iNFRADebate: As autorizações para especuladores ferroviários e o interesse público

Bernardo Figueiredo*

O novo marco regulatório das ferrovias, aprovado recentemente pelo Senado Federal, foi produto de uma ampla discussão com todos os segmentos interessados e de uma profunda análise dos cuidados que deveriam ser observados para preservar o interesse público e garantir que o mecanismo das autorizações, que pode agilizar os investimentos na infraestrutura ferroviária, seja implementado com segurança, eficiência e observância das boas práticas.

Na reta final deste processo o Minfra (Ministério da Infraestrutura), ansioso para criar um fato político e negligente com a sua consistência, edita uma medida provisória sem nenhum dos atributos conquistados pelo projeto de lei aprovado no Senado Federal. E inicia uma cruzada para fazer um portfólio de pedidos de autorização com a maior velocidade possível, aproveitando que a MP não faz nenhuma exigência de consistência nos pedidos, e acena com uma absoluta falta de avaliação de consequências negativas para as solicitações pedidas, sem maior compromisso com a efetividade do que se propôs.

O sucesso desta empreitada do Minfra se traduziu, de fato, numa corrida desenfreada para garantir posições no jogo das autorizações, aproveitando as brechas abertas pela MP, no curto espaço de tempo em que vigorará, ainda que seja prorrogada. 

Para produzir os efeitos legais e legitimar o processo de autorizações outorgadas no período de vigência da medida, e surpreendido com pedidos de autorizações em trechos coincidentes, o Minfra edita uma portaria criando um “fast track” para a tramitação dos pedidos.  

Por incrível que pareça, estabelece, para os casos em que houvesse mais de um pedido para o mesmo trecho, o critério de priorização para análise de quem apresentou a proposta com maior velocidade, obrigando o segundo mais rápido a ter que se virar para ajustar o seu traçado em função de uma análise de viabilidade locacional, seja lá o que signifique isto na prática. E mais: com aplicação retroativa do critério, pois se aplica a pedidos apresentados antes da publicação da Portaria 131.

Para justificar um critério tão vazio de conteúdo, o Minfra, os beneficiados e, surpreendentemente, a área técnica do TCU, acenam com a possibilidade de se conceder duas autorizações para o mesmo trecho ferroviário, o que seria bom para o mercado porque haveria uma concorrência entre as duas.

Tudo seria perfeito se fosse verdade. 

Nunca, em lugar nenhum do mundo, isso aconteceu, e não acontecerá aqui.

Isso só funcionará porque nenhuma das propostas de autorização tem nenhum compromisso de realização efetiva dos investimentos que serão autorizados e não haverá nenhuma consequência prática para o autorizatário que estiver apenas se posicionando em projetos estratégicos para o país, a espera de que isso vire uma oportunidade ao longo do tempo.

Existem critérios de seleção de propostas mais aderentes ao interesse público e que dariam mais consistência às autorizações, como, por exemplo, escolher quem apresentar um cronograma de execução mais curto, escolher a proposta que oferecer mais capacidade de transporte ou maior capacidade a ser compartilhada com terceiros, ou até escolher quem pague maior valor pela outorga.

O projeto de lei aprovado no Senado pode ser aperfeiçoado na Câmara dos Deputados no sentido de estabelecer critérios de análise das solicitações de autorização mais robustos e de seleção de propostas que contemplem o interesse público e a efetividade dos investimentos.

Mas a pressa em criar o fato consumado antes da aprovação final do projeto de lei parece que está prevalecendo.

As razões para isso só saberemos daqui a um tempo.

Os investimentos privados em ferrovia exigem projetos consistentes, avaliações exaustivas e condições muito especiais de viabilidade. O Brasil precisa de mais ferrovias e não podemos desmoralizar um instrumento de facilitação da participação privada na construção de novas ferrovias porque temos pressa.

A Ferrovia Norte-Sul, nos dois trechos concedidos à inciativa privada, tem uma lógica econômica forte, atende regiões com potencial de crescimento e exigiu muito esforço público para se viabilizar, lembrando que mais de 70% dos investimentos na implantação da ferrovia foram feitos com recursos públicos.

Não podemos acreditar que agora, na sua área de influência, a iniciativa privada vai aportar 100% dos recursos na implantação de duas ferrovias paralelas.

Os investidores e os financiadores não vão bancar projetos sem consistência e nem autorizações descabidas, realizadas somente para servir de propaganda política ou favorecer o posicionamento estratégico de algum especulador ferroviário.

O Brasil não pode se dar ao luxo e fingir que vai fazer ferrovia.

O Brasil precisa de mais ferrovias.

As autorizações são um instrumento importante para alavancar os investimentos necessários para dotar o país de uma infraestrutura ferroviária que garanta competitividade ao setor produtivo e reduza a dependência insustentável que a logística nacional tem do transporte rodoviário de cargas.

Vamos construir um processo de autorizações com amadurecimento, consistência e aderência ao interesse público.

O tempo para isso é o necessário para as avaliações adequadas à complexidade de cada projeto. Achar que algum atalho vai fazer ganhar alguns meses desse tempo é não ver que vai se perder alguns anos para corrigir no futuro.

*Bernardo Figueiredo tem 48 anos dedicados às questões de logística e mobilidade. Foi diretor-geral da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e criou e presidiu a EPL (Empresa de Planejamento e Logística). Hoje, é consultor em logística e mobilidade.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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