iNFRADebate: Mais deferência para agências com melhor reputação?

Eduardo Jordão*

O grau de deferência que os órgãos de controle prestam às agências reguladoras deve depender da reputação destas entidades controladas?

O Ministro Bruno Dantas, do TCU, parece entender que sim. Em painel do Abdib Fórum 2019, na semana passada, Dantas chegou a mencionar nominalmente duas agências que gozariam de reputações diversas – e, por isso, sofreriam controle de intensidades diversas: “O que justifica que com a ANTT o TCU seja rigoroso e com a ANEEL a fiscalização não seja tão apertada? A resposta é simples: governança e credibilidade de que as agências desfrutam”, reportou a Agência iNFRA**.

A proposta pode soar teoricamente interessante, na medida em que promete inserir elementos de maior realismo no controle que o TCU realiza sobre as agências reguladoras. Faz sentido cogitar da limitação do controle só no caso de instituições controladas que mereçam algum crédito, alguma confiança. Além disso, se a deferência serve precisamente para alocar poder decisório à entidade pública que detém as características institucionais mais adequadas para enfrentar determinada questão, seria natural que, para identificar esta maior adequação, se levassem em consideração todos os critérios contextuais relevantes, inclusive elementos reputacionais.

Há algumas circunstâncias, no entanto, que criam problemas para a proposta.

A primeira é a de que, sabidamente, a análise institucional que orienta a determinação da intensidade do controle é uma análise comparativa. Assim, por exemplo, não é suficiente sustentar que uma agência detém expertise sobre determinado assunto para que lhe seja prestada deferência nas decisões que tomar sobre a matéria. É preciso sustentar que a sua expertise naquela matéria é superior à do controlador.

Portanto, caso o critério da reputação institucional viesse mesmo a se tornar relevante, seria necessário proceder a uma análise comparativa das reputações institucionais – no caso, da agência reguladora em questão e do próprio TCU, para identificação da vantagem institucional relativa a este elemento. Naturalmente, no entanto, não parece razoável que uma análise dessa natureza seja realizada pelo próprio TCU.

A segunda circunstância é a de que a avaliação da reputação institucional é um exercício fortemente subjetivo. Não há critérios claros e precisos para se medir e comparar reputações institucionais.

Em abstrato, pode parecer razoável afirmar que merece pouca deferência uma entidade com reputação ruim. Mas é muito mais difícil admitir, concretamente, que merece menos deferência uma entidade que o TCU entende ter reputação ruim.

Em auditoria operacional recente, o TCU realizou uma medição da governança de diferentes agências reguladoras, sob critérios e parâmetros que o próprio tribunal entendeu adequados. Quer dizer: o TCU seleciona livremente os critérios a serem utilizados para julgar a reputação das agências e, na sequência, leva em consideração o resultado deste exercício especulativo para determinar quais agências sofrerão intervenções mais intensas suas.

As dificuldades de pautar a modulação da intensidade do controle em critério tão subjetivo são evidentes, inclusive sob a perspectiva da segurança jurídica – objeto do painel em que o ministro fez a afirmação acima.

A propósito, note-se que, mesmo jurisdições notórias por sua inclinação à deferência à administração pública, como os Estados Unidos e o Canadá, não hesitam em limitar o realismo do controle, restringindo o leque de características institucionais que são de fato levadas em consideração para fins de determinação da intensidade do controle***. As circunstâncias oficialmente relevantes são sempre objetivamente aferíveis.

Nos Estados Unidos, os tribunais jamais admitiram variar a deferência judicial em função da reputação de determinada entidade administrativa. A literatura até especula que esse tipo de avaliação seja feito, na prática, ainda que não de forma explícita. Assim, uma das explicações mais difundidas para o controle inesperadamente intenso que a Suprema Corte aplicou no caso Allentown Mack relaciona-se com a reputação da agência correspondente, o National Labor Relations Board****. Mas a eventual relevância desta variável jamais foi admitida oficialmente pelos tribunais, muito menos elevada à condição de um critério decisório.

No Canadá, a Suprema Corte deixou claro, em diversos casos, que a expertise a ser considerada para fins de prestação da deferência judicial era a expertise institucional, da entidade administrativa como um todo objetivo, e não a expertise individual e subjetiva dos seus membros, relativa à sua formação e experiência pregressa, por exemplo*****. Há um conhecido caso da jurisprudência americana exatamente no mesmo sentido******.

A proposta do Ministro Bruno Dantas possui o louvável objetivo de perseguir mais realismo no controle operado pelo TCU sobre as agências reguladoras. Mas um olhar mais atento parece desencorajar a sua adoção concreta. De um lado, porque o realismo ficaria pela metade se não envolvesse o exame reputacional, e comparativo, também do próprio TCU. De outro, porque esta autoavaliação reputacional e mesmo a avaliação da reputação alheia envolve dificuldades operacionais não negligenciáveis. Parece ser uma daquelas circunstâncias em que uma ideia interessante é simplesmente inviável.

*Professor da FGV Direito Rio e sócio da Portugal Ribeiro Advogados. Doutor pelas Universidades de Paris e de Roma. Mestre pela USP e pela LSE. Foi pesquisador visitante em Harvard, Yale, MIT e Institutos Max Planck. Este texto reflete unicamente a opinião pessoal do autor, e não necessariamente aquela das instituições às quais está vinculado.
**Declaração semelhante já havia sido dada pelo Ministro em entrevista concedida à Folha de São Paulo, publicada em 26/08/2018.
***Sobre o tema, para maiores detalhes, ver o meu Controle judicial de uma administração pública complexa, São Paulo, Malheiros, 2016.
****Allentown Mack Sales & Services, Inc. v. NLRB, 522 US 359, 376 (1998).
*****Sobre o tema, ver, por exemplo, Audrey Macklin, “Standard of review: the pragmatic and functional test”, in Coleen Flood and Lorne Sossin (coord.), Administrative Law in Context, Toronto, Emond Montgomery, 2008, p. 219: “Although the Supreme Court clearly prioritizes expertise in formulating the standard of review, its inquiry is limited to the statutory role of the administrative actor, not to the particular individual occupying it. Courts will glean evidence of expertise from statute and surrounding context, but will not scrutinize the qualifications, competence, training, or experience of the specific decision-maker”.
******Cf. Elliot v. Commodity Futures Trading Commission, 202 F.3d 926 (7th Cir. 2000).
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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