Mauricio Portugal Ribeiro*
Tornou-se público na semana passada o ajuizamento pelo Grupo Odebrecht de pedido de recuperação judicial de diversas empresas que integram o grupo.
Na mesma semana, o ministro Sérgio Moro, em depoimento realizado no Senado Federal, manifestou que a quebra de grandes grupos de infraestrutura seria uma fatalidade decorrente do impacto sobre a sua reputação do envolvimento em grandes casos de corrupção. Em seu discurso, o desaparecimento de alguns grupos econômicos no setor de infraestrutura seria apenas um “dano colateral” de algo muito mais relevante: o combate à corrupção.
Essas afirmações do ministro se fazem claramente sob a suposição, muito comum entre pessoas que não conhecem em profundidade os setores de infraestrutura, que a quebra de grandes empresas será seguida pela sua substituição no mercado de construção por outras empresas, talvez melhores, talvez mais eficientes e certamente mais “limpas”, o que configuraria, dessa perspectiva, uma evolução positiva do ambiente de negócios nos setores de infraestrutura do país.
Essa lógica talvez se aplique em prazos longos ao caso das grandes construtoras. A tendência é que, de fato, as construtoras sejam substituídas no mercado. Mas isso requer tempo. A ideia de que basta reduzir as exigências nas licitações de atestação técnico-operacional e teremos no dia seguinte várias empresas médias brasileiras ou internacionais aptas a ocupar o papel das grandes brasileiras é uma falácia. Tanto as empresas médias como as internacionais precisarão de anos para chegar ao nível de eficiência para grandes obras no ambiente brasileiro de uma Odebrecht, Camargo Corrêa ou Andrade Gutierrez. Isso mesmo considerando que as empresas médias brasileiras ou internacionais contratarão engenheiros e executivos que integravam as grandes empresas de construção brasileira e que possuem a atestação técnico-profissional necessária à execução dessas obras¹.
Além do custo e prazo da substituição das empresas no mercado de construção pesada, a quebra de grandes grupos econômicos de construção e infraestrutura produz também outros efeitos não percebidos pelo raciocínio simplista acima exposto, que consubstanciam enorme prejuízo para o país, particularmente para o ambiente de investimento privado em infraestrutura. Já tratei disso em artigo que publiquei em 2015, que previa e sugeria ações para evitar a quebra dos grandes grupos de infraestrutura².
O problema para o país da quebra dos grandes grupos de infraestrutura é que as concessões e PPPs, tanto aqui quanto em outros países, estão intrinsecamente ligadas a esses grupos. Várias das concessionárias são controladas por esses grupos e receberam garantias para obtenção dos financiamentos ou das empresas holding, ou das construtoras desses grupos. Problemas com essas construtoras ou holdings podem implicar em alguns casos em aumento do custo de financiamento, em outros casos podem até mesmo se constituírem em evento adverso que implique em vencimento antecipado das dívidas das concessionárias. Junte-se a isso as cláusulas de cross default ordinariamente previstas nos contratos de financiamento de concessões e PPPs, que têm o efeito de disparar o vencimento antecipado de todas ou de várias dívidas de concessionárias diferentes do mesmo grupo econômico, em virtude de problemas no cumprimento do contrato de financiamento de uma das concessionárias. Esses mecanismos tornam o setor de infraestrutura um frágil sistema, que pode colapsar rapidamente em situações de crise.
Nesse contexto, o efeito da quebra dos grandes grupos de construção pode se espalhar rapidamente e atingir a economia do país como um todo, alcançando, inclusive, o seu sistema bancário. Por exemplo, há bancos que provavelmente não vão conseguir se recuperar se forem adotadas as regras que a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) colocou em maio de 2019 em consulta pública para cálculo das indenizações por investimentos não amortizados, no caso de extinções antecipadas dos contratos de concessão. Outros bancos, os maiores, terão perdas relevantes, mas provavelmente não vão quebrar. Será que depois das quebras e perdas no setor financeiro, esses bancos, as seguradoras, e os garantidores envolvidos nos financiamentos do setor estarão dispostos a fazer no curto prazo novos financiamentos, garantias e seguros para os setores de infraestrutura no Brasil? O normal é que esses bancos e seguradoras se afastem ou reduzam a sua atividade no setor, se tornem mais avessos a riscos, por pelo menos alguns anos, justamente no momento que o país mais precisa de financiamento privado em infraestrutura, em vista da fragilidade da situação fiscal dos entes governamentais e dos problemas atuais dos bancos públicos, que até aqui eram os financiadores principais desses projetos, diretamente ou indiretamente, por meio de repasses a bancos privados que assumiam o risco do empreendedor e em algumas situações do projeto. Além disso, a fragilidade atual dos balanços dos grupos privados de infraestrutura, impactados pela crise econômica, demandaria que, para viabilizar financiamentos, os financiadores privados tomassem riscos maiores, inclusive eventualmente riscos de projeto no período de construção dos contratos de concessão. Como esperar que isso aconteça em um ambiente que inspira cautela e aversão a riscos?
