Opinião
04/11/2025 | 12h41

Free flow em perigo? Há mais razões para acreditar que não

Foto: Divulgação

Tarcila Reis Jordão* e Vera Monteiro**

O Brasil comemora ter o maior programa de parcerias do mundo. O setor rodoviário é seu carro-chefe em tamanho e maturidade regulatória, com qualidade contratual premiada mundo afora. Aprendemos a fazer concessões rodoviárias na década de 1990 e temos aperfeiçoado a experiência a cada novo projeto. 

Nos avanços incrementais, o free flow (pedágio com sistema de livre passagem) sempre teve suas bandeiras: maior fluidez das rodovias, redução de acidentes, menor custo (praças de pedágio físicas são mais caras) e mais precisão na desejada justiça tarifária. 

Foram várias as tentativas para antecipar esses benefícios, a exemplo dos descontos por usuário frequente ou para quem usava sistema eletrônico de cobrança – mas sabíamos que o free flow era o futuro. 

E o futuro chegou: tem lei regulando o sistema, tem resolução, tem mais de dezena de contratos assinados depois de licitações acirradas, além do registro de redução expressiva de acidentes. O que falta?

Falta segurança jurídica. Na última semana, o juízo federal de Guarulhos deferiu tutela de urgência, em sede de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, proibindo a aplicação das sanções previstas no Código Nacional de Trânsito (art. 209-A) aos usuários da Rodovia Presidente Dutra (BR-116) que não pagassem no trecho de Guarulhos, foco da ação. A decisão não isentou o usuário da obrigação de pagar o pedágio. Ou o usuário paga com o tag (do mesmo tipo que é usado em pedágios convencionais), ou tem até 30 dias para fazer o pagamento. Se não o fizer, no trecho beneficiado pela decisão, ele estará livre da multa por infração grave de trânsito e da pontuação em sua carteira.

Foram três os principais argumentos da decisão. Primeiro, assumiu que seria inconstitucional qualificar como infração de trânsito o não pagamento do pedágio no prazo de 30 dias da passagem pelo pórtico. Para explicar a inconstitucionalidade há referências a princípios e postulados constitucionais genéricos, além da ideia de que haveria um conceito abstrato de conduta de trânsito que não incluiria a conduta de não pagar pedágio no tempo e modo fixado pelas regras. Haveria um desvio de finalidade na norma sancionatória.

O segundo argumento decorre do primeiro. O não pagamento seria mera dívida entre privados, passível de ser cobrada segundo o código civil, e não pelo mecanismo desenhado pelo Código Nacional de Trânsito.

O terceiro argumento revela que o juiz não gostou mesmo da lei. Afirmou que ela é enxuta, com “ínfimos artigos”, trazendo uma desproporcionalidade na sanção, por implicar na aplicação de multa e em pontos na carteira. Seria ainda um absurdo que essas consequências sancionatórias ocorressem “a cada passagem”. Ele também não gostou da vinculação das multas à recomposição das perdas havidas pela concessionária com a evasão do pedágio, porque o risco da inadimplência deveria ser da concessionária. 

No fundo, é como se voltássemos aos anos 1990, quando o Judiciário foi amplamente utilizado pelas autoridades locais para barrar a construção de praças de pedágio que oneravam o deslocamento de munícipes. Liminares aos montes foram dadas para suspender a cobrança com base em argumentos como a natureza jurídica do pedágio (taxa ou preço público), a necessidade de lei para criar novas praças e definir sua localização, a violação do direito de ir e vir, a competência e repartição federativa e a necessidade de via alternativa.

O free flow de hoje equivale à praça de pedágio dos anos 1990. O que surpreendente não são as disputas políticas que o tema ainda suscita, o uso que os atores fazem do Judiciário para atingir seus objetivos, nem as novas teses ajustadas ao seu tempo. Mas como políticas públicas ainda geram desconfiança dos órgãos de controle. Mesmo as cuidadosamente desenhadas, baseadas em autorização legislativa específica, em regulamentação editada por órgão competente, implementadas por meio de parceiro privado delegatário de serviço público, via contrato de concessão. 

O caso concreto tem uma particularidade. As receitas desse trecho da rodovia pedagiada com o free flow não foram incorporadas à projeção das variáveis do modelo econômico-financeiro referencial. Ou seja, o contrato é economicamente viável sem elas, pois considerou que a nova tecnologia poderia atrair riscos ao negócio, seja pela inovação tecnológica, seja porque há rota alternativa disponível para o usuário. A modelagem não atribuiu à concessionária o risco de uma tutela de urgência como a que foi concedida. Mas nem o MPF (Ministério Público) nem o juiz perceberam que essa escolha do projeto foi estratégica, uma espécie de antídoto para a insegurança jurídica causada pelo ativismo judicial. Na prática, a decisão é ruim mais pelo ruído que gera para outras concessões que usam a mesma tecnologia de forma mais ampla do que pelo impacto na concessão da Rodovia Dutra. Incentiva que futuras modelagens atribuam menos risco às concessionárias, comprometam recursos públicos em negócios em princípio autossustentáveis, onerando o projeto e todos os usuários, não apenas os não pagantes. 

Importante avisar que, se a concessionária tiver que suportar a inadimplência de usuários que passam numa rodovia concedida com sistemas de livre passagem, nem precisaremos discutir risco do negócio, pois negócio não haverá. Voltaremos à era sem concessões. 

*Tarcila Reis Jordão é professora da FGV Direito SP. Pesquisadora visitante no MIT. Doutora pela SciencesPo/Paris, com pesquisa na HLS. Mestre pela LSE. Mestre pela Universidade de Paris 1. Sócia da Portugal Ribeiro e Jordão Advogados.

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