Marcelo Rangel Lennertz*
I. Introdução1
Na Guidance Note emitida em 02/04/2020 pela Infrastructure and Project Authority (“Guidance Note”), o Governo do Reino Unido2 afirma que a pandemia da COVID-19 não configura um “Force Majeure Event”3 nos contratos de PFI e PF24 (que se assemelham às parcerias público-privadas – PPPs brasileiras). Essa afirmação tem sido citada nos debates sobre os impactos da pandemia nos contratos administrativos no Brasil por aqueles que buscam relativizar ou mesmo evitar a caracterização jurídica desse fato como um “Evento de Caso Fortuito ou Força Maior”.
O Reino Unido tem grande experiência no envolvimento do setor privado em projetos para investimento em infraestrutura pública e prestação de serviços essenciais à população. Por isso, as práticas por lá adotadas tendem a repercutir no Brasil e têm o potencial de influenciar a construção entre nós de propostas para o enfrentamento da crise atual causada pela COVID-19.
O objetivo dessa breve nota é evitar que a leitura desatenta e descontextualizada da Guidance Note do Governo do Reino Unido influencie e impacte indevidamente a vida das concessões no Brasil.
Para isso, explico que (item II) o conceito de “Force Majeure” nos contratos de PFI e PF2 não é equivalente ao conceito de caso “Caso Fortuito ou Força Maior” no Brasil, e que, (item III) apesar de a pandemia não ter sido enquadrada juridicamente, para fins dos contratos de PFI e PF2, como um “Force Majeure Event”, a recomendação no Reino Unido é que o Poder Concedente5 adote medidas que importam na assunção de parte relevante dos efeitos da pandemia sobre as Contratadas6, de modo a assegurar a continuidade dos contratos. Na conclusão (item IV), demonstro que a (i) não caracterização da pandemia da COVID-19 pelo Reino Unido como um “Force Majeure Event” nos contratos de PFI e PF2 é irrelevante para a discussão no Brasil sobre se a pandemia configura um evento de Caso Fortuito ou Força Maior – e, consequentemente, sobre se esse evento gera para as concessionárias o direito ao reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão – e que (ii) há lições mais importantes a serem extraídas da posição do Governo do Reino Unido diante dos impactos da COVID-19 nos contratos públicos, que podem servir de inspiração para a construção de soluções para os problemas que vêm sendo enfrentados pelas concessionárias no Brasil.
Antes de passar à análise do tema desta nota, é necessário deixar claro para o leitor que atuo como advogado na defesa dos interesses de concessionárias de diversos setores que estão sendo impactadas tanto pela pandemia da COVID-19 quanto pelos atos de autoridades públicas no combate da pandemia.
II. “Force Majeure Events” não correspondem a “Eventos de Caso Fortuito ou Força Maior”
Se analisarmos o disposto nos contratos de PFI e PF2 do Reino Unido7, fica claro que os denominados “Force Majeure Events” não correspondem aos “Eventos de Caso Fortuito ou Força Maior” previstos na legislação brasileira. Trata-se de conceitos distintos, que possuem diferenças relevantes ao menos quanto (a) às hipóteses de enquadramento de eventos nesses conceitos e quanto (b) à alocação de risco a eles subjacente e suas consequências para a definição sobre qual parte da relação contratual – e em que medida – deve suportar quais efeitos gerados pela ocorrência de um evento caracterizado juridicamente como um “Force Majeure Event” ou como um “Evento de Caso Fortuito ou Força Maior”:
a) Hipóteses de enquadramento de eventos como um “Force Majeure Event” nos contratos de PFI e PF2 e como um “Evento de Caso Fortuito ou Força Maior” nos contratos administrativos no Brasil:
A cláusula padrão de “Force Majeure Events” dos contratos de PFI e PF2 elenca taxativamente quais são os eventos que se enquadram nessa categoria8. Nesse conjunto de eventos não foram expressamente incluídos os casos de pandemia. Por essa razão, a pandemia da COVID-19 não foi considerada um “Force Majeure Event” pelo Governo do Reino Unido.
No Brasil, a lei não define taxativamente quais os eventos que se caracterizam como “Eventos de Caso Fortuito ou Força Maior”. Muito pelo contrário, a definição legal é aberta9 e apenas estabelece como requisitos que o fato que se pretende enquadrar como “Evento de Caso Fortuito ou Força Maior” seja “necessário” e que seus efeitos não possam ser evitados ou impedidos pelas partes10. Na prática, tanto na doutrina11 como na jurisprudência esses requisitos têm sido interpretados de modo a se entender que se enquadram na definição legal quaisquer eventos cuja ocorrência as partes de um contrato não poderiam (i) prever12 ou (ii) controlar13 e que (iii) impeçam o cumprimento pela parte devedora de suas obrigações nos termos originalmente previstos no contrato14.
Nos contratos administrativos brasileiros, tem sido usual a mera remissão à definição legal de “Eventos de Caso Fortuito ou Força Maior”. Quando se formulam cláusulas que buscam elencar expressamente hipóteses que se enquadram nesse conceito, elas têm caráter exemplificativo15, e não taxativo – ainda que, em relação aos contratos de concessão comum e de PPP, possa haver alguma discussão quanto à viabilidade jurídica da previsão de um rol taxativo de fatos que configurem “Eventos de Caso Fortuito ou Força Maior”16.
Por essa razão, mesmo que as epidemias e pandemias não estejam expressamente previstas como “Eventos de Caso Fortuito ou Força Maior” nos contratos administrativos brasileiros – incluindo os contratos de concessão comum e de PPP – a Administração Pública17 e o Judiciário18 não encontrarão obstáculos para reconhecer o seu enquadramento nessa categoria. No caso específico da pandemia da COVID-19, por se tratar de fato sem precedentes no Brasil pelo menos nos últimos 100 anos19, incontrolável por qualquer das partes dos contratos administrativos e que tem impactado drasticamente a execução desses contratos, a sua caracterização como “Evento de Caso Fortuito ou Força Maior” é ainda mais evidente.
b) Alocação do risco de ocorrência de “Force Majeure Events” nos contratos de PFI e PF2 e de “Eventos de Caso Fortuito ou Força Maior” nos contratos administrativos no Brasil e suas consequências:
Nos contratos de PFI e PF2, “Force Majeure Events” são casos específicos, com consequências próprias, da categoria genérica “Supervening Events” (“Eventos Supervenientes”). Quando ocorrem, geram a desoneração da parte afetada (Contratada e/ou Poder Concedente) quanto ao cumprimento de suas obrigações e podem levar à extinção do contrato (se, no prazo previamente estabelecido, as partes não chegarem a um acordo sobre como lidar com os efeitos de tais eventos sobre o contrato), com o consequente pagamento de indenização à Contratada (que deve, no entanto, se limitar a cobrir os compromissos financeiros assumidos pela Contratada e custos20 gerados pela extinção do contrato21). Nesse sentido, o risco de ocorrência de um “Force Majeure Event” nos contratos de PFI e PF2 é compartilhado entre Contratada e Poder Concedente22, já que nenhuma das partes tem o direito de exigir da outra parte o cumprimento de suas obrigações ou a compensação integral pelos prejuízos sofridos em função do “Force Majeure Event”.
Também são casos específicos de “Supervening Events” nesses contratos, com características e consequências específicas e distintas dos “Force Majeure Events”, os chamados “Compensation Events” (eventos que são risco do Poder Concedente e que fazem surgir para a Contratada o direito de ser compensada pelos impactos que sofreu – por exemplo, atrasos em seu cronograma, aumento de custos ou perdas de receita – além da desoneração de obrigações cujo cumprimento houver sido impactado por esses eventos) e os “Relief Events” (eventos que, embora sejam risco da Contratada, podem autorizar a desoneração da Contratada pelo Poder Concedente em relação ao cumprimento de certas obrigações e à aplicação de penalidades – no limite, a prerrogativa do Poder Concedente de terminar o contrato –, mas que não lhe conferem o direito a ser compensada pelos impactos que lhe foram causados e nem levam à extinção do contrato).
Já na legislação brasileira que rege os contratos administrativos, os “Eventos de Caso Fortuito ou Força Maior” são exemplos de Eventos Supervenientes – e não casos específicos, como os “Force Majeure Events” dos contratos de PFI e PF2 –, cujo risco é alocado à Administração Pública Contratante / Poder Concedente23, e que, simultaneamente, geram para a Contratada (i) o direito a ser compensada por impactos que lhe forem causados por esses eventos (art. 65, II, d, da Lei nº 8.666/1993), (ii) a desoneração quanto a obrigações que tiveram seu cumprimento dificultado ou impedido por esses eventos (art. 393 do Código Civil, c/c art. 54 da Lei nº 8.666/1993) e (iii) o direito à extinção do contrato, quando sua execução ficar impedida em razão da ocorrência desses eventos (art. 78, XVII, da Lei nº 8.666/1993). Ou seja, pode-se dizer que, no Brasil, os “Eventos de Caso Fortuito ou Força Maior” (e todos os demais exemplos de “Eventos Supervenientes” previstos no art. 65, II, d, da Lei nº 8.666/1993) contemplam, simultaneamente, as consequências de todas as três espécies de “Supervening Events” (i.e., “Compensation Events”, “Relief Events” e “Force Majeure Events”) dos contratos de PFI e PF2 do Reino Unido.
Portanto, carece de sentido a tentativa de se buscar na Guidance Note do Governo do Reino Unido fundamentos para relativizar ou mesmo evitar a caracterização jurídica da pandemia da COVID-19 nos contratos administrativos no Brasil como um “Evento de Caso Fortuito ou Força Maior”.
III. Quais os efeitos práticos do não enquadramento da pandemia como um “Force Majeure Event” nos contratos de PFI e PF2?
A afirmação contida na Guidance Note do Governo do Reino Unido de que a pandemia da COVID-19 não configura um “Force Majeure Event” nos contratos de PFI e PF2 significa, simplesmente, que pandemias não constam do rol (taxativo) de hipóteses previstas nesses contratos para a caracterização de um “Force Majeure Event”. O principal efeito prático dessa constatação é impedir que as Contratadas possam requerer a extinção da relação contratual, com o consequente pagamento de indenização pelo Poder Concedente24.
Isso, no entanto, definitivamente não quer dizer que (i) pandemias não devam ou não possam ser consideradas “Force Majeure Events” em outros contratos – de outros países25 ou do próprio Reino Unido26 –; ou que (ii) o conceito de “Force Majeure Events”, a alocação de riscos a ele subjacente e suas consequências nos contratos de PFI e PF2 devam ser considerados e utilizados para caracterizar juridicamente a pandemia em outros contratos. Também não quer dizer que, mesmo nos contratos de PFI e PF2, (iii) os efeitos da pandemia devam ser suportados exclusivamente pelas Contratadas – como se demonstra a seguir.
A análise da Guidance Note – em conjunto com os demais documentos27 a que ela se relaciona – revela que, mesmo não reconhecendo a pandemia como um “Force Majeure Event” nos contratos de PFI e PF2, o Governo do Reino Unido recomenda que o Poder Concedente nesses contratos esteja preparado para assumir parte relevante dos efeitos causados pela pandemia sobre as Contratadas, nos casos em que isso for necessário para manter a prestação dos serviços. A premissa da Guidance Note é que através dos contratos de PFI e PF2 são prestados serviços públicos essenciais ou atividades de apoio a tais serviços, que não podem ser interrompidos durante a pandemia ou que devem estar prontamente disponíveis à população quando cessar o período de emergência causado pela COVID-19 no Reino Unido28.
Assim, sempre que, em função dos impactos da COVID-19 (incluindo impactos como o adoecimento da força de trabalho e custos adicionais com a adoção de novas medidas de saúde e segurança no trabalho), o Poder Concedente identificar que a Contratada em uma relação contratual de PFI ou PF2 não será capaz de cumprir adequadamente suas obrigações (em especial, no caso de impossibilidade de atingimento do nível de desempenho exigido pelo contrato), recomenda-se na Guidance Note que as partes avaliem a utilização de medidas como:
- a moderação das obrigações contratuais da Contratada e parâmetros de desempenho29;
- a suspensão da aplicação de mecanismos de vinculação do pagamento ao desempenho (evitando, por exemplo, descontos em razão de um desempenho inferior ao exigido no contrato)30; e
- a manutenção do pagamento realizado à Contratada31 (sugere-se a utilização, como base, da média dos três meses anteriores à pandemia)32, ainda que o serviço, por força da pandemia, esteja sendo prestado em nível inferior ao previsto no contrato33 e independentemente da possibilidade de se realizar um “acerto de contas” quanto a esses valores no futuro34.
Também são expressamente admitidas medidas excepcionais, como a “aceleração” do pagamento35 pelo Poder Concedente das faturas devidas às Contratadas – ainda que elas estejam dentro do prazo previsto de 30 dias para o pagamento e que delas constem erros ou irregularidades menores, que poderão ser posteriormente corrigidos –, e até mesmo a possibilidade de antecipação de pagamentos às Contratadas, na importância de até 25% do valor do contrato, em circunstâncias que, no entendimento do Accounting Officer, sejam justificáveis em uma análise de custo-benefício36.
Com o objetivo de proporcionar segurança jurídica aos agentes públicos e às Contratadas, foram publicados um caderno de perguntas e respostas37 sobre a implementação da política pública desenhada pelo Governo britânico e uma minuta padronizada38 dos “termos provisórios de pagamento”, a ser considerada e adaptada pelas partes em cada contrato para viabilizar a adoção de uma ou mais das medidas acima mencionadas – embora a recomendação específica para os contratos de PFI e PF2 na Guidance Note seja de priorizar a utilização de mecanismos já previstos contratualmente para viabilizar a adoção dessas medidas. Os documentos reforçam que cada autoridade pública contratante tem autonomia para decidir quais são as Contratadas que estão sendo afetadas pela pandemia e quais as medidas de apoio que podem ser adotadas visando à continuidade dos serviços, a preservação das infraestruturas, cadeias produtivas e empregos. A decisão deve considerar as características de cada caso, mas, tendo em vista a urgência da situação, não se exige da autoridade pública contratante que proceda a uma avaliação detalhada dos impactos sofridos pela Contratada ou da viabilidade econômico-financeira das medidas propostas para enfrentá-los39.
Em contrapartida, o Governo do Reino Unido espera que as Contratadas dos contratos de PFI e PF2 se considerem parte da resposta do setor público à crise provocada pela COVID-1940. Nesse sentido, reforça que elas devem:
- assegurar que seus planos de contingência estejam atualizados e tenham sido discutidos e revisados pelos respectivos Poderes Concedentes;
- colocar esses planos de contingência em prática imediatamente, realizando seus melhores esforços para, na medida do possível, viabilizar a continuidade dos serviços em sua integralidade41; e
- agir com total transparência e lealdade: é requisito para poder contar com as medidas de apoio disponibilizadas pelo Governo britânico que as Contratadas concordem em atuar de forma transparente, disponibilizando informações sobre seus custos para o Poder Concedente durante esse período e discriminando aqueles que decorrem especificamente dos impactos da pandemia sobre o contrato. Adicionalmente, devem assumir o compromisso de manter o pagamento de seus empregados e subcontratados.
Além disso, orienta-se que o Poder Concedente (i) jamais permita que os parâmetros de desempenho a serem cumpridos pelas Contratadas sejam reduzidos a um nível que coloque em risco a segurança na prestação dos serviços, (ii) avalie cuidadosamente os pedidos de ajuda de Contratadas que, antes da pandemia, já tinham desempenho inferior ao exigido pelo contrato e (iii), caso constate que a Contratada violou os compromissos de transparência e lealdade e buscou obter vantagem indevida por meio das medidas de apoio que lhe foram disponibilizadas, instaure procedimento para reaver valores e penalizar a Contratada.
Ou seja, de todo o exposto, percebe-se que, também da perspectiva de seus efeitos práticos sobre a resposta do Governo do Reino Unido, não faz sentido citar o não reconhecimento da pandemia como um “Force Majeure Event” como argumento para sustentar que os Poderes Concedentes no Brasil não devam suportar os impactos desse evento sobre as concessões. A análise da Guidance Note e demais documentos que integram a resposta do Governo britânico aos efeitos da pandemia da COVID-19 sobre os contratos públicos revela (i) a adoção de uma postura pragmática, com foco no enfrentamento dos problemas de forma cooperativa com o setor privado, com o objetivo de viabilizar, da melhor maneira possível, a continuidade da prestação de serviços essenciais – ainda que isso signifique que, em casos específicos, o poder público deva assumir integralmente os impactos financeiros da pandemia, (ii) uma invejável capacidade de coordenação para produzir, com rapidez, orientações claras e padronizadas para os agentes públicos e para as Contratadas e (iii) a preocupação com a segurança jurídica necessária para que as partes sintam-se confortáveis para construir soluções no ambiente de incerteza criado pela crise da COVID-19.
IV. Conclusão: a (ir)relevância da decisão do Governo do Reinou Unido para o enfrentamento dos impactos da COVID-19 sobre as concessões e PPPs no Brasil
Em resumo, portanto, a decisão do Governo do Reino Unido em sua Guidance Note de não considerar a pandemia da COVID-19 um “Force Majeure Event” nos contratos de PFI e PF2 é irrelevante para a discussão sobre o enquadramento no Brasil desse fato como um “Evento de Caso Fortuito ou Força Maior”. As diferenças entre esses conceitos (i.e., diferenças quanto às hipóteses de enquadramento, à alocação de risco e às consequências) tornam, nesse caso, completamente sem sentido a comparação entre as realidades britânica e brasileira.
Se há lições relevantes a serem extraídas da posição do Governo do Reino Unido no enfrentamento dos impactos da COVID-19 para a construção de propostas aplicáveis às concessões e PPPs no Brasil, essas lições dizem respeito (i) à postura pragmática e cooperativa com as Contratadas, (ii) à capacidade de coordenação e rapidez na formulação de uma resposta aos impactos da pandemia sobre os contratos públicos e (iii) à preocupação com a produção de segurança jurídica em um ambiente de incerteza que, por vezes, requer soluções inovadoras e arrojadas.