Desde 2015, quando os problemas de liquidez dos grupos de infraestrutura começaram a se agravar, alertei várias vezes aos decisores no BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), na AGU (Advocacia-Geral da União), nos ministérios, nas agências reguladoras e no TCU (Tribunal de Contas da União) acerca da fragilidade sistêmica do setor e das consequências dessa ou daquela decisão que caminhava no sentido de desestruturá-lo. Mas, não adiantou.
A obsessão que se criou no país com o combate à corrupção e o efeito infamante do envolvimento das empresas na Lava Jato selou o destino de várias das nossas empresas. O temor de responsabilização pessoal pelos controladores da administração pública, particularmente pelo TCU, impediu até mesmo os agentes públicos mais preparados, aqueles poucos que entenderam o tamanho do problema em suas mãos, de tomar as decisões corretas. Vejam o caso da recente desistência pelo Ministério da Infraestrutura de realizar a reestruturação de contratos de concessão de rodovias por meio da sua revisão quinquenal. A desistência ocorreu pelo entendimento que o TCU inviabilizaria essas revisões quinquenais: classificaria como ilícitas as reestruturações dos contratos, e, usando politicamente a abalada reputação da agência reguladora e dos grupos de infraestrutura, adotaria a narrativa – como, aliás, tem várias vezes adotado³ – de que haveria um conluio entre a agência reguladora e as concessionárias para lesar os usuários. Promoveria a seguir uma cruzada que levaria à aplicação de sanções pessoais aos agentes públicos que se envolvessem na viabilização da revisão quinquenal⁴. Tudo isso no espírito de rigoroso combate à corrupção.
Note-se que esses contratos de concessão, além de terem problemas estruturais na sua origem, foram atingidos nos seus primeiros anos pela maior crise econômica da história do país e acumularam descumprimentos de todos os lados, dos concessionários, da ANTT e do poder concedente. Várias vezes alertei sobre os benefícios para o país de reestruturá-los⁵. Após a reestruturação, gerariam investimentos relevantes no curto prazo. A decisão de não reestruturá-los e de tratar os descumprimentos de parte a parte por meio da aplicação de sanções criará um enorme passivo no setor de rodovias: aproximadamente 5.000 km, mais ou menos um quarto da malha concedida do Brasil, será objeto de processos administrativos de caducidade, que devem demorar pelo menos 2 a 3 anos, e provavelmente processos judiciais de rescisão, e tudo isso deve se converter em pendengas judiciais que vão provavelmente se arrastar por mais de uma década, com deterioração ao longo desse tempo da segurança e qualidade do serviço aos usuários. A própria ANTT em notas técnicas recentes emitidas pela sua SUINF (Superintendência de Exploração de Infraestrutura Rodoviária) reconheceu que a pior solução para o usuário seria a ANTT buscar a aplicação da pena de caducidade a esses contratos. A desistência de reestruturar esses contratos foi só uma em um enorme mosaico de decisões equivocadas tomadas nos últimos anos.
Por outro lado, como culpar o Ministério da Infraestrutura quando qualquer observador lúcido, analisando o passado recente do TCU, esperaria que ele agisse exatamente como descrito acima? A última esperança em relação a esse caso é que as regras elaboradas para a devolução amistosa dessas concessões para relicitação, particularmente as regras para indenização por investimentos não amortizados nessas concessões, sejam elaboradas de maneira a dar os incentivos para os concessionários preferirem a via amistosa de extinção desses contratos à contenciosa. As regras de indenização publicadas pela ANTT para consulta pública recentemente, contudo, lamentavelmente não caminham nesse sentido, pois buscam reduzir artificialmente o valor da indenização⁶.
Em outros casos, como o do Aeroporto de Viracopos, a mera execução pela ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) das garantias de execução do contrato de concessão inviabilizou o grupo econômico controlador da concessionária de obter no mercado novas garantias de proposta ou de cumprimento do contrato, o que, por sua vez, impediu a sua participação em quaisquer licitações. Isso em um contrato de concessão que acumulava descumprimentos de parte a parte. A União e a ANAC não foram capazes, por exemplo, de cumprir sua obrigação de disponibilizar ao concessionário a área prevista quando da licitação da concessão para exploração imobiliária em torno do aeroporto. Até mesmo a localização planejada do novo terminal aeroportuário teve que ser modificada em vista desse descumprimento do contrato pela União e pela ANAC. O rigor no tratamento dos supostos descumprimentos do contrato pelo concessionário se fez nesse caso também em um misto de temor e tentativa de autoproteção da agência reguladora contra os controladores da administração e de populismo contra o concessionário, cujo grupo controlador, suspeito (apenas suspeito) de corrupção, que não tem nenhuma relação com a Lava Jato, e que supostamente teria realizado proposta agressiva na licitação na esperança de renegociar o contrato (sem evidentemente que haja qualquer prova dessa narrativa). O resultado prático foi inviabilizar a participação de um dos grandes grupos econômicos no setor de infraestrutura em qualquer licitação de obra ou de concessão. O seu destino dependerá, agora, da sua capacidade de gerar liquidez por meio da venda dos ativos que detém.
Como disse recentemente Gabriel Galípolo, o nosso combate à corrupção é funcionalmente igual ao que tem sido para os países desenvolvidos o combate à imigração. A piora da situação das pessoas, da situação econômica vivida aqui, tem muito pouco a ver com a corrupção em si. Aliás, os dados já divulgados pela Petrobras sobre isso são emblemáticos. Os custos da corrupção são irrelevantes, por exemplo, quando comparados aos custos de manter subsídio ao preço dos combustíveis nos últimos anos. Nos países do Atlântico Norte, por sua vez, o aumento do desemprego e da situação geral de insatisfação da classe média também tem muito pouco a ver com a imigração. Mas tanto a corrupção quanto a imigração são bodes expiatórios fáceis, na mão de políticos populistas, em uma situação cuja explicação real para os problemas vividos pela população é muito mais complexa.
Em minha opinião, o sucesso do combate à corrupção e da limitação da imigração como motes está em que elas se conectam com um sentimento muito comum, mas pouco falado, porque socialmente extremamente reprimido, que é a inveja.
Atualmente, o combate à corrupção tem sido uma distração dos problemas verdadeiros do país. O “apagão das canetas”, por exemplo, é um problema muito mais grave para o crescimento do país e muito mais difícil de resolver que a corrupção.
E vejo vários políticos, agentes públicos dos setores de infraestrutura, juízes, membros dos órgãos de controle da administração e cidadãos de classe média entoando o discurso do combate à corrupção como um remédio contra todos os nossos males. Parece-me sempre uma visão míope, pequena. Supõem, além disso, que o combate à corrupção está fortemente ameaçado a cada minuto, o que permite continuar afiando as baionetas dos justiceiros e mobilizando a população contra os corruptos. Isso realimenta o ambiente no qual florescem os populistas e se inviabiliza a tomada por órgãos e entes públicos de decisões discricionárias que tenham qualquer aparência de benefício para qualquer um que possa estar em posição de ser considerado envolvido, ainda que remotamente, em suspeitas de corrupção, mesmo que a decisão em si seja necessária à realização do interesse público e protetiva de interesses dos usuários e do erário. Falo isso, evidentemente, sem a ingenuidade de achar que não haja de fato aqui e ali movimentos para preservar os membros do antigo regime das punições contra a corrupção, e sem nenhuma dúvida de que é importante continuar o combate à corrupção.
Enfim, ao contrário do que é comum se pensar, não estamos perdendo apenas os grandes grupos de construção do país. Estamos perdendo a nossa capacidade de mobilização para fazer um programa relevante de investimento em infraestrutura. Junto com a quebra de uma Odebrecht ou de qualquer outro grande grupo do setor de infraestrutura se vai todo um ecossistema frágil que viabiliza o investimento privado e a prestação por entes privados de serviços nos setores de infraestrutura. A reorganização desse ecossistema pode demorar vários anos. Isso justamente quando o país, em vista da sua delicada situação fiscal, depende desse ecossistema, pois simplesmente não tem recursos públicos para investimento em infraestrutura.
O combate à corrupção segue sendo importante. Mas a sua apropriação como mote por políticos populistas, assim como o heroísmo midiático em torno das figuras do Ministério Público e do Poder Judiciário que cumpriram suas obrigações – atualmente também sob suspeita de terem desbordado indevidamente dos seus papéis funcionais –, criou um ambiente que inviabiliza qualquer decisão discricionária do poder público que possa ser entendida, ao olhar do grande público, como remotamente benéfica para qualquer um que faça parte do setor de infraestrutura e que, portanto, nesse entendimento raso do funcionamento do setor, possa, supostamente e eventualmente, estar envolvido em qualquer suspeita de corrupção. Sem o poder de adotar decisões discricionárias adequadas vai ser muito difícil tanto sanear os problemas do passado quanto garantir a segurança jurídica necessária para gerar o ambiente necessário para viabilizar novos investimentos privados em infraestrutura. E, lamentavelmente, queiramos ou não, em grande medida, o futuro do nosso país depende disso.