iNFRADebate: Concorrência nacional coloca Brasil nas rotas marítimas internacionais

Gesner Oliveira*

É fundamental assegurar elevada concorrência nos leilões domésticos da área portuária para inserir o Brasil de forma competitiva nas rotas marítimas internacionais. 

Daí a importância da licitação que se aproxima do terminal STS 10 (ou “Cais do Saboó”) na margem direita do porto de Santos. Previsto no novo Plano de Desenvolvimento e Zoneamento do Porto Organizado de Santos (SP), o projeto foi qualificado no PPI (Programa de Parcerias de Investimentos) em 2021 e teve seu leilão de arrendamento agendado para o quarto trimestre deste ano. 

O valor estimado do contrato é de R$ 27,87 bilhões, com investimentos estimados pela EPL (Empresa de Planejamento e Logística) de R$ 3,3 bilhões (enquanto o setor privado estima quase o dobro) para atingir a capacidade operacional de 2,3 milhões TEUs/ano. Trata-se de expansão com potencial de inserir o Brasil nas principais rotas marítimas do mundo.

Dada sua relevância, o projeto foi objeto da Audiência Pública 06/2022 realizada pela ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), cujo prazo para contribuições se encerrou em 31 de maio de 2022. Os aspectos concorrenciais no porto de Santos têm gerado muita polêmica no setor portuário1, tendo alguns agentes se manifestado neste mesmo espaço em favor de maior restrição à competição neste certame. A justificativa é evitar uma elevada concentração de mercado pós-leilão e o agravamento de supostas práticas anticompetitivas de armadores como a Maersk e MSC, co-controladores da BTP.

O objetivo deste artigo é desmistificar o debate e demonstrar que não há necessidade de restringir a competição pelo leilão para além do que já está previsto na minuta do edital sob análise da ANTAQ. Para tanto, são abordados três pontos principais: (i) a integração vertical no setor portuário é tendência mundial e gera importantes eficiências operacionais; (ii) as premissas adotadas na análise concorrencial realizada pela Seae (Secretaria de Acompanhamento Econômico) e na nota técnica da SG (Superintendência-Geral) do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) que identificou potenciais riscos concorrenciais na vitória de Maersk, MSC e/ou BTP no certame estão incorretas; e (iii) as alegações sobre práticas anticompetitivas por parte de players verticalizados – como o suposto “self-preferencing” – estão sendo investigadas, mas não foram identificadas. Além disso, tais práticas não são ilegais per se e existem mecanismos de controle por parte do Poder Concedente e do próprio Cade para inibir e reprimir qualquer tipo de conduta anticompetitiva pós-leilão.

Com relação ao primeiro ponto, destaque-se que, embora no início das discussões sobre o leilão do STS 10 as inúmeras eficiências operacionais da integração vertical no setor – tais como expansão da capacidade antes da efetiva demanda, redução de custos e atrasos, e aumento do bem-estar social – tenham sido muito questionadas, verifica-se que os críticos já foram convencidos de tais eficiências. Não à toa: tal prática é reconhecidamente uma tendência mundial e pode ser observada em uma série de portos na Europa, Ásia e outras partes do mundo.

O caso do porto de Santos também é ilustrativo nesse sentido. Desde a entrada da BTP, em 2013, verifica-se que o preço médio de movimentação no porto despencou: dados da Autoridade Portuária de Santos indicam queda de cerca de US$ 300,00, em 2014, para US$ 100,00, em 2021. O mesmo se verifica com o tempo médio de atracação, que em 2013 era de cerca de 20 horas e, em 2021, passou para uma média de 13,5 horas.

Com relação às premissas da Seae e da SG do Cade, houve uma série de manifestações relacionadas à dinâmica concorrencial no porto de Santos e aos possíveis cenários do leilão do STS 10. No ano passado, a EPL do Ministério da Infraestrutura desenvolveu uma série de análises para dar suporte técnico à elaboração da minuta de edital, posteriormente levada à consulta pública. A extensa análise concorrencial realizada pela EPL, a qual se baseou no Guia a para Análise de Impacto Concorrencial para Novas Outorgas de Terminais Portuários, levou em consideração diversos cenários e concluiu que, mesmo no cenário mais conservador, não haveria preocupação concorrencial decorrente da participação de agentes integrados verticalmente.

Houve críticas equivocadas à referida análise pela suposta desconsideração de aspectos consolidados na jurisprudência do Cade a respeito da dinâmica concorrencial no setor. Ocorre que a análise concorrencial para casos típicos de atos de concentração (ACs), sob competência do Cade, além de não se aplicar a licitações públicas, não deve ser confundida com aquela voltada para processos e planejamento estratégico de longo prazo da infraestrutura nacional. Embora sirva de referência, a metodologia para análise de ACs não pode ser integral e mecanicamente importada para apreciação destes casos. 

Dentre outras razões, pelo fato de a estrutura técnica do setor portuário estar associada – no Brasil e no mundo – a grandes investimentos, que levam a maiores níveis de concentração, visando à maior eficiência logística. Trata-se, portanto, de setor marcado por elevadas barreiras à entrada, custos de transação e enormes economias de escala. 

Além disso, ao contrário do que ocorre na análise de um AC, quando duas empresas começam a operar em conjunto imediatamente, o início da operação de um novo terminal portuário não ocorre da noite para o dia. No caso do leilão do STS 10, projeto que mais se assemelha a um do tipo greenfield, a previsão é de início de operação entre 2027/28. Não é por acaso que o Cade reconheceu, corretamente, não ter competência para interferir nos critérios de participação na licitação deste terminal. O órgão indeferiu, ainda, medida preventiva solicitada pela Abtra (Associação Brasileira de Terminais e Recintos Alfandegados) que pretendia afastar as empresas marítimas da licitação, por entender que não há vácuo regulatório e que as preocupações concorrenciais foram devidamente consideradas pelo Poder Concedente.

Já a NT (Nota Técnica) nº 10/2022 elaborada pela SG em sede de advocacia da concorrência adotou uma série de premissas incorretas na sua análise do caso, assim como a manifestação da Seae no contexto da consulta pública. Para começar, tendo como pano de fundo a discussão sobre integração vertical, a análise contida nos documentos foca apenas nos possíveis impactos concorrenciais de uma eventual vitória da BTP (e não de seus acionistas isoladamente, ou ainda, por exemplo, em vitória da Santos Brasil, com participação de mercado similar à da BTP, em torno de 40%). Ocorre que a última minuta do edital do STS 10, ainda sob análise da ANTAQ, já restringe a participação da BTP, bem como de consórcio entre empresas dos grupos Maersk e MSC. 

A análise da SG adota a premissa de que os grupos econômicos dos dois armadores atuam sempre de forma conjunta, desconsiderando que são concorrentes diretos e podem participar separadamente da licitação via APMT (APM Terminals), no caso do Grupo Maersk, e TIL (Terminal Investment Limited), no caso do Grupo MSC. Os defensores da menor competição pelo mercado no leilão do STS 10 usam como argumento o cenário de vitória da BTP, mas, sem argumentos, também tentam afastar a participação dos armadores de forma individual. 

Outra premissa equivocada da referida NT diz respeito ao papel desempenhado pelos VSAs (Vessel Sharing Agreements) na escolha dos terminais portuários pelos armadores. Assume-se, nos cenários potencialmente envolvendo as duas armadoras, que o terminal de destino seria necessariamente aquele por elas controlado. Ocorre que há um conjunto de critérios para a escolha do terminal de destino das cargas de um navio com este tipo de acordo, dentre eles o consenso unânime entre as linhas de navegação envolvidas. Se o terminal no qual o Grupo Maersk ou o Grupo MSC não for o mais eficiente ou identificado como o melhor custo-benefício pelos demais parceiros do VSA, ele não será definido como o terminal de destino das cargas, fato que reduziria os níveis de concentração calculados pela SG após o leilão.  

Por fim, a análise da SG superestima os market shares das linhas de navegação, pois é realizada considerando ceteris paribus as informações do grau de concorrência e situação do mercado em 2020, como se a capacidade aumentasse imediatamente, a exemplo de um AC tradicional. Não são considerados nem que o aumento da capacidade no STS 10 será gradual, ao longo de vários anos, nem que nesse meio tempo haverá aumento de demanda, com atração de novas linhas de navegação e novos volumes delas advindos, e possíveis outras fontes de pressão competitiva no porto.

Em que pesem as limitações da análise concorrencial realizada, ainda assim a recomendação do Cade é de que, caso haja opção de não limitar a competição pelo leilão do STS 10, sejam implementados mecanismos de controle no edital e contratos para reprimir eventuais condutas anticompetitivas. Tal recomendação, conforme destacado pelo próprio órgão na referida NT, não é para que se limite a participação individual dos grupos dos armadores, e está em linha com as melhores práticas nacionais e internacionais que têm como preocupação principal estimular a concorrência nas licitações. De fato, a inserção de regras restritivas deve ser, nas palavras do órgão, considerada sempre com o máximo de cautela possível e apenas por motivos estritamente necessários, o que não é o caso.

Por fim, verifica-se que as supostas práticas anticompetitivas alegadas por agentes do setor em face dos players verticalizados não são ilegais per se, e já estão sendo investigadas pelo Cade, por meio do Inquérito Administrativo 08700.003945/2020-50, sem que tenha sido comprovada a existência da prática, ou constatado qualquer ilícito concorrencial até o momento. Aliás, a própria investigação em curso reforça que o órgão, além do Poder Concedente, possui mecanismos para reprimir eventuais abusos pós-leilão: não há necessidade, portanto, de restrições à competição pré-leilão, diminuindo desnecessária e equivocadamente a concorrência. 

Especificamente com relação à suposta conduta de “self-preferencing”, verifica-se, novamente, que não há sequer provas de que tenha ocorrido. Pelo contrário, de acordo com dados divulgados pelo Datamar, atualmente mais de 60% das cargas do Grupo Maersk, por exemplo, são direcionadas para o terminal da Santos Brasil, concorrente da BTP. Ora, os críticos da concorrência pelo leilão baseiam-se em argumentos não comprovados para supostamente evitar um “agravamento” de condutas anticompetitivas no futuro.

Vale destacar que os mesmos defensores de menor competição, alegam ainda que não haveria necessidade de maior capacidade no Porto de Santos, nesse momento. Ora, quem deve julgar se há ou não necessidade de novos investimentos, é o investidor e seu apetite para tomada de risco, e não os atuais players do mercado em questão – os quais tem, por sua vez, interesse na manutenção da oferta reduzida de capacidade e consequente oportunidade para aumento de preços.  

Em suma, resta evidente que quando se considera, na análise concorrencial do leilão do STS 10: que (i) a eventual vitória da BTP ou de seus co-controladores de forma conjunta já foi descartada pelos termos do edital, (ii) a participação de mercado dos grupos Maersk e MSC está superestimada; (iii) a premissa ceteris paribus da concorrência no Porto de Santos não é razoável; (iv) a visão sobre os destinos das cargas envolvendo VSAs é extremamente conservadora; e que (v) a prática de self-preferencing não só não foi comprovada, como também não é ilegal per se; as preocupações concorrenciais levantadas nos artigos publicados neste mesmo espaço2 vão por água abaixo.

A expansão do porto de Santos constitui oportunidade ímpar de inserir o Brasil nas principais rotas marítimas do mundo. Para tanto, é fundamental que haja maior concorrência pelo leilão do STS 10, de modo a estimular mais investimentos na expansão da capacidade e na redução da ineficiência do porto, em benefício do interesse público. Portanto, não há justificativa para a restrição da concorrência pelo leilão para além do que já está previsto na minuta do edital sob análise da ANTAQ.

1 Ver, por exemplo: https://agenciainfra.com/blog/infradebate-sts10-contra-fatos-nao-ha-argumentos/; e https://agenciainfra.com/blog/infradebate-alem-das-narrativas-analise-dos-impactos-concorrenciais-do-arrendamento-de-sts10-no-porto-de-santos/. Em favor da maior concorrência pelo certame, vale destacar: https://agenciainfra.com/blog/infradebate-restricoes-no-sts10-quem-ganha-e-quem-perde-com-a-reserva-de-mercado/.
2 Ver: https://agenciainfra.com/blog/infradebate-sts10-contra-fatos-nao-ha-argumentos/; e https://agenciainfra.com/blog/infradebate-alem-das-narrativas-analise-dos-impactos-concorrenciais-do-arrendamento-de-sts10-no-porto-de-santos/.
*Gesner Oliveira é sócio da GO Associados e professor da FGV-SP, onde coordena o Centro de Estudos de Infraestrutura e Soluções Ambientais. Foi presidente da Sabesp e do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), além de secretário de Acompanhamento Econômico e secretário adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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