Breno Zaban* e Ludmila Dias**
Infraestrutura de qualidade tende a ser concentrada em áreas centrais ou mais afluentes. Trazer pessoas e atividades para essas áreas pode ser mais viável do que tentar replicar o mesmo nível de infraestrutura em todo o território1. O problema é que, ao invés de incentivar esse aumento de densidade, cidades frequentemente impõem normas que restringem tais estratégias.
Neste texto, discutiremos como normas de uso e ocupação de solo podem estimular aumentos de densidade urbana. Nossa preocupação é em trazer pessoas e atividades para locais em que é mais fácil prover infraestrutura e serviços públicos de qualidade.
Antes de começar, é importante responder à pergunta: densidade urbana, em si, é algo bom ou ruim? A tabela e o gráfico a seguir oferecem uma perspectiva empírica:
Densidade Urbana e Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
Densidade Demográfica e Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
Como se observa da tabela e do gráfico, não há uma correlação clara entre densidade e desenvolvimento humano. Vitória e Salvador apresentam densidades similares e IDHM bastante distintos.
É importante notar que medir densidade urbana não é uma tarefa simples. Metodologias distintas sobre o cálculo da área e do espaço de pessoas envolvidas podem resultar em números bastante díspares para a mesma cidade. A tabela a seguir oferece uma comparação internacional com base em uma metodologia distinta4:
Densidade Urbana em Cidades5
(em pessoas por milha quadrada)
São Paulo, a cidade mais densa do país, é frequentemente relacionada às dificuldades enfrentadas por cidades grandes. Mas a densidade urbana de São Paulo é similar à densidade de Singapura e quase a metade da densidade de Seoul, duas cidades reconhecidas por alta qualidade de vida e competência em prestação de infraestrutura e serviços públicos.
Densidade não é, assim, garantia de problemas ou de bons resultados urbanos no que tange à qualidade de vida. Por outro lado, permitir maior densidade nas normas de uso do solo pode ser a chave para se levar infraestrutura de qualidade a mais pessoas.
O fenômeno de adensamento e suas condições econômicas
Ao falar sobre adensamento e regulação do solo urbano, precisamos ter duas coisas bem claras. Primeiro: o adensamento pode ocorrer formalmente (em áreas parceladas e registradas) ou informalmente (invasões em áreas públicas ou ambientalmente sensíveis). Segundo: a correlação entre afrouxar a regulação sobre o solo urbano e tornar toda a cidade densa e compacta não é direta.
A intenção do planejador traduzida em regulação não garante uma cidade densa e compacta, pois isto só ocorre quando há demanda alta para utilização de espaço limitado. Essa demanda não é criada artificialmente através de uma normatização do uso solo. A demanda por espaço construído de uso residencial (habitações) acontece em áreas cuja localização seja próxima aos empregos formais, ricas em atividades urbanas, bem servidas de transporte e de equipamentos públicos, e ainda, caminháveis (desenho urbano voltado ao pedestre).
Essas áreas atraentes captam a preferência dos habitantes6, e caso haja oferta de unidades imobiliárias menores e com preços mais acessíveis, é muito provável que se adensem – essa densidade reflete o “consumo” de terra. Portanto, o papel da legislação de uso do solo é apenas permitir que a demanda existente nas regiões atraentes se concretize em área construída, favorecendo o consumo e resultando em aumento de densidade.
Mas, quando o aumento da densidade nessas áreas atraentes é restringido pelo planejamento urbano, as pessoas são forçadas a buscar localizações mais longe do emprego. Assim, essas áreas atraentes podem se tornar ilhas de baixa densidade e alta renda. Desta forma, as restrições de uma normatização de uso do solo agem diretamente privilegiando as elites e empurrando a população de menor renda para áreas mal servidas de infraestrutura, cujo custo de implantação é alto.
Normatização de uso de solo: conceitos e aplicação
Normas de uso e ocupação do solo usam regras e conceitos diversos para orientar a construção e utilização de áreas urbanas. Ao se pensar a normatização de uso do solo, não podemos confundir a densidade construtiva (área construída dividido pela área do lote ou coeficiente de aproveitamento), com a altura da edificação (gabarito permitido), com a predominância do uso residencial (mesmo sendo permitido uso misto), com a densidade demográfica resultante (quantidade de habitantes).
Apesar de desejável um alto coeficiente de aproveitamento, o aumento da densidade construtiva ou do coeficiente de aproveitamento não resulta diretamente em cidades mais densas. Por exemplo, “em Shangai, onde a proporção da área construída mais do que triplicou desde os anos 1980, a densidade demográfica caiu aproximadamente 20%7”.
A permissão de gabaritos livres embora bem-intencionada, não implica uma cidade densa e compacta, ou seja, cidades muito verticalizadas podem apresentar densidade demográfica menor que outras menos verticalizadas. Isto ocorre por algumas questões: a) uso dos edifícios se tornam predominantemente comercial ou de serviço, restando pouco uso residencial; b) a metragem quadrada das unidades habitacionais é grande e as famílias são pequenas; c) há grandes recuos e grandes áreas livres entre os edifícios; d) o térreo não é ocupado. Isto nos leva a crer que uma cidade densa e compacta não precisa necessariamente ser muito verticalizada.
Paris, por exemplo, apresenta alta densidade com edifícios baixos onde não há recuos, e os térreos e subsolos são habitados. As favelas brasileiras têm densidade alta sem ter verticalização, pois o índice de coabitação é alto, os cômodos são pequenos e quase não há espaços entre as moradias.
Exemplos de verticalização saudáveis em cidades brasileiras são o centro de São Paulo, de Porto Alegre e o bairro de Copacabana no Rio de Janeiro, onde não há recuos entre os edifícios, houve ocupação do térreo, e não há excesso de vagas para automóveis.
É inegável que o melhor adensamento ocorre em eixos de transporte, aliando verticalização, uso residencial predominante (mas não exclusivo), pouco espaço entre os prédios, nenhum recuo frontal e atividade comercial no térreo. Essas medidas permitem elevar a densidade demográfica, otimizar a infraestrutura e diminuir o tempo de deslocamento.
Esses devem ser os objetivos das normatizações de uso do solo. Similarmente, deve-se buscar diminuir a onerosidade (interferências regulatórias para se conseguir maior aproveitamento, ocupação ou altura) nas áreas atraentes, contribuindo para que o mercado imobiliário reflita a demanda existente. Por meio de tais medidas, é possível estimular o adensamento
Limites e Abordagens à Promoção de Adensamento
E qual seria o limite para o adensamento? A sobrecarga da infraestrutura urbana, em especial de trânsito, drenagem e saneamento urbano, pode ser um limitador. O aumento no trânsito pode ser proveniente de um transporte público ineficiente e do estímulo ao transporte individual. Logo, o desincentivo ao transporte individual e o investimento no transporte público são fundamentais para permitir o adensamento. É importante notar que, quanto mais densa a área, maior o número de potenciais passageiros e, consequentemente, maior o retorno financeiro a estratégias inovadoras de oferta de serviços de mobilidade.
Podemos ainda utilizar mecanismos de desenho urbano para aumentar a eficiência do sistema viário, prever restrições à carga e descarga em vias públicas (devendo ocorrer dentro da área dos lotes), restrições à construção de pisos de estacionamento privativo. É possível também retirar exigências de número mínimo de vagas por unidade imobiliária ou por metragem quadrada comercial. Quanto à drenagem urbana, é possível, mesmo com o aumento da ocupação e impermeabilização, exigir dispositivos de retardo e retenção das águas pluviais, e realizar investimentos em uma rede robusta de macrodrenagem urbana.
É preciso ponderar, também, que a provisão de infraestrutura a posteriori pode ser mais sensata econômica e socialmente do que impedir construções nas áreas de maior valor. Nesta linha, citamos entrevista do urbanista Alain Bertaud ao Caos Planejado8:
Observe o custo do terreno e olhe o custo da infraestrutura e, muitas vezes, para economizar, digamos, U$10 milhões em infraestrutura, você explode U$100 milhões em valor imobiliário. Pode haver uma situação em que a infraestrutura em alguma área seja tão cara quanto por conta de lama, terremoto, algo assim. Mas, na minha experiência, sempre a infraestrutura é mais barata quando há demanda.
O problema é que às vezes os planejadores constroem infraestrutura no meio do nada, onde não há demanda, então a infraestrutura se torna, de fato, muito cara, porque não há demanda por ela. Mas se você está no centro da cidade ou, digamos, no subúrbio, onde há muita demanda por moradias ou prédios comerciais, na minha experiência, é sempre mais barato levar canos para lá ou aumentar o sistema de esgoto e coisas assim.
Veja cidades como Manhattan ou Paris, elas não tinham infraestrutura, a infraestrutura foi construída aos poucos. Se Manhattan tivesse decidido no século 19 — eles não tinham esgoto por sinal — que “não queremos gastar com infraestrutura, a cidade deveria se expandir” ou “você deveria se mudar para Baltimore”, não faria sentido.
Em resumo, a combinação de demanda por área construída e uma legislação que permita o uso eficiente da terra disponível possibilitam concentração espacial da população e consequente aumento da densidade demográfica, garantindo a otimização e maximização das redes de infraestrutura urbana e expandindo o acesso da população de baixa renda aos serviços públicos.
Diretrizes Para Normas de Uso e Ocupação de Solo para promoção de adensamento
Com base no exposto, sugerem-se algumas diretrizes para normas de uso e ocupação de solo com o intuito de promover maior densidade e acesso a serviços públicos e infraestrutura.
Tipos de uso: Estimular o uso misto, incluindo qualquer atividade que não ocasione geração excessiva de poluição ou impactos negativos sobre a vizinhança. Isso significa permitir que o mesmo prédio possa ter escritórios, clínicas, supermercados, cafés, entre outros, junto com habitações. Essa liberdade viabiliza também uma resposta flexível da cidade, já que, por exemplo, uma área de escritórios pode ser rapidamente convertida em hotelaria e vice versa em caso de variação na demanda por espaço urbano.
Coeficiente de aproveitamento: O coeficiente de aproveitamento é a quantidade de área construída em relação ao terreno. Por exemplo, um coeficiente de 4 significa que um lote de 200m² pode ter 800m² de área construída.
Idealmente, não deveria haver limites a coeficientes de aproveitamento. Há outros limites naturais a construções excessivas: a engenharia é complexa, o custo de construção de prédios altos é maior e a demanda é sempre limitada pela disposição a pagar de consumidores. Ao se liberar o coeficiente, permite-se que a área construída reflita as necessidades da cidade e as condições técnicas e econômicas vigentes.
Altura: Quando possível, não ter restrições de gabarito. Caso seja necessária restrição de construção, o coeficiente de aproveitamento é uma ferramenta mais direta e apta a conter construção.
Permeabilidade e ocupação: O objetivo destas normas é assegurar que a água de chuvas possa chegar ao lençol freático de forma ambientalmente correta e sem ocasionar enchentes. Regras de permeabilidade e ocupação impõem que parte da área seja mantida “aberta” em gramados ou terra, de modo que a água possa ser absorvida pelo solo.
Hoje, há técnicas de retardo e tratamento de água que diminuem ou dispensam a necessidade de áreas não construídas. Entende-se que restrições de permeabilidade e ocupação podem ser substituídas pela instalação comprovada de tais dispositivos na área construída. Tais métodos de engenharia podem, inclusive, absorver uma quantidade substancialmente maior que a capacidade de absorção do solo exposto em um determinado momento.
Garagem: Foi comum, em cidades brasileiras, a exigência de vagas de garagem proporcionais à área construída. Propõe-se aqui o contrário: reduzir o uso de vagas e de carros pessoais na cidade. Sugere-se a restrição de área construída de garagens, possivelmente para apenas um pavimento.
Essa restrição é compatível com tendências tecnológicas e sociais recentes. É exatamente nos grandes centros urbanos que novas tendências de mobilidade tem se destacado, com destaque para o uso de aplicativos9. A tendência para se evitar a propriedade e o uso de carros pessoais pode ser acentuada com incentivos urbanos adequados.
É importante notar que esse parâmetro é o único que se propõe restringir neste texto. Do ponto de vista de aumento na demanda de infraestrutura viária, é uma restrição relevante. Construir novas vias implica elevado custo e desperdiça áreas urbanas valiosas. Além disso, construir novas vias frequentemente aumenta o incentivo ao uso de carros particulares e, na prática, pode piorar o nível de congestionamento10. Para que uma cidade tenha densidade urbana e eficiência, é essencial estimular o uso de alternativas ao transporte particular.
Áreas de carga e descargas públicas e internas ao lote: Sugere-se que lotes incluam áreas internas nas quais caminhões e outros veículos altos possam ingressar para carga e descarga. O objetivo é evitar que entregas, mudanças, coleta de passageiros e outros serviços impactem negativamente o fluxo de trânsito. Esta sugestão é relevante para se assegurar que a maior densidade não imponha externalidades negativas sobre áreas públicas e vizinhos.
Considerações Finais
Este texto sugeriu uma perspectiva de promoção de densidade urbana mais coerente com a provisão de acesso à infraestrutura e serviços públicos. Para tanto, requerem-se inovações e normas de uso do solo mais audaciosas para as cidades brasileiras.
O objetivo dessas propostas é fomentar o debate, tangenciando o assunto da densidade urbana e da infraestrutura. Talvez outras ideias mais sofisticadas e baseadas em dados e contextos específicos sejam inspiradas pelas propostas apresentadas aqui. O foco dos autores não é definir qual seja o modelo ideal. Nossa intenção, pelo contrário, é contribuir para o debate de um tema que ganha maior atenção a cada dia. E que, em um futuro não distante, possamos ter mais pessoas e atividades humanas diversas acontecendo nas áreas com melhor infraestrutura de nossas cidades.
1 Sobre o tema, vide publicação do infra2038: ZABAN, Breno e TUROLLA, Frederico. Densidade urbana e infraestrutura: quando construir alto é melhor do que construir longe. Disponível em https://agenciainfra.com/blog/densidade-urbana-e-infraestrutura-quando-construir-alto-e-melhor-do-que-construir-longe/. Último acesso em 15/03/2022
2 PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (PNUD). IDHM Municípios 2010. Disponível em https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/idh0/rankings/idhm-municipios-2010.html. Último acesso em 11/03/2022
3 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Sistema Cidades@. Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/. Último acesso em 11/03/2022
4 A tabela é baseada em dados do City Mayors. O City Mayors coleta dados brutos de várias fontes, que embora frequentemente sejam as mais confiáveis disponíveis, nem sempre aplicam as mesmas definições às cidades, áreas metropolitanas e urbanas. As tabelas classificam as cidades com maior área territorial, considerando suas áreas urbanas, por densidade populacional expressa em pessoas por quilômetro quadrado. Considera-se área urbana uma aglomeração econômica, social e culturalmente dominada por uma cidade em seu centro – uma cidade núcleo.
5 USA TODAY. 75,000 people per square mile? These are the most densely populated cities in the world. Disponível em https://www.usatoday.com/story/news/world/2019/07/11/the-50-most-densely-populated-cities-in-the-world/39664259/. Último acesso em 11/03/2022
6 Lembramos que também existe a preferência de alguns habitantes, que podem pagar o preço de mercado por bairros com menor densidade.
7 BERTAUD, Alain. Densidade urbana não se desenha. Disponível em https://caosplanejado.com/densidade-nao-se-desenha-2/. Último acesso em 15/03/2022
8 LING, Anthony, e BERTAUD, Alain. A evolução das utopias urbanas: entrevista com Alain Bertaud. Disponível em https://caosplanejado.com/a-evolucao-das-utopias-urbanas-alain-bertaud/. Último acesso em 11/03/2022
9 “Instead it is in the city centres where a revolution beckons. There the classic ownership model is endangered, new modes of transport are emerging and competition is building from upstart mobility providers that connect customers with a mesh of diferente services.” THE ECONOMIST. New means of getting from A to B are disrupting carmaking. Disponível em https://www.economist.com/business/2021/04/15/new-means-of-getting-from-a-to-b-are-disrupting-carmaking. Último acesso em 15/03/2022
10 A observação de que construir mais ruas pode, na prática, reduzir a velocidade do tráfego é reconhecida desde a década de 60: https://en.wikipedia.org/wiki/Braess%27s_paradox
*Breno Zaban, CFA, é doutor em Direito (UnB) e mestre em Administração Pública (Harvard) e de Negócios (Insead). É sócio fundador do Zaban e Miranda Advogados.
**Ludmila Dias é mestre em Planejamento Urbano (UnB) e especialista em Direito Urbanístico e Regulação Ambiental (Uniceub). É urbanista na Agência de Desenvolvimento do DF – Terracap.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.