Análise: surpresas do leilão de transmissão reacendem debate sobre aperfeiçoamento da licitação

Roberto Rockmann*

A surpreendente conquista pelo consórcio Gênesis de dois lotes no leilão de transmissão de sexta-feira (30) fez com que ressurgissem nos bastidores debates sobre eventuais aperfeiçoamentos no formato das licitações, que estão mudando de patamar, com números recordes.

Em dezembro, deverá ser realizado o maior leilão da história, com previsão de investimentos de cerca de R$ 20 bilhões. Entre esse ano e 2025, os seis leilões na área poderão movimentar montante recorde de R$ 80 bilhões, com a possibilidade de contratação de dois sistemas de bipolos de corrente contínua, uma tecnologia com dupla conexão que permite facilitar o escoamento de energia elétrica pela rede de alta tensão.

A discussão, no entanto, não é simples. Aumentar exigências ou criar novas barreiras de entrada pode restringir a concorrência, concentrar o mercado e impedir a chegada de novos players, o que reduziria a competição.

Na sexta-feira, o consórcio Gênesis arrematou duas conexões: o lote 8, com investimento estimado de R$ 259,5 milhões, linha de transmissão na região metropolitana de Recife, com total de 38 quilômetros incluindo trechos aéreos e subterrâneos; lote 1, com de extensão de 1.116 quilômetros (km) localizadas nos estados da Bahia e de Minas Gerais, oferta de R$ 174,1 milhões, representando um deságio de 66,18% em relação à Receita Anual Permitida (RAP) prevista pela Agência no valor de R$ 514,6 milhões.

O lote 1 era o segundo maior licitado. A oferta de deságio do consórcio, formado pelas empresas The Best Car Transportes de Cargas Nacionais e Internacionais (92,52%) e Entec Empreendimentos Eireli (7,48%), foi 22 pontos superior à do segundo colocado, a Isa Cteep.

Questionado sobre como iria levar adiante a obra, o CEO do consórcio, Dênis Rildon, foi evasivo e bíblico. “Gênesis é uma passagem bíblica onde Deus criou todas a coisas. No principio não existia nada. Deus criou a luz. E achou boa a luz. Então é basicamente a estruturação que fizemos. Decidimos então investir nesse sonho e montamos o consórcio”, afirmou. Disse ainda que a estrutura financeira estava montada, mas seria revelada em breve, assim como o nome dos sócios que iriam participar do empreendimento.

“Retorno inferior a 2,5%”
Em um cenário de juros altos, mercado mais arredio depois de bilionárias recuperações judiciais desse ano, problemas com empreiteiros, o deságio de 66% em um dos maiores lotes do leilão criou questionamentos entre os executivos. Segundo estimativas de um consultor que participou ao lado de um consórcio não vencedor do lote, o deságio indicaria uma TIR (Taxa Interna de Retorno) inferior a 2,5%, o que dificultaria o financiamento.

Uma preocupação é de que, se o contrato for assinado, ele possa sofrer atrasos. “O próximo leilão, que seria em outubro, foi postergado para dezembro para atenuar pressões sobre fornecedores. Há muitos projetos a serem licitados até 2025, um problema agora pode trazer mais estresse para a cadeia de fornecimento”, diz um diretor de banco.

Esse receio coincide com um cenário em que a transmissão se tornou essencial para a transição energética, por permitir o escoamento de usinas eólicas e solares aos centros de consumo. Atrasos em projetos podem ter ainda outros efeitos: 1) a fila de projetos à espera de conexão pode aumentar ainda mais; 2) atrasos podem causar exposição involuntária em geradores.

ANEEL
Para um consultor, a questão poderá fazer a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) ter de tomar alguns cuidados adicionais na fase de habilitação da empresa. “Ou seja, quando se busca a comprovação da capacidade técnica e econômica e da regularidade fiscal e trabalhista, considerando que o leilão é feito com inversão das fases de julgamento e habilitação.”

De acordo com um empresário, o setor poderia inclusive olhar o que está sendo feito em licitações rodoviárias, segundo uma nova regra da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres). “Quanto maior for o deságio na rodovia licitada, são exigidos mais aportes financeiros e de garantias para minimizar os efeitos de fracassos anteriores”, diz.

Questionado sobre a surpresa na sexta-feira (30), o diretor geral da ANEEL, Sandoval Feitosa, disse que o poder regulador tem aperfeiçoado as regras nos últimos anos. Um exemplo é que sócios financeiros só podem negociar a sua participação nos consórcios depois de a obra ser concluída. Feitosa disse ainda que o edital prevê garantias para que os empreendimentos sejam realizados no prazo. Por exemplo, o contrato só é assinado quando o vencedor da licitação deposita as garantias de fiel cumprimento, que são percentuais relativos ao montante de investimento e crescentes conforme o tamanho de deságio. No caso do lote 8, terão de ser desembolsados R$ 335 milhões pelo Gênesis.

Para um consultor, a discussão é complexa. Aumentar garantias ou criar barreiras para a participação no certame não é uma novidade, mas chega à mesa de discussões sempre quando ocorrem surpresas como as do leilão de sexta-feira. “Estabelecer uma régua mais alta pode reduzir a competição e evitar o ingresso de novos entrantes, isso pode criar polêmica com órgãos de controle e com órgãos de defesa da concorrência. É preciso esperar o andamento do processo e analisar se o contrato será assinado e quem dele participará. Aí é preciso ver se foi uma exceção mesmo e como ela ocorreu”, afirma.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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