Angélica Petian*
A Medida Provisória 844/2018, que atualizou o marco legal do saneamento básico, ampliou a atuação da Agência Nacional de Águas (ANA), atribuindo-lhe a competência para instituir normas de referências nacionais para a regulação da prestação dos serviços públicos desse setor.
A alteração objetiva criar um ambiente jurídico dotado de maior segurança no que toca à regulação dos serviços de saneamento básico, até então sob a responsabilidade das agências estaduais, municipais ou intermunicipais.
Dessa regulação local resultam normas pulverizadas que partem de premissas distintas para regular situações similares, dificultando, inclusive, a prestação regionalizada.
A depender da forma de prestação dos serviços, um único prestador pode sujeitar-se a diversos reguladores, de âmbitos distintos (municipal, regional e estadual).
A atribuição da competência para editar normas de referências nacionais a uma agência federal contribuirá para a uniformidade da regulação, além, a nosso ver, de qualificar o conteúdo normativo, considerando que, em cotejo com a imensa maioria dos municípios, a União está mais aparelhada para exercer a função reguladora.
Importante destacar que a ampliação das competências da ANA não aniquila a autonomia municipal.
Ao lado do reconhecimento explícito da titularidade dos municípios e do Distrito Federal dos serviços públicos de saneamento básico, a MP 844 reafirmou a competência deles para organizar, regular, fiscalizar e prestar esses serviços, autorizando que o façam diretamente, ou sob o regime de delegação.
Desta forma, o marco legal manteve a competência dos municípios para editar normas de regulação, mas criou mecanismos para incentivar a observância de regras macro, editadas pela agência federal, com o objetivo de garantir maior uniformidade e com isso criar um ambiente de segurança jurídica.
A nova competência atribuída à ANA está alinhada com a competência da União para estabelecer normas que constituam diretrizes gerais do setor de saneamento, em consonância ao que preceitua o artigo 21, inciso XX, da Constituição da República.
A macro regulação atribuída à ANA encontra fundamento constitucional, também, no artigo 21, inciso IX, da Lei Maior, que prescreve a competência da União para “elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social”.
O desenvolvimento social, caracterizado como a melhoria das condições de vida da população brasileira, é realizado com a instituição de programas que diminuam as desigualdades regionais, e que respeitem e instrumentalizem os valores universais da dignidade da pessoa humana.
Assim, não obstante o artigo 21, inciso IX, deixe de fazer menção expressa ao saneamento, é imperioso considerar a sua aplicação a esse conjunto de serviços, uma vez que o saneamento é, sem dúvida, um dos elementos propulsores do desenvolvimento social.
Em vista dos dois dispositivos constitucionais mencionados, há de ser reconhecida a competência da União, por meio de agências federais, para editar normas referenciais de regulação.
As novas prescrições, trazidas pela MP 844, impõem à ANA o dever de estabelecer normas referenciais que disponham, entre outros temas, sobre qualidade e eficiência na prestação, manutenção e operação dos sistemas de saneamento básico e sobre a regulação tarifária dos serviços.
Além de editar normas que objetivem estimular a livre concorrência, competitividade, eficiência, cooperação entre os entes federativos universalização dos serviços e a modicidade tarifária, a MP 844 incumbiu a ANA de elaborar instrumentos negociais padrões de prestação de serviços públicos de saneamento básico (contratos de programa e contratos de concessão) que serão firmados entre o titular do serviço público e o delegatário.
Essa padronização, que deve ser lida conjuntamente com a competência dada à ANA para realizar a articulação entre o Plano Nacional de Saneamento Básico, o Plano Nacional de Resíduos Sólidos e a Política Nacional de Recursos Hídricos, mitigará o risco da prestação desarticulada, que implica ineficiência e, consequentemente, alto custo.
Para garantir a uniformidade regulatória a ANA disponibilizará, em caráter voluntário e sujeito à concordância entre as partes, ação mediadora e arbitral aos municípios, aos Estados e ao Distrito Federal, nos conflitos entre estes ou entre eles e as suas agências reguladoras e prestadoras de serviços de saneamento básico.
Como forma de compelir os entes federados a observar as normas de referências nacionais, a MP condicionou o acesso aos recursos públicos federais ou à contratação de financiamentos com recursos da União. Assim, respeitada a competência do titular do serviço, a MP criou mecanismos de incentivo à observância das normas a serem editadas pela Agência federal.
Considerando que boa parte dos municípios não tem capacidade de investimento e depende da transferência de recursos financeiros para a ampliação e melhoria dos sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário, o mecanismo desenvolvido pelo art. 4º-B da Lei nº 9.984/2000 tende a ser bastante eficaz.
A atualização do marco legal, nesse e em outros pontos, dotará as relações jurídicas de maior segurança, aumentando a atratividade do setor para o capital privado, imprescindível para a universalização dos serviços de saneamento básico.
Não obstante esses pontos, positivos em nossa avaliação, a atualização do marco legal, com alterações nas Leis nº 9.984/2000 e 11.4445/2007, foram veiculada por medida provisória que, embora tenha força de lei, não tem o caráter da perenidade.
A medida provisória, datada de 6 de julho, teve sua vigência prorrogada em 60 dias, a partir de 6 de setembro, o que torna urgente o debate entre o Legislativo, o Executivo, a sociedade e o setor produtivo, sob pena de a inércia comum em fim de mandato fazer sucumbir o avanço que se obteve, retornando ao status quo, que tantas dificuldades impõe à regulação dos serviços de saneamento básico.
*Doutora em Direito. Sócia do Vernalha Guimarães e Pereira Advogados Associados
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