Análise: onda de calor expõe receios com o sistema de formação de preços da energia

Roberto Rockmann*

O calor acima de 40 graus da semana passada na maior parte do país provocou fortes oscilações no PLD (Preço de Liquidação de Diferenças), referência do mercado livre de energia, e no CMO (Custo Marginal de Operação). Isso trouxe questionamentos sobre os modelos que balizam as cotações, a precificação e a estrutura tarifária, que não capturariam os movimentos de um sistema que exige respostas cada vez mais rápidas diante das mudanças climáticas. Essa é a opinião de especialistas consultados pela Agência iNFRA.
 
Há agentes preocupados de que o modelo computacional Dessem, um dos que calculam os preços da energia no mercado livre, possa estar desatualizado e não esteja capturando as restrições a alguns empreendimentos hidrelétricos. A capacidade das hidrelétricas de seguir aumentos de carga no início do dia ou fim da tarde então poderia ser menor que a estimada oficialmente, na avaliação dos técnicos.

Uso das águas e vazão dos rios 
As restrições poderiam ocorrer pelo aumento do uso múltiplo de águas, como irrigação, que não está sendo contabilizada, ou ainda dificuldades de reduzir ou aumentar vazões dos rios em razão de impactos socioambientais nas comunidades próximas das hidrelétricas.
 
As oscilações de preços ainda trazem a necessidade de repensar todo o sistema de formação de preços e os mecanismos à disposição dos consumidores, segundo especialistas. “´É preciso aperfeiçoar o PLD e o CMO”, disse o presidente da Frente Nacional dos Consumidores e ex-diretor geral do ONS, Luiz Eduardo Barata, à Agência iNFRA. A ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) abriu na semana passada o debate sobre o PLD em consulta pública.
 
“O processo de formação de preço não se aperfeiçoou”, afirma Joisa Dutra, diretora da FGV-Ceri. O avanço da GD (Geração Distribuída) Solar, que supera 20 GW (gigawatts) e poderá chegar a 42 GW nas estimativas da consultoria Volt Robotics em 2030, mostra que o avanço da descentralização será crescente. Rampas de consumo serão cada vez mais verificadas no início da manhã e no fim da tarde.
 
GD solar
De manhã, e ao longo do dia, a GD solar gera e deixa de consumir do sistema. Já no fim da tarde, para de gerar e passa a consumir energia. Nesses dois momentos, a demanda sofre picos. Isso exigiria modelos que capturem melhor a oferta e demanda e possam ser usados para com estímulos de preços e fazerem os consumidores reagirem. 
 
“Adaptação do desenho das tarifas e a resposta da demanda se tornam ainda mais urgentes no cenário atual”, disse Joisa à Agência iNFRA. Para ela, a formação dos preços hoje é feita por modelos que estão com uma série de dificuldades. Não existe uma adequada sinalização das condições de oferta e demanda para os consumidores. Além disso, há uma série de encargos, fruto de uma configuração de forças no Congresso.
 
Os milhões de consumidores do mercado cativo, por exemplo, só sentirão o uso do ar-condicionado nas tarifas quando pagarem as suas contas de luz em outubro. Já os grandes consumidores do mercado livre não têm grandes incentivos para transferir sua produção para horários de menor consumo e pagarem menos.
 
Flexibilidade se torna importante, o que poderá reforçar a importância das termelétricas a gás natural para aumentar a segurança do sistema, além do espaço para soluções de armazenamento, afirma Edvaldo Santana ex-diretor da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica). “As hidrelétricas e as termelétricas, sobretudo as flexíveis, são essenciais nesse cenário de segurança perturbadora”, explicou Edvaldo à Agência iNFRA.

O PLD, que passou meses no piso de R$ 69,04/MWh, subiu para R$ 620,95/MWh na quinta-feira (28/9). O CMO atingiu R$ 1,5 mil o MWh na quinta-feira passada.

Algumas térmicas foram acionadas de madrugada. Isso ocorreu diante das restrições à geração eólica e solar impostas pelo ONS depois do apagão do dia 15 de agosto e a saída de operação de Angra 2, que só volta em no início de novembro.

“As eólicas geram mais de madrugada, com as restrições desde o apagão, a saída de Angra 2 e uma carga líquida alta pelo calor, o ONS buscou acionar térmicas de partida rápida para não ter de acionar usinas que tivessem contratos que as mantenham operando por dois ou três dias”, explicou André de Oliveira, da Ampere Consultoria, à Agência iNFRA.

Ele destaca que o calor não faz apenas crescer o uso do ar-condicionado, mas também as indústrias têm de aumentar a refrigeração dos processos.

Minuta do RAP
Além da onda de calor, a minuta do RAP (Relatório de Análise de Perturbação) sobre o apagão de 15 de agosto trouxe incertezas em relação ao prazo de término total das medidas restritivas de operação pelo ONS, já que as medidas de correção podem levar tempo.  No documento, o ONS destaca que o apagão de 15 de agosto foi causado por conta de dados incorretos de equipamentos de regulação de tensão de parques eólicos e solares.

Esse diagnóstico exigirá construir uma governança para corrigir os problemas e criar regulação para a checagem e validação das centenas de aparelhos que terão de ser avaliados. Como isso poderá levar tempo, fica a indefinição de quando todas as medidas restritivas de operação do sistema poderão ser retiradas, incerteza que ganha corpo com a preocupação de que o verão tenha temperaturas altas.

“Os geradores eólicos e solares terão de ser chamados para uma conversa séria”, disse Luiz Eduardo Barata.

“Será preciso checar e validar os equipamentos e construir a governança sobre esses pontos, uma vez que isso ainda é incerto. Eólicas e solares cresceram muito nos últimos anos, mas não houve essa preocupação com o funcionamento dos equipamentos, isso precisará ser corrigido e precisará ser feito periodicamente”, disse André de Oliveira, sócio da Ampere Consultoria.

Para um especialista que pediu para não ser identificado, são centenas de parques que terão de ser avaliados e é preciso criar um modelo regulatório de incentivo para que os empreendedores “O ONS poderia fazer, mas é fundamental lastro regulatório da agência reguladora. O melhor seria a Aneel dar um comando ao ONS, para que continuasse segurando parques que não validarem o modelo, assim cria-se o sinal regulatório e econômico”, diz.

Para o consultor Luiz Maurer, as informações aquém do necessário emitidas pelos geradores ao Operador também reforçam a importância de se discutir a gestão de operação das fontes variáveis, como eólicas e solares, e redução de sua geração por limitações de distribuição ou transmissão. Se de um lado há perdas para os geradores, de outro há a confiabilidade do sistema.

“Uma hipótese é que, para evitar que a empresa receba limitação de geração, o que pode reduzir seu ganho, os empreendedores deixam a voltagem aumentar quando há muita produção. Podem existir incentivos perversos. Se a tensão tiver que ser controlada, de forma autônoma, os inversores reduzirão a potência ativa e aumentarão a potência reativa. Logo cai a produção que é remunerada. Para isto não existe compensação por não se tratar de um problema de transmissão”, disse Maurer à Agência iNFRA.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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