iNFRADebate: Ataques às instituições e o modelo “o mercado regula” – Como assim?

Osvaldo Agripino*

Não poderia ficar calado, especialmente num momento de crise como a atual. Não há progresso sem ciência (apesar do negacionismo dos que acreditam que a terra é plana) e Estado eficiente, o que não significa Estado grande.  Embora já tenha escrito sobre a crise sanitária mundial e criticado algumas decisões da regulação setorial (neste link), tenho visto nas redes sociais muitas críticas ao Poder Judiciário e às instituições de Estado importantes do país, quando possuem servidores investigados.

Além disso, em tempos de pandemia, quando, ironicamente, as funções de Estado assumem relevância, nunca vi tantas manifestações nas redes e em artigos defendendo o equivocado mantra do modelo “o mercado regula”. Como assim? 

Vejamos o caso do papel do Estado na China, que praticou uma política cambial com moeda ultracompetitiva, não seguiu o modelo ocidental de respeito a patentes e forçou transferência tecnológica de empresas do Ocidente para suas próprias como condição para acesso a seu mercado e mão de obra barata. 

Na lição dos economistas Paulo Gala e André Rocaglia (Brasil, uma economia que não aprende – Novas perspectivas para entender o nosso fracasso, 2020), a China fez isso durante 30 anos e deu certo. EUA, Japão e Alemanha finalmente perceberam o truque e começaram a tentar proteger suas empresas com tarifas, fundos estatais de proteção e proibição de controle estrangeiro em setores-chave. 

Foi o mesmo truque que esses países usaram para derrubar a Inglaterra no século XIX; que também deu certo, só que se esqueceram disso. A Inglaterra, por sua vez, fez a mesma coisa para derrubar os holandeses dos anos 1600. Quando um país fica rico, assim como as suas empresas (matrizes), a defesa do “livre mercado” passa a ser a posição natural para evitar a subida dos mais fracos. Os ricos chutam a escada para defender seu domínio do core tecnológico mundial. A China não respeitou essas “instituições do Ocidente”. 

Segundo Lord Bingham (1933-2010), o maior advogado do seu tempo no Reino Unido e presidente da Suprema Corte (Chief Justice of England and Wales), autor do The Rule of Law, Prêmio Orwell de literatura (2011), você pode até discordar dos juízes e achar que todos os advogados são uns picaretas, mas imagine um país sem tais profissões. Como buscar o Estado do Direito sem um Judiciário forte (não é grande) que preserve a institucionalidade desse poder e dos atos das agências reguladoras? Seria o caos: a barbárie.

E como seria o desenvolvimento de uma economia de um país que ficasse ao livre arbítrio das forças do mercado? E se esse país tivesse os maiores índices de desigualdade social do mundo, baixo nível de alfabetização, com 29% da população analfabeta funcional, sendo 8% analfabeta absoluta (não consegue ler e escrever), falta de serviços básicos como saneamento (menos de 50% da população tem acesso) e alta concentração em setores estratégicos como a navegação marítima e os portos, especialmente no segmento de contêiner?

E se nesse mesmo país a classe política concedesse subsídios para uma multinacional fazer refrigerante na Zona Franca de Manaus? Pois bem, é na crise que os prejudicados, especialmente as minorias e as empresas grandes ou pequenas buscam a proteção do Estado, seja via Judiciário, Executivo, incluindo as agências reguladoras (que são de Estado e não de governo), e Legislativo. É nesse momento que as instituições de Estado estão sendo testadas. 

Voltando ao cenário das críticas, citarei somente o Supremo Tribunal Federal e as agências reguladoras, dentre as quais a ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários). Como assim? Muitos desses críticos podem estar insatisfeitos com decisões desses órgãos por terem os seus interesses contrariados. Regular não é fácil, e o regulador deve ter sabedoria política e conhecimento técnico. 

