Adriana Dantas* e Fernando Villela de Andrade Vianna**
Em dezembro de 2019, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei nº 4.253/20, que estabelece normas gerais de licitação e contratação para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Em síntese, trata-se da norma geral de licitação e contratação a que se refere o artigo 22, XXVII, da Constituição Federal, e a qual substituirá as atuais leis de licitações (Leis Federais nº 8.666/1993, nº 10.520/2002 e 12.462/2011) no prazo máximo de dois anos de sua publicação1.
Alguns autores2 já se dedicaram a fazer avaliações jurídicas gerais sobre o PL nº 4.253/2020 e sobre os acertos e desacertos do legislador nessa matéria. Concordamos com a sempre lúcida análise de Rafael Carvalho Rezende Oliveira3 no sentido de que a nova lei será um museu de grandes novidades, pegando emprestada a expressão eternizada por Cazuza. Parece-nos, de fato, que o legislador adotou uma postura normativa minimalista, optando por consolidar diversas leis esparsas sobre o tema em uma única lei geral e incorporando práticas e posicionamentos jurisprudenciais pacificados, inclusive aqueles de natureza administrativa do TCU (Tribunal de Contas da União), em vez de trazer modernizações para a contratação pública brasileira. Não houve ambição legislativa.
São, contudo, dignos de nota alguns avanços, que precisam ser comemorados e elogiados. Um desses certamente é a maior dedicação com o planejamento prévio à licitação, tradicionalmente negligenciado e, até então, sem uma diretriz legislativa clara e inequívoca.
Outro exemplo é a introdução, no Brasil, do diálogo competitivo, importado da União Europeia4. Tal modalidade pressupõe o reconhecimento, por parte da Administração Pública, da sua impossibilidade de identificar as melhores soluções para determinadas contratações complexas, abrindo-se, portanto, um canal de diálogo com o setor privado e players do mercado com experiência no tema com o objetivo de definir o próprio objeto de contratação. Por fim, merece destaque a exigência de o licitante vencedor implantar programa de integridade, no prazo de seis meses, contado da celebração do contrato, no caso de contratações de obras, serviços e fornecimentos que superem o valor de R$ 200 milhões, além de a existência de um programa dessa natureza se consubstanciar em critério de desempate entre duas ou mais propostas. Enquanto alguns estados da federação já editaram normas dessa natureza, carecia no âmbito federal uma exigência legislativa específica tendo em vista a importância desse instrumento para fomentar a ética nas relações entre público e privado no Brasil.
No campo dos retrocessos evidentes, encontra-se a margem de preferência5. Criada em 2010, por meio da Medida Provisória nº 495, posteriormente convertida na Lei Federal nº 12.349/2010, com a intenção de estabelecer políticas públicas para fomentar a promoção do desenvolvimento econômico e fortalecimento de cadeias produtivas de bens e serviços domésticos, a margem de preferência teve sua inspiração em normas estrangeiras, a exemplo do Buy American Act, de 1933, no American Recovery and Reinvestment Act, de 2009, ambas dos Estados Unidos, e em normas congêneres da América Latina, a exemplo da Colômbia (Ley nº 816/2003, “por médio de la cual se apoya a la indústria nacional a través de la contratación pública”) e Argentina (Ley nº 25.551/2001, “Compre Trabajo Argentino”), que estabelecem regras específicas para estimular a contratação pública de bens e serviços de origem nacional.
Não se discute a função regulatória da licitação, como há muito já sustentava o saudoso Marcos Juruena Villela Souto, mas a margem de preferência precisa ser dotada de racionalidade e muito bem motivada, seja para atingir os seus objetivos legítimos de fomento e estímulo, seja para permitir o controle por parte de órgãos externos. Trata-se, antes de tudo, de medida de indispensável transparência. Para recordar a célebre frase do Justice da Suprema Corte dos Estados Unidos Louis Brandeis, em seu livro “What Publicity can do”, “[p]ublicity is justly commended as a remedy for social and industrial diseases; sunlight is said to be the best of desinfectants”.
E o problema da margem de preferência no recém-aprovado PL nº 4.253/20, que ainda aguarda sanção presidencial, reside na sua extensão para situações que não nos parecem, prima facie, razoáveis ou desejáveis. Exemplo disso se encontra no art. 26, parágrafos 3º e 4º, do referido projeto de lei, que estabelecem a possibilidade de se instituir uma margem de preferência de até 10% (dez por cento) (i) por estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios para “bens manufaturados nacionais produzidos no Estado em que estejam situados ou, conforme o caso, no Distrito Federal”; e (ii) por municípios com até 50 mil habitantes em favor de “empresas neles sediadas”.
