Sheyla Santos, da Agência iNFRA
A primeira sessão presencial da AP (Audiência Pública) sobre a concessão para exploração da Fico (Ferrovia de Integração Centro-Oeste) e da Fiol (Ferrovia de Integração Oeste-Leste) foi marcada por críticas quanto aos riscos do projeto, admitido como “complexo” até por representantes do governo. A falta de definição sobre se haverá um porto para atender a ferrovia e a construção de um novo trecho entre os dois projetos, a chamada Fiol 3, foram as principais queixas na primeira apresentação pública da proposta.
A apresentação da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) sobre a concessão da Fico-Fiol, formada pela EF-334 e EF-354, que é também chamada de “Corredor Ferroviário Leste Oeste”, feita nesta terça-feira (11), na sede da agência, em Brasília, pode ser lida aqui. A agência realizou na quarta-feira (12) uma nova audiência em Salvador (BA) e outra será realizada na sexta-feira (14), em Cuiabá (MT).
O projeto de 1.708 quilômetros, que cruza os estados da Bahia, Goiás e Mato Grosso, é composto por três trechos: Fico 1, de Mara Rosa (GO) a Água Boa (MT), que está em construção em modelo de investimento cruzado; Fiol 2, de Caetité (BA) a Barreiras (BA), também em construção pelo poder público; e Fiol 3, de Correntina (BA) a Mara Rosa (GO), que deverá ser integralmente implantado pela vencedora a partir de determinados gatilhos de investimentos.
Os três trechos a serem concessionados seriam ligados à Fiol 1, já leiloada em 2021, mas que está com os investimentos para sua execução completamente fora do prazo previsto de entrega. E também à Fico 2, que ficou como um investimento não obrigatório da concessão (pode ser feito por acordo entre a concessionária e o poder concedente). A concessão cruza com outras duas malhas ferroviárias, a FNS (Ferrovia Norte-Sul) e a FCA (Ferrovia Centro-Atlântica).
Ao todo, o corredor ferroviário da Fico e da Fiol poderia chegar a 2.700 quilômetros de extensão, ligando Lucas do Rio Verde (MT), principal centro produtor de grãos do país, mercadoria que responde por 85% da carga estimada da ferrovia, ao Porto Sul, em Ilhéus (BA). Esse porto deveria ser construído pela concessionária da Fiol 1, a Bafer, que pertencia à mineradora Bamin, em modelo de autorização, mas também não há sinal de sua implantação.
E é justamente sobre a implantação do porto que as críticas dos participantes da AP mais recaíram. Para parte dos presentes, os riscos associados ao edital são altíssimos e se não houver compromisso do governo com a construção do Porto Sul, o projeto ferroviário não tem condições de se sustentar.
A dificuldade da empresa Bamin em concluir a Fiol 1 e o Porto Sul foram apresentados como alerta crítico à viabilidade da concessão e à atratividade do certame para potenciais players. Uma das participantes chamou o Porto Sul de “aberração logística que jamais sairá do papel”.
Luiz Antonio Pagot, ex-diretor-geral do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) e atualmente consultor da Infralog, afirmou que o produto essencial do projeto é o porto de Ilhéus e que o governo deve “dizer claramente” como o porto vai ser implantado.
“Se nós não tivermos nessa ponta o porto de Ilhéus devidamente estruturado para todos os tipos de cargas que esse corredor ferroviário poderá transportar, obviamente vai ficar um projeto capenga”, avaliou. “Se o governo não tiver comprometido com o porto de ilhéus, esquece, que esse projeto não fica de pé.”
O economista Daniel Keller, da consultoria Una Partners, ressaltou que o projeto tem uma série de etapas de investimentos de responsabilidade de outros agentes, o que traz elevado nível de risco. A ANTT colocou no projeto a maior taxa de risco para uma concessão da agência nos últimos anos, 14,4% ao ano, e ainda assim os agentes indicaram que isso pode não ser suficiente.
Manutenção do monopólio
Edeon Ferreira, diretor-executivo da Aprosoja (Associação Brasileira dos Produtores de Soja), afirmou que a modelagem apresentada mantém o monopólio no setor ferroviário. “Nós já temos um monopólio [da Rumo] de Porto Nacional [TO] até o porto de Santos [SP]. Nós já temos um monopólio da VLI de Porto Nacional até Itaqui [MA]. Nós temos que mudar esse desenho”, disse, mencionando a Ferrogrão como esperança.
A mesma linha crítica foi adotada por Luis Baldez, presidente-executivo da Anut (Associação Nacional dos Usuários do Transporte de Carga). Ele manifestou apoio a uma “rediscussão total” do modelo de concessão da Fico e da Fiol e sugeriu que o debate sobre a parte regulatória, avaliada por ele como “frágil”, fosse reiniciado.
Problemas na Fiol 3
Outra crítica foi à implantação da Fiol 3, trecho que vai ligar Correntina (BA) a Mara Rosa (GO), cujo projeto executivo, licenciamento e a construção serão de responsabilidade do subconcessionário. Participantes indicaram que a obra está com custo subavaliado e o tempo de quatro anos para a implantação seria altamente otimista. Edeon, da Aprosoja, disse achar “muito difícil” que uma empresa coloque recursos para fazer a Fiol 3 sem um aporte do governo federal.
Keller, da Una Partners, afirmou que a área da Fiol 3 é complexa, com desafios tanto no investimento como na incerteza de demanda. “A gente conclui que a Fiol 3 não agrega mais carga no sistema”, disse. “A gente não sabe qual vai ser o dispêndio de recurso para fazer um investimento de recurso na Fiol 3 ou não. Olha o tamanho da incerteza associada”, completou.
Aspectos técnicos
O investimento (capex) total previsto na concessão pelo prazo de 35 anos é de R$ 28,7 bilhões, sendo R$ 12,3 bilhões destinados à implantação da Fiol 3. O projeto é de bitola larga (1,60 metro). Segundo a ANTT, os principais produtos a serem escoados pelo trecho ferroviário são soja, milho e grãos (80%), fertilizantes (15%) e demais cargas como combustíveis, açúcar e algodão.
O cenário base considerado pela ANTT prevê que o ano 1 da concessão será 2027. De 2027 a 2029 (anos 1 a 3), caberá à concessionária executar ações preparatórias à operação. Está previsto que, no ano 2, a concessionária receba o trecho Fico 1 e inicie a operação até o ano 4. De acordo com o planejamento, o poder concedente deve concluir até 2030 os trechos Fiol 1 e Fiol 2, de forma a ativar o gatilho de operação para Fiol 2 e a implantação da Fiol 3, num prazo de seis anos. Pelo cenário-base, a obra deverá ser entregue em 2037.
Outorga
A vencedora do leilão terá que pagar no mínimo R$ 1,2 bilhão antes de assumir a concessão, dinheiro que ficará numa conta vinculada da concessão. Caso sejam cumpridas condicionantes, especialmente as que indicam viabilidade da implantação da Fiol 3, o poder concedente vai aportar R$ 1,6 bilhão para que a concessionária faça as obras da Fiol 3, o que inclui o dinheiro que estará na conta vinculada.
Se a implantação do trecho da Fiol 3 se mostrar inviável, no ano 10 da concessão, a concessionária fará o pagamento de uma segunda parcela da outorga fixa, de R$ 4,8 bilhões. Ainda de acordo com a ANTT haverá um incentivo para a participação de entidades de previdência complementar e fundos de investimento no leilão. A agência trabalha com a expectativa de conclusão da análise do TCU (Tribunal de Contas da União) e a publicação do edital no segundo semestre de 2025 e leilão no primeiro semestre de 2026.
Complexidade admitida
Presente à mesa, Diógenes Alvares, superintendente de Projetos Ferroviários da Infra S.A., afirmou estar diante de um projeto muito complexo, que envolve uma grande obra greenfield, é interdependente de outros contratos de concessão e que há espaço para melhoria. “Um projeto que depende de um porto que não existe. […] Nossa missão aqui, agora, daqui por diante, é compilar, é entender os pontos, discutir com a sociedade, com os atores políticos […] de modo que a gente consiga apresentar um projeto palatável.”
Maryane Figueiredo, diretora do Departamento de Obras e Projetos do Ministério dos Transportes, que substituiu o secretário de Ferrovias, Leonardo Ribeiro, na audiência, corroborou a fala de Diógenes sobre a complexidade da concessão. “Tem muitos desafios esse projeto”, disse. Ela ainda disse que o ministério deseja que a Fiol 3 se viabilize como política de longo prazo. “De maneira mais geral, como política pública, é desejável um corredor, que a Fiol 3 possa ser construída, faça essa ligação e consiga abrir mais uma oportunidade além [dos portos] de Santos e Itaqui.”
Marcelo Fonseca, superintendente de Concessão da Infraestrutura da ANTT, afirmou que a iniciativa tem um “caráter grande de complexidade”, que embute decisões de política pública e interação, no caso do porto, com a ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários). Ele afirmou que a agência vai apreciar “com bastante cuidado” as contribuições.