Ressalto que o tema Poder Judiciário foi objeto da minha dissertação de mestrado em Direito Constitucional na PUC-Rio (1994-1995), tendo publicado o livro Democratização do Poder Judiciário, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, 180 p. 

O tema é fascinante e também foi objeto da minha tese de doutorado em Direito e Desenvolvimento na Universidade Federal de Santa Catarina (1998-2001), com período como Visiting Scholar na Stanford Law School, em 2000, publicada pela Editora do Conselho Federal da OAB, em 2004, com o título Introdução ao Direito e Desenvolvimento – Estudo comparado para a reforma do sistema judicial, 854 p. 

Essa tese, forte na crença da relevância do Estado e das suas instituições (institutional framework) serviu de fundamento para as pesquisas de pós-doutorado em regulação de transportes e portos comparadas no Center Mossavar-Rahmani for Business and Government, da Kennedy School of Government da Harvard University, em 2007-2008.

Sobre os abusos nas redes sociais, o intelectual italiano Umberto Eco sustenta que os idiotas perderam a vergonha nas redes sociais e argumentam, para se defenderem, que usam o direito à liberdade de expressão para fazerem as suas críticas intolerantes. Pois bem, os limites dessa liberdade são as esferas do Direito Penal e do Direito Civil, porque o direito não tolera os intolerantes.

Lembro que a lei deve ser interpretada e aplicada igualmente a todos e, nesse caso, devemos preservar o princípio da presunção de inocência e a dignidade da pessoa humana, como garante o direito constitucional fundamental ao contraditório e à ampla defesa. Doa a quem doer. Sem linchamentos públicos.

Podemos até não gostar das decisões de alguns servidores públicos de qualquer instituição, por terem decidido de forma contrária aos interesses de determinados grupos (inclusive dos nossos clientes), mas temos que respeitá-los e, se for o caso, usar o sistema. Como advogados, recorremos, ou buscamos outras instituições que possam resolver o problema, de forma republicana.

É, portanto, preciso acreditar nas instituições e nos servidores que nelas trabalham e empenham a sua matrícula funcional nas decisões que tomam, com forte impacto social e econômico. O nosso modelo  concede, ainda, o direito de recorrer para as esferas competentes, mas nunca demonstrar ódio ou crítica intolerante. 

Nesse cenário, devemos preservar e valorizar o STF (Supremo Tribunal Federal) e as demais instituições, especialmente aquelas de Estado, como as agências reguladoras. Sem elas, seria muito pior.

Não bastassem tais críticas sem fundamento, vemos ainda uma retórica oportunista de setores mais organizados que defendem o mantra do “mercado regula” e que há um “consenso no mundo” de não intervenção na economia. Esse argumento é uma falácia, posto que sem qualquer evidência empírica do mundo civilizado. Sustentam, ainda, que o Estado não deve interferir nos investimentos privados e que essa intromissão causa “insegurança jurídica”.

Onde há esse modelo? Em nenhum país do mundo ele deu certo. Vejamos a história do desenvolvimento dos países do Leste Asiático (Japão, China, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Vietnã e Malásia), dos últimos quarenta anos, onde o Estado deu o “norte” aos investidores estrangeiros. A renda per capita da Coreia do Sul era três vezes menor do que a do Brasil.                

Hoje, estamos estagnados (eu diria até andando para trás), e a Coreia do Sul tem a renda per capita três vezes maior do que a do Brasil. Isso não foi feito deixando o “mercado regular”. Esse capital, embora bem-vindo, teve que se subordinar ao interesse público de cada país. Não fizeram o contrário, ou seja, subordinaram o interesse doméstico às metas de curto prazo dos executivos das multinacionais para aumentar (de forma legítima) as remessas às suas matrizes no exterior. 

Esses, na maioria das vezes, criticam falha de governo, mas se esquecem das próprias falhas de mercado, que os seus grupos cometem, via abuso de posição dominante, concentração e preços muito acima dos custos marginais, retirando a competitividade dos produtos brasileiros nas cadeias logísticas de comércio exterior. 

