & Associados. Abdo foi o primeiro diretor geral da ANEEL. Entre as visitas, uma foi feita com o atual ministro da Defesa, José Mucio, que em 2015 esteve no TCU e foi um dos que conduziram o processo de renovação dos ativos de energia elétrica à época. Sua decisão contrariou a área técnica do TCU.
O Tribunal de Contas da União teve papel importante na renovação de concessões de distribuição à época. Houve dissenso entre a visão das áreas técnicas do TCU e a decisão do plenário, por meio do Acórdão 2.253/2015, que pavimentou o caminho para a renovação.
Além do TCU, outro ponto importante é que o processo de renovação teria de passar por consulta pública, como determina a lei de liberdade econômica, além de análise de impacto regulatório.
Um escritório de primeira linha de direito foi contratado por um grupo de investidores para analisar juridicamente o processo de renovação das concessões e inclusive avaliar novas condições dos contratos, como mudança na regulação nas áreas críticas em que as perdas não técnicas são elevadas.
*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.
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