Uma autorização genérica que, a rigor, permite a adoção de margem de preferência para todo e qualquer produto (de canetas e produtos de saúde até contratações de maior valor e envergadura), confere uma discricionariedade ampla e indesejada para o administrador público local, principalmente em um contexto no qual o Brasil busca abrir o seu mercado de contratações públicas para empresas estrangeiras no âmbito do Acordo de Compras Governamentais, da OMC (Organização Mundial de Comércio).
Em 18 de maio de 2020, manifestou interesse formal em ingressar neste acordo, que mantém, dentre os seus corolários, o princípio da não discriminação no tratamento de fornecedores de outras origens no contexto de compras de bens, serviços e da construção civil. O processo de acessão ou ingresso do Brasil ainda está em curso, mas a referida regra da margem de preferência tem o potencial de ferir os futuros compromissos a serem assumidos pelo país perante a OMC.
Na campo prático, todo município com até 50 mil habitantes, cujo tesouro municipal já é limitado, poderá pagar 10% mais caro por qualquer produto que venha a licitar para prestigiar uma empresa situada em seu território, quando, na verdade, esse mesmo município deveria estimular a entrada de novos licitantes em suas licitações e, assim, obter a almejada contratação mais vantajosa.
Dentro do atual influxo moralizador da Administração Pública e das efetivas medidas de combate à corrupção, quer-nos parecer que margens de preferência como estas, que estabelecem vantagem competitiva em licitações apenas em razão da localização da empresa ou da produção do bem objeto da contratação pública, trazem mais riscos do que benefícios. Lembra-se, bem a propósito, que na ADI nº 4.650, que tratou do financiamento de campanha política por empresas, o Supremo Tribunal Federal alertou que “os limites previstos pela legislação de regência para a doação de pessoas jurídicas para as campanhas eleitorais se afigura assaz insuficiente a coibir, ou, ao menos, amainar, a captura do político pelo poder econômico, de maneira a criar indesejada plutocratização do processo político”.
Essa preocupação deve estar sempre presente, principalmente diante do passado recente do Brasil. O raciocínio jurídico-constitucional, empreendido pela Suprema Corte na referida ADI, aplica-se no caso de margens de preferência, na medida em que poderá servir potencialmente como instrumento de captura do agente político pelo poder econômico. Até porque, sendo a margem de preferência um mecanismo que permite à Administração Pública gastar mais do que deveria por determinado bem ou serviço, o retorno para a sociedade precisa estar muito bem definido e motivado no caso a caso.
Em seu artigo “[p]aradoxes of the Regulatory State”, Cass Sunstein alerta para o risco de estratégias regulatórias atingirem finalidade oposta à sua intenção original. E a solução proposta pelo autor não é abandonar a regulação, retornando ao modelo laissez faire, mas aprender com os erros do passado para evitá-los no futuro.
Tendo em vista os avanços do Brasil no combate à corrupção, é de todo recomendável que haja uma reflexão se a atual maturidade político-institucional do país permite a adoção de instrumentos que podem servir para capturas políticas, especialmente em se tratando de medidas cujos benefícios não são conhecidos, alcançáveis ou mesmo desejáveis. Especialmente em um cenário no qual não se exigirá qualquer clareza – e controle – dos objetivos almejados e seus efeitos práticos.
Deve-se perquirir, inclusive, a compatibilidade dessas vantagens competitivas entre empresas brasileiras diante dos objetivos fundamentais da República de garantir o desenvolvimento nacional e de redução das desigualdades sociais e regionais e dos princípios da eficiência, da moralidade e da impessoalidade, nos termos dos arts. 3º, II e III, e 37, caput, da Constituição Federal. Afinal de contas, estados com maior capacidade financeira e com número elevado de licitações públicas poderão, via margem de preferência, estimular a migração de empresas atualmente situadas em outros estados, ampliando as desigualdades regionais – na contramão dos objetivos constitucionais.
As margens de preferência por “localização geográfica”, conforme proposto no PL nº 4.253/2020, não nos parecem dotadas de racionalidade jurídica e trazem o risco implícito de instituição de verdadeiros “feudos licitatórios” locais e regionais, com potencial risco de captura do agente político pelo poder econômico, sem contar nos danos ao próprio pacto federativo, na medida em que poderá se tornar em novo objeto de disputas entre entes da Federação com o intuito de atrair empresas para os seus estados e/ou municípios. Essas margens de preferência realmente se justificam no atual contexto das contratações públicas?