iNFRADebate: Crise da Califórnia e fim dos veículos elétricos – Projeções, fatos e opiniões

Luiz Maurer*

Alguns dias atrás, a Califórnia determinou que, a partir de 2035, será proibida a venda de veículos de combustão interna (ICE). Ironicamente, dias depois, o operador independente de sistema solicitou aos usuários de veículos elétricos (EVs) limitações para carregá-los, em função da crise energética que o estado vem enfrentando. 

O assunto viralizou nas redes sociais. Não faltaram os profetas do apocalipse de plantão. Alguns criticando a presumivelmente política de descarbonização da geração elétrica que deve ser completada até 2030. Outros comentando que a decisão de proibir a venda de novos veículos a partir de 2035 é precipitada. E um terceiro grupo não hesitou de declarar uma sentença de morte aos veículos elétricos, os quais nem sequer hoje podem ser carregados – que dirá em 2035.

O objetivo deste artigo não é o de fazer projeções futuristas até 2035, mas sim o de fornecer ao leitor um conjunto de informações factuais, sem tendenciosidade. Não trago fatos novos, mas penso que a forma como a informação está organizada permite que os leitores cheguem a suas próprias conclusões, contrastando-as com as diversas opiniões, algumas antagônicas, postadas nas redes sociais.

Por facilidade expositiva, o artigo está organizado sob a forma de perguntas e respostas.

  1. O setor elétrico da Califórnia está em crise? Está havendo um racionamento?

A Califórnia está sim enfrentando uma crise de potência. A criticidade se manifesta nos verões, devido à elevada carga de ar-condicionado. Nesta semana em particular, está prevista uma onda de calor sem precedentes, com records de temperatura. As últimas projeções, quando do fechamento deste artigo, indicavam um risco de déficit entre 0,5 e 3 GW.  A Califórnia é vulnerável a crises, sendo que a mais conhecida foi a de 2001. Os últimos black-outs a nível sistêmico ocorreram em 2001 e 2020.

Quanto a estar ou não em um racionamento, a resposta depende do significado da expressão. Há um enorme desequilíbrio entre oferta e demanda e um apelo aos consumidores para conservarem energia. São medidas voluntárias. Até que ocorram black-outs, a situação atual não caracterizaria um racionamento em si. Este é o critério que o Brasil adotou para caracterizar a crise de 2001 como racionamento (cotas mandatórias), mas não a crise de 2021. É uma linha muito tênue, de duvidosa aplicação prática, mas é assim que o termo é compreendido e aceito no Brasil.

  1. Devido à situação crítica do sistema elétrico na Califórnia, os usuários de veículos elétricos estão proibidos de carregar seus veículos?

Não, pelo menos por enquanto. Eles podem carregar quanto e quando melhor lhes aprouver. Os consumidores estão sendo “urged” (persuadidos) a não carregar seus veículos no período entre as 16h e 21h, para evitar que haja uma coincidência com o período de alto consumo de ar-condicionado, responsável pelo aumento significativo da carga durante ondas de calor. Trata-se de um apelo voluntário diante de uma situação excepcional.

  1. Por que pedir justamente agora aos usuários de veículos elétricos que adaptem seus padrões de consumo e deem sua cota de sacrifício?

A solicitação atual não se limita aos veículos elétricos, mas a qualquer carga do sistema, inclusive ar-condicionado (ajustando a temperatura para 25,6 graus centígrados), bombas de piscina, aquecedores elétricos, secadores de roupa, iluminação e tantas outras. Todas as cargas são solicitadas a colaborar para prevenir o risco de um corte seletivo de carga ou mesmo um colapso. Os consumidores são informados sobre a criticidade do sistema e risco de um racionamento, por meio de um mecanismo chamado Flex Alert. Esse mecanismo foi usado na crise de 2001. Os veículos elétricos apresentam características especiais para contribuir sem que isso venha em prejuízo de sua funcionalidade.

  1. Por que os carros elétricos podem contribuir mais que as demais cargas nos programas de Resposta da Demanda? Quais suas idiossincrasias?

(i) Elevado impacto no uso da capacidade instalada. Por simplicidade, vamos supor que todos os EVs na California (cerca de 830.000) resolvessem carregar suas baterias simultaneamente. Assumindo uma potência de 7 kW AC por carregador (Nível 2), típicos de uma carga rápida a nível residencial ou comercial, a capacidade de potência instalada necessária seria de 5,8 GW, ou cerca de 7% da capacidade instalada no estado, embora consumissem apenas 1,2 % da energia. Trata-se de um percentual muito elevado. Se hipoteticamente todos os veículos na Califórnia fossem hoje convertidos em elétricos e carregassem ao mesmo tempo iriam demandar 120% da capacidade instalada no estado. Trata-se de uma carga muito preocupante. 

(ii) Relativamente falando, menor conteúdo energético. A despeito da potência de carga, o tempo necessário é um fator atenuante. Por simplicidade, vamos supor que o uso diário de um veículo seja da ordem de 40 milhas (ou 23.500 km por ano). A eficiência média de um veículo elétrico é de 4 milhas por kWh, ou seja, seriam necessários 10 kWh para o percurso de ida e volta. Um carregador Nível 2 conseguiria realizar esta carga em apenas uma hora e meia. Há, portanto, um potencial enorme para deslocar esta carga fora das cinco horas críticas solicitadas pelo operador. Se o carregamento puder ser diluído nas 10 horas entre as 21h e 7h da manhã do dia seguinte, a potência de pico anteriormente calculada cairia de 7% para 2,4%.  Se além disso supusermos que metade da carga pudesse ser efetuada no ponto de destino, esse percentual cairia para 1% da potência instalada1.  

Em resumo, a potência para carregar os veículos é muito elevada, mas há um enorme espaço para gerenciamento dessa carga. Isto sugere que aumento da frota elétrica e aperfeiçoamento dos mecanismos de resposta de demanda devem andar de mãos juntas. Na ausência de mecanismos de gerenciamento da demanda, a introdução em massa de EVs será muito problemática.

  1. Como gerenciar a demanda e o papel dos veículos elétricos em racionalizá-la?

Os EVs são um caso quase livro-texto de como a demanda pode ser bem gerenciada, sem desconforto ao consumidor. Por que não contar então com os EVs para alívio de uma crise? No caso particular da Califórnia, há ainda outros fatores a considerar que reforçam os benefícios de um bom gerenciamento.  

A maioria dos leitores está familiarizada com o fato da curva de carga líquida da Califórnia se assemelhar a um pato de perfil – o assim chamado efeito “duck-curve”. Basicamente, a barriga do pato ocorre quando a produção solar está “bombando” à tarde e a carga líquida cai significativamente. Muitas vezes, devido à inflexibilidade de algumas usinas térmicas e nucleares, a energia solar não pode ser aproveitada e tem que ser desperdiçada (“curtailed”).  O pescoço, com altíssima inclinação (tomada de carga), ocorre quando o sol se põe, os usuários voltam a suas residências, colocam sua refrigeração ao máximo, enquanto os escritórios e fábricas estão ainda operando. Atender a esse crescimento repentino da carga líquida é complexo e exige uma capacidade instalada de térmicas a gás natural e/ou baterias. Não é concebível que os veículos elétricos decidam carregar todos em horários de ponta, pior ainda quando ao longo do pescoço do pato. O usuário que quiser, até pode fazê-lo, mas tem que pagar por esta conta com a granularidade necessária. 

Nada mais econômico para a sociedade que deslocar o consumo dos veículos elétricos para fora do pico. E quem sabe no futuro pagar os proprietários de veículos que se dispuserem a descarregar suas baterias durante o pescoço do pato (quando o valor do atributo capacidade e serviços ancilares é enorme). São todas soluções eficientes, no campo da Resposta da Demanda. A Califórnia está introduzindo o conceito de medidores dedicados (sub-metering) para veículos elétricos, de tal sorte que esta carga tenha os incentivos e sobretaxas em função do horário utilizado e do custo de energia respectivo.  É uma medida justificável sob o ponto de vista econômico, pois não tolhe o consumidor do direito de ir e vir e ainda lhe dá a opção para carregar em horários mais baratos.

  1. Forçar os veículos elétricos a se conformar a determinadas regras não e algo ditatorial? Não é uma violação das liberdades individuais?

A resposta é negativa para ambas as perguntas. 

Trabalhar junto aos consumidores para que estes sejam participantes ativos no equilíbrio entre demanda e oferta é algo desejável. Trata-se de um guarda-chuva de ações no campo da Resposta da Demanda. Hoje nos Estados Unidos, cerca de 6% da demanda de pico – mesmo em situações normais – está equipada para “responder” quando instruída pela concessionária ou operador seja quando o preço aumentar. Espera-se que esse valor cresça a 20% em 2030. 

Obviamente que, em situações de crise como a vivenciada pela Califórnia nesta semana, mecanismos adicionais são bem-vindos, como a Flex Alert, o qual solicita a participação mais ágil e granular dos consumidores em função da criticidade do sistema. Não se trata um mecanismo para uso frequente, porque conduz à fadiga, mas é muito eficiente no cenário vivenciado hoje pela Califórnia. A experiência indica que 1200 MW são reduzidos durante esses eventos (a título de comparação, durante o programa de RVD no Brasil em 2021, cerca de 450-720 MW foram disponibilizados para redução).

Resposta da Demanda é um mecanismo inteligente, eficiente, já consolidado em muitos países, sendo que os Estados Unidos como um todo (e não apenas a Califórnia) fazem uso rotineiro desse procedimento. Os incentivos à RD podem ser em termos de preços (tarifas horárias) ou controle de cargas. Não se trata de uma medida ditatorial, pois os consumidores têm sempre a opção de carregar seus veículos no horário de pico ou carregar quando em viagem em carregadores rápidos (50kW DC), mas obviamente terão que pagar o custo marginal da energia daquele instante. Esse é um princípio de mercado.

  1. Estes eventos da Califórnia, inconsistentes com suas ambições, são um presságio do fim dos carros elétricos?

Não necessariamente. São necessários estudos muito mais aprofundados, multidimensionais, para que se possa tecer considerações sobre o futuro dos veículos elétricos. 

Há uma série de razões pelas quais alguém pode expressar um ceticismo quanto ao desenvolvimento do mercado de veículos elétricos como um todo. Entretanto, extrair conclusões definitivas com base no que a Califórnia enfrenta hoje, é temerário e reflete um desconhecimento da variedade dos fatores envolvidos. Vejamos alguns desses fatores:

EVs são veículos silenciosos, em geral com alto desempenho e baixo custo de manutenção, o que os torna economicamente vantajosos ao longo de sua vida útil. São extremamente eficientes, incluindo o motor elétrico em si, a eletrônica embarcada, a eficiência “round-trip” (carga e descarga) e o poder regenerativo dos freios.

Em contrapartida, são veículos mais caros que seus congêneres a gasolina. Algumas alusões ao fato de plenamente descarbonizarem a economia (por exemplo a expressão Zero Emission Vehicles, usada inclusive para híbridos plug-in), são um pouco enganosas e contem certa dose de “greenwashing”. As emissões totais vão depender da matriz energética da região em que o carro opera. 

Ademais, o usuário convive com o “range anxiety” (quantas estações de carga em funcionamento estarão entre o ponto A e o ponto B?). Pensando em um futuro não tão distante, o suprimento de minerais tais como lítio e cobalto podem ser pontos de estrangulamento, bem como a qualidade das baterias dos provedores de segundo nível. Talvez existam novas tecnologias em substituição ao cavalo de batalha de Li-Ion, mas não estão ainda prontas para uso. 

São todas perguntas legítimas as quais não me atreveria a respondê-las, pois dependem de uma análise complexa, multidimensional, e com inúmeras incertezas. A crise atual da Califórnia é um pequeno componente de uma questão infinitamente maior.

  1. É correto que a Califórnia tenha estabelecido uma data de 2035 para proibir a venda de EVs? Não é cedo demais? 

Não tenho condições de responder a esta pergunta, diante de tantas incertezas envolvidas. Note-se que proibir a venda a partir de 2035 significa na prática não ter mais veículos de ICE rodando até 2050, ou seja, daqui a 28 anos. Quantas empresas fazem seu planejamento estratégico com tanta antecedência? A EPE (Empresa de Pesquisa Energética), por exemplo, elabora planos de expansão decenais, revisados anualmente. É muito arriscado fazer previsões tão distantes. Se nós pudéssemos retroagir 20 anos, seria quase impossível visualizar o setor elétrico no Brasil como o é hoje. Não teríamos a menor idéia do ritmo de adoção de usinas eólicas e solares. 

Mundo afora, não poderíamos conceber o crescimento de baterias estacionárias no setor elétrico. Analogamente, se nos colocássemos em meados da década de ’90, quando os primeiros carros híbridos foram lançados (Toyota Prius), seria irreconhecível ver como está hoje esta indústria. Novas tecnologias estão a caminho, que vão permitir uma duração bem maior que as baterias de Li-Ion tradicionais (4-6 horas) a um custo menor. Mas a coisa não para aqui: V2G (Vehicle to Grid) já está na fila, por meio do qual um EV pode funcionar tanto como gerador quanto como carga, utilizando sua enorme capacidade de armazenamento embarcado e reduzindo seu impacto na rede. Seria uma revolução. Por exemplo, se na Califórnia 100 mil veículos estivessem operando na modalidade V2G, agregariam uma potência ao sistema equivalente a uma máquina de Itaipu. 

As mensagens acima têm um objetivo, qual seja o de provar quão limitada é nossa capacidade de prever mudanças tecnológicas e seu uso no setor de energia. Condenar os veículos elétricos por uma meta traçada até 2035, com base na situação particular enfrentada hoje pela Califórnia parece um típico “jump to conclusions”. 

  1.  Por que não deixar o setor privado determinar a velocidade de adoção?

A Califórnia de há muito tem exercido um protagonismo nos EUA nos aspectos de meio ambiente e agora climáticos. Não é surpresa que esse estado tenha assumido compromissos significativos para descarbonizar sua economia, em prazos que hoje nos parecem apertados.

Quanto a deixar o governo e não o setor privado definir quão rápido deva ocorrer esta transição, trata-se de uma pergunta legítima. Assim o são todas as políticas públicas, bem como aquelas relacionadas às mudanças climáticas. 

O mais racional, alegam os defensores