Democratização do transporte rodoviário: não podemos retroceder

Edson Lopes*

Ninguém pode negar o processo de polarização política que o Brasil tem experimentado, um fenômeno que se acentuou consideravelmente na última década. No entanto, não é apenas de oposições que vivem os campos políticos da direita e da esquerda. Algumas poucas questões, devido à sua importância fundamental, conseguiram adquirir o status de ‘projetos de estado’ em vez de se limitarem a ser uma pauta específica de um determinado espectro político.

Um desses temas é a democratização do mercado de transporte de ônibus interestadual de longa distância. Em um país de dimensões continentais, que criou toda sua base de infraestrutura no transporte rodoviário, viajar é uma necessidade e não apenas de lazer. O transporte de longa distância entre estados é, para muitos brasileiros, a única maneira de ter acesso a serviços avançados de saúde, educação e cultura.

Sem trens e com uma infraestrutura de aeroportos tímida – e que possui dificuldades de se desenvolver pelo alto custo da aviação quando comparamos com a renda média do brasileiro – o transporte por ônibus é o principal meio para a mobilidade da população entre diferentes regiões, especialmente das classes menos abastadas. Por isso, democratizar o acesso a esse tipo de transporte, oferecendo mais opções com menos custo, é uma necessidade que independe de ideologia. A estrada é o meio pelo qual os brasileiros cruzam o país.

Vale a pena contextualizar: o setor de transporte rodoviário interestadual ainda é, em sua maioria, um amplo oligopólio, com 80% das rotas sendo operadas por apenas uma ou duas empresas, conforme dados da própria ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres). Em 2023, o modelo de viagens de ônibus ainda se assemelha muito ao cenário do setor aéreo na década de 90. Essa falta de competição e competitividade encarece os custos e dificulta o acesso à mobilidade para milhões de brasileiros, especialmente para aqueles que vivem distantes dos principais centros urbanos onde o transporte aéreo não é uma alternativa viável.

Apesar das diferenças políticas entre os presidentes que tivemos na última década, eles compartilharam uma notável convergência na adoção do modelo de autorização pela ANTT. Foi em 2014, durante o governo de Dilma Rousseff, que o legislativo deu início ao processo de transição para o regime de autorização, impulsionado pela necessidade de aumentar a concorrência, elevar a qualidade dos serviços no setor, e reduzir os preços.

O modelo anterior de permissão, que implica a obrigatoriedade de licitação prévia, nunca foi plenamente efetivado justamente em razão da dificuldade na realização de licitações, tanto em virtude da complexidade do assunto, como por causa dos esforços das empresas já estabelecidas no mercado que empregaram todos os recursos legais disponíveis para bloquear movimentos de reorganização do setor.

A mudança de modelo iniciada no governo Dilma teve como objetivo regularizar o segmento, fomentar a concorrência, eliminar barreiras à entrada de novas empresas e reduzir os preços das passagens. Com isso, temos uma ampliação significativa no potencial de ampliar os destinos atendidos e os assentos disponíveis.

Nos governos seguintes, mesmo com uma radical mudança ideológica, a agência deu continuidade ao projeto que havia sido iniciado em 2014. Ou seja: os três últimos presidentes da República antes do terceiro governo Lula reconheceram a importância de estimular a concorrência no setor de transporte rodoviário interestadual. Tanto que foi entre 2019 e 2020, que a plena, porém curta, entrada em vigor do regime de autorização, facilitou a adição de novos concorrentes no mercado, criando oportunidades para uma variedade de serviços e preços mais competitivos.

Vale destacar: após a implementação do modelo de autorização, conforme dados divulgados em notas técnicas da ANTT, foram outorgadas cerca de 15 mil novas ligações interestaduais e 26 novas empresas começaram a operar regularmente no mercado interestadual. A agência interrompeu a autorização de novos participantes somente quando o TCU (Tribunal de Contas da União) deferiu medida cautelar, o que impediu o deferimento de novas autorizações.

Contudo, mesmo em um período tão breve, os resultados práticos foram percebidos, tornando mais acessível a viagem para mais pessoas no Brasil. De acordo com uma pesquisa da CheckMyBus, os mercados nos quais houve um aumento significativo de novas empresas autorizadas pela ANTT para operar testemunharam uma redução de até 45% no preço médio das passagens em rotas com maior número de operadores, entre 2019 e 2022.

Portanto, é intrigante constatar que, quase uma década após o início desse processo, os benefícios da abertura do mercado rodoviário, que foram considerados tão relevantes a ponto de unir governantes de diferentes espectros políticos, agora estão ameaçados pela própria agência reguladora.

A última proposta do novo marco regulatório para o setor, apresentada em julho desse ano pela ANTT, na prática, pode acabar restringindo ainda mais um setor que já é tão concentrado e inacessível, apesar de essencial, para grande parte da população. Uma guinada totalmente contrária ao que ocorreu na última década na qual, divergências ideológicas à parte, a agência reguladora e os diferentes governantes atuaram para abrir esse mercado e promover a democratização do transporte por ônibus.

Não existe alternativa para democratizar o acesso à mobilidade que não envolva uma abertura efetiva do mercado. A competição adicional resultará em serviços de melhor qualidade e preços mais baixos, tornando possível que mais pessoas tenham a oportunidade de viajar. Chegou a hora de reconhecermos que um processo de abertura responsável do transporte interestadual de ônibus é um anseio da população e uma pauta comum de todos os últimos governos.

O movimento que está ocorrendo agora, com essa mudança repentina por parte da agência, para dificultar o acesso de novas empresas, vai na contramão da sensibilidade que o tema pede. Estamos falando de impedir o acesso à saúde, educação, cultura e lazer – especialmente para as camadas mais pobres da nossa população. Se direita e esquerda, com todas as diferenças que possuem, foram capazes de entender o impacto e a importância do tema, é hora da ANTT voltar a ser coerente com tudo que fez desde 2014 e colocar em prática algo tão necessário para a nossa população: o acesso à mobilidade de longa distância para todos. Qualquer ação no sentido de diminuir ou barrar a concorrência é um retrocesso que trará prejuízos enormes para o Brasil.

*Edson Lopes é diretor geral da FlixBus Brasil.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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