Lucas Navarro Prado*
A análise de compatibilidade locacional para autorizações ferroviárias vem sendo tratada, infelizmente, como uma checagem estritamente limitada à possibilidade de implantação geométrica da ferrovia objeto do pedido de autorização, considerando apenas eventuais interferências físicas com ferrovias já implantadas ou outorgadas. Pelo visto, pretende-se ignorar, solenemente, os aspectos econômico-financeiros decorrentes da usual condição de monopólio natural das ferrovias, os impactos nas concessões existentes, bem como as situações — que já se mostram concretas — em que há mais de um interessado no mesmo trecho. É como se tais aspectos fossem irrelevantes para a análise, o que não se pode legitimamente admitir. Neste artigo, defendo que essa visão sobre “compatibilidade locacional”, ou ao menos sobre o escopo de análise da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), precisa ser ampliada, considerando aspectos econômico-financeiros e eventuais requerimentos concorrentes pelo mesmo trecho, a fim de assegurar o desenvolvimento saudável do setor ferroviário.
A questão que ora se discute é urgente, porque a ANTT deve deliberar pela primeira vez sobre o tema já em 21/10/2021 (quinta-feira), conforme pauta da reunião de diretoria (item 2.1.2). De fato, em despacho de 15/10/2021, o diretor-geral se autodesignou relator ad hoc para alguns processos que tratam de análise de compatibilidade locacional1. O relatório apresentado pelo superintendente de Transporte Ferroviário2, por sua vez, conclui pela “compatibilidade locacional das propostas de implantação das infraestruturas”, quais sejam, (i) construção e exploração de estradas de ferro entre (i.a) os Municípios de Água Boa (MT) e Lucas do Rio Verde (MT), (i.b) os Municípios de Uberlândia (MG) e Chaveslândia (MG), (i.c) os Municípios de Porto Franco (MA) e Balsas (MA), e (ii) construção e exploração do Centro Logístico Campo Grande, em Santo André (SP).
Para exemplificar a preocupação, veja-se o caso do trecho entre Água Boa (MT) e Lucas do Rio Verde (MT). Na Nota Técnica SEI nº 5505/2021/COAPI/GEPEF/SUFER/DIR3, também de 15/10/2021, a área técnica da ANTT conclui que “não há conflito entre o traçado da ferrovia requerida e as demais infraestruturas ferroviárias implantadas ou outorgadas”, mas ressalva que o trecho requerido tem origem e destino coincidentes com trecho da Fico (Ferrovia de Integração Centro-Oeste), a qual foi outorgada à Valec. Ora, é surpreendente notar que a área técnica apontou a ressalva, mas não fez nenhuma avaliação mais detida sobre se a outorga da autorização, nesse caso, inviabilizaria ou não o trecho da Fico, nem quais seriam os impactos sobre uma concessão outorgada. Talvez porque seja óbvio: de fato, por se tratar de um monopólio natural, é certo que haverá inviabilidade econômica de se implantar esse trecho da Fico em paralelo ao trecho eventualmente autorizado.
Como a Valec é uma empresa pública e está subordinada à estrutura governamental, é provável que não reclame. Porém, o precedente abre a possibilidade de que, em outros casos, mesmo havendo concessionárias privadas afetadas, a ANTT também ignore os efeitos econômicos da decisão, limitando-se apenas a avaliar estritamente os aspectos técnico-operacionais de conflito de traçado. Existindo impacto em empresas privadas, no entanto, seguramente surgiriam pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro das concessionárias afetadas ou, talvez, até mesmo mandados de segurança para se impedir a outorga da autorização pleiteada. A ANTT não pode se olvidar de que ela atua como Poder Concedente nas concessões e, por conseguinte, não se pode admitir que a ANTT dê uma decisão que, de um lado, reconheça a “compatibilidade locacional” para implantação de uma ferrovia autorizada e, de outro, ignore e deixe de calcular os impactos econômico-financeiros em concessão outorgada, cujo ônus teria que ser arcado, ao final, pela União ou pelos usuários.
Outro fato curioso da referida nota técnica é o fato de que ela reconhece a existência de pedido concorrente de autorização com foco no mesmo trecho — de fato, para o trecho entre Água Boa e Lucas do Rio Verde, a VLI fez um primeiro pedido, ora em análise pela ANTT, e, alguns dias depois, a Rumo também apresentou outro pedido para o mesmo trecho —, mas afirma que isso não seria objeto de análise porque o destinatário do pedido de autorização é o Ministério de Infraestrutura. Como Pôncio Pilatos, a área técnica da ANTT parece querer lavar as mãos e simplesmente se mostra indiferente à disputa entre dois interessados. Ora, como se pode fazer uma análise de compatibilidade locacional efetiva — de modo a subsidiar o Ministério da Infraestrutura na sua tomada de decisão — sem considerar ambas as propostas concorrentes, fato notório e lembrado na própria nota técnica?
Vale reconhecer, no entanto, que esse encaminhamento talvez não tenha sido acidental. Na ânsia de acelerar o Programa de Autorizações Ferroviárias, aparentemente, o governo pretende ignorar os aspectos econômico-financeiros e as disputas entre empresas concorrentes. As redações da MP (Medida Provisória) nº 1.065, de 30/08/2021, e da Portaria do Ministério da Infraestrutura nº 131, de 14/10/2021, de fato, dão ensejo a possíveis interpretações restritivas quanto ao papel a ser desempenhado pela ANTT, com o intuito de limitá-la à análise de aspectos estritamente técnico-operacionais (veja-se, nesse sentido, o art. 2º, inc. VII, e o art. 7º, § 3º, da MP 1.0654, e o art. 2º, inc. I, e art. 7º, § 1º, da Portaria 1315).
De qualquer forma, o art. 9º, § 1º, da Portaria nº 131 pressupõe que a análise de compatibilidade locacional avalie a possibilidade de implantação concomitante de dois ou mais pedidos de autorização para o mesmo trecho. Isso não foi feito na nota técnica supracitada, que apenas se limitou a indicar que haveria um outro pedido concorrente, mas que não seria objeto de análise. Isso demonstra que, mesmo no padrão da regulamentação atual — que precisa ser melhorada —, houve uma grave omissão na instrução processual em tela.
Concluímos, pois, que:
- É fundamental que a ANTT dê o devido valor à competência que lhe foi atribuída e busque realizar uma análise de compatibilidade locacional mais robusta, no mínimo, considerando o conjunto de propostas concorrentes entre si, conforme já pressupõe a Portaria 131 (art. 9º, § 1º). Cumpre-lhe identificar se há e, em caso positivo, quais são os conflitos entre as propostas concorrentes, como forma de subsídio à decisão do Ministério de Infraestrutura; e
- Além disso, mostra-se imprescindível que a análise pela ANTT considere os impactos econômico-financeiros nas concessões existentes, caso venha a ser outorgada a autorização, independentemente de quem venha a ser a empresa autorizada e de quem é a concessionária prejudicada. Mesmo enquanto não haja uma revisão da medida provisória e da portaria que a regulamenta — de maneira que a ANTT fique expressamente responsável por avaliar também os impactos econômico-financeiros em concessões existentes —, essa competência da ANTT já decorre do seu dever de ofício como entidade que atua como Poder Concedente das concessões existentes, na medida em que celebra, fiscaliza e gere o dia-a-dia de tais contratos sob a perspectiva da União, cabendo-lhe conduzir os eventuais procedimentos de reequilíbrio econômico-financeiro, nos termos da Lei Federal nº 10.233/2001.
A ANTT não pode se furtar ao seu papel de entidade reguladora independente, prevenindo conflitos e encaminhando soluções sustentáveis. Não pode legitimamente participar da criação de um conflito e fazer de conta que não tem nada a ver com o problema.
Fica evidente que, se mantido o direcionamento atual dado pela instrução dos casos concretos pautados para deliberação da diretoria da ANTT nesta quinta-feira (21), há risco relevante de judicialização dos procedimentos em curso ou questionamento por parte dos órgãos de controle. Seria um mal começo, para algo tão esperado e festejado como o instituto das autorizações ferroviárias. A diretoria da ANTT ainda tem a oportunidade de corrigir o curso. Torço para que sejamos todos positivamente surpreendidos nesse sentido!