Rafael Bitencourt, da Agência iNFRA
O boom do mercado de veículos elétricos no Brasil tem estimulado o debate entre especialistas sobre o seu impacto na operação do SIN (Sistema Interligado Nacional). Técnicos ouvidos pela Agência iNFRA consideram que a eletromobilidade poderia contribuir, consumindo o excesso de energia durante o dia, quando há a geração solar. Para isso, seria preciso um sinal de preço da energia adequado, com estabelecimento de tarifas horárias: preços mais baratos durante o dia, incentivando o carregamento dos carros quando há sobreoferta na rede.
Na prática, esse ajuste nas tarifas poderia reduzir prejuízos causados pelo chamado curtailment, os cortes obrigatórios de geração por excesso de oferta. Edvaldo Santana, professor da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e ex-diretor da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), ressalta que, “como o excedente de oferta é no meio do dia, o ideal é que haja mais consumo flexível, como dos veículos elétricos, que podem ser carregados nesse período”, disse.
O CEO da PSR e ex-presidente da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), Luiz Barroso, reforça que os carros plugados na rede oferecem muitas oportunidades de contribuir com o sistema. “Você pode armazenar a energia intermitente, que está sendo gerada por solar ou eólica durante o dia, e depois devolver isso num momento de queda, de saída das renováveis no final do dia – para prevenir os efeitos do pico de consumo, por exemplo”, disse à Agência iNFRA.
Enquanto não há sinal de preço adequado para induzir o comportamento dos veículos conectados à rede, montadoras do segmento destacam a praticidade de “carregar seu veículo durante a noite, aproveitando a comodidade de abastecer seu carro enquanto você dorme. Assim como você já faz com o seu celular”, descreve o site do fabricante chinês BYD.
Luiz Barroso, da PSR, explica que, no cenário ideal, o dono de carro elétrico pode responder às variações de preço da energia, decidindo se é hora de carregar ou descarregar a bateria no sistema elétrico. No exterior, segundo ele, isso já é feito de forma automática por aplicativos configurados pelos usuários.
“Essa tecnologia pode trazer um recurso importante, de oferta descentralizada ao sistema, mas também traz uma demanda que precisará ser planejada em termos de atendimento – não só pelo sistema de distribuição, mas pelo sistema de geração também”, disse o especialista. Ele reforça que “ainda não existe sinal de preço correto” para chegarem as mudanças esperadas.
A pauta sobre as vantagens do armazenamento de energia já foi inaugurada com a discussão no governo sobre a contratação de grandes sistemas de baterias (BESS, na sigla em inglês) para atender aos comandos do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico).
“Os carros elétricos acabam surfando na discussão sobre a contratação de baterias. Eles podem ser vistos como um subconjunto desse debate que hoje está em andamento”, afirmou Barroso. “É muito interessante a capacidade do carro elétrico de ser uma ‘bateria distribuída’ e, com isso, ajudar o sistema.”
Mais flexibilidade
A economista Joisa Dutra, diretora do FGV-Ceri (Centro de Regulação em Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas) e ex-diretora da ANEEL, ressalta a importância da “flexibilidade da demanda” para que esse novo segmento de carga possa contribuir com a operação do sistema.
“Sejam os data centers ou os veículos elétricos, eles só vão ajudar o setor a lidar com a atual sobreoferta [de energia], por exemplo, se forem recursos de flexibilidade, se tiverem capacidade de dar resposta aos sinais de preços”, afirmou a diretora da FGV. Ela citou como exemplo o mecanismo de Resposta da Demanda, que possibilita a redução de carga de consumidores previamente habilitados, com incentivo para a indústria mudar a rotina de operação das fábricas.
Ela também ressalta a necessidade de adaptação das redes e do modelo de preço da energia para que os carros elétricos não sejam um desafio a mais para a operação. “A capacidade deles contribuírem para o sistema depende de como esse mesmo sistema vai se adaptar para recebê-los. Mas não estamos vendo isso ainda”, alertou. “Entrar por entrar como uma carga comum é burrice. Isso significa ‘desotimizar’ com grande probabilidade o sistema”, acrescentou.
A economista da FGV avalia que o setor precisa refletir sobre a necessidade de pensar numa “arquitetura descentralizada” para o funcionamento da rede. Segundo ela, esse pode ser um caminho para melhor responder ao impacto do crescimento da frota de carros elétricos, à chegada dos novos data centers ou, em breve, à contratação dos sistemas de armazenamento.
Avanços tecnológicos
A expectativa é que o planejamento e desenvolvimento do setor receba maior atenção com a criação de uma secretaria de eletromobilidade no MME (Ministério de Minas e Energia), anunciada pelo ministro Alexandre Silveira. Dessa forma, o Brasil poderá absorver tecnologias que já funcionam no exterior e que podem otimizar o uso dos carros elétricos.
Na Europa, por exemplo, alguns países já oferecem equipamentos que decidem automaticamente qual a direção do fluxo de energia quando o veículo elétrico é ligado à rede: ou seja, se ele será carregado ou se irá transferir a energia armazenada para o sistema elétrico.
Essa transferência de energia para a rede é chamada de V2G (Vehicle to Grid), explica Ayrton Barros, diretor-geral na Neocharge, empresa especializada em carregadores de veículos elétricos, também conselheiro da ABVE (Associação Brasileira do Veículo Elétrico). A tecnologia permite “a utilização da bateria dos veículos para fazer gerenciamento de carga do sistema”, afirma.
Barros reforça que, inspirado no que acontece lá fora, o Brasil pode buscar a atualização de regras e a modernização de equipamentos para permitir que os donos dos veículos aproveitem o preço mais barato nas horas de maior oferta de energia solar e, se contar com sistema próprio de geração ou armazenamento, injetar a sobra na rede quando estiver mais caro, no horário de pico do consumo.