No caso de normativos editados pelas agências, são muitas as possibilidades de controle, nas esferas judicial e do TCU (Tribunal de Contas da União), assim como no Congresso Nacional. Lembro que o Poder Judiciário está cada vez mais deferente aos atos das agências reguladoras, especialmente quando se trata de controle do mérito. Isso é muito bom e mostra um avanço institucional, ainda que ajustes possam ser necessários. Faz parte do modelo.

Por tais motivos, para demonstrar o poder normativo das agências reguladoras, como a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), o STF deferiu medida liminar na ADI 5.501 para suspender a eficácia da Lei 13.269/2016, que permitia o uso da fosfoetanolamina sintética, conhecida como “pílula do câncer”, com o argumento de que caberia à agência reguladora, no caso a Anvisa, avaliar se o medicamento teria eficácia comprovada e autorizar sua distribuição. 

Ou seja, suspendeu-se a eficácia de uma lei sobre uma matéria cuja competência para regulamentação seria exclusiva de entidade reguladora. Isso mesmo, determinou que a lei era inconstitucional porque não tinha expertise técnica de uma agência reguladora. E não foi um juiz de 1º grau, foi a Suprema Corte em controle concentrado de constitucionalidade de lei do Congresso Nacional.

A autora da ação direta de inconstitucionalidade, a AMB (Associação Médica Brasileira), buscava impugnar a Lei 13.269/2016, que “autoriza o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna”. O cidadão tem direito à saúde e à informação segura, e a medicina é baseada em evidências. Ao Estado (gênero que inclui o Poder Legislativo) incumbe o dever de zelar pela qualidade na fabricação, distribuição e consumo de produtos de saúde. 

Não pode o Congresso Nacional ultrapassar a barreira técnico-científica para garantir fornecimento de medicamento de forma genérica e abstrata em contraposição à orientação do órgão regulador (Anvisa). E isso vale para as mais de setenta agências reguladoras em todos os níveis de governo, inclusive regionais. 

Para o alcance dos objetivos das agências reguladoras, especialmente a tarefa de regulação de determinado setor da economia que apresenta falha de mercado, entende-se ser imprescindível que essas entidades disponham de mecanismos para o exercício de suas atribuições, tal como a faculdade de elaborar regramentos, de outro modo não haveria como essas agências buscarem o interesse público. 

Nesse sentido, a nova Lei Geral das Agências contribuirá sobremaneira para aumentar a qualidade da regulação, por meio da Análise de Impacto Regulatório e da Análise de Resultado Regulatório.

Como um nacional desenvolvimentista, que acredita na força normativa da Constituição, na lição de Konrad Hesse, especialmente os princípios fundamentais da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º), e nas instituições, nos quais se incluem as agências reguladoras, a Corte de Defesa da Concorrência (Cade – Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e o Poder Judiciário, temos que defender tais instituições.

Nesse momento de crises política, sanitária e econômica, a melhor solução é valorizar o serviço público, para evitar o “apagão das canetas” e o “vexame institucional”, para que as forças do mercado não prevaleçam. Obviamente que o capital privado nacional e estrangeiro são relevantes e úteis para desenvolver qualquer país, mas esse investimento deve ser feito de forma subordinada ao interesse público.

A regulação é relevante e exige cada vez mais tecnicidade para que o capital seja remunerado adequadamente. A sociedade civil organizada, juntamente com a iniciativa privada e a liberdade de imprensa, sob o manto da regulação,  precisam se aliar e cooperar para aproveitar a crise e legitimar o poder do Estado, a fim de fazer as reformas urgentes e necessárias para alavancar a economia do país. Afinal, o sucesso dos países ricos não veio espontaneamente pelas forças de mercado apenas.

*Osvaldo Agripino é advogado especializado em Regulação, Logística e Comércio Exterior. Sócio do Agripino & Ferreira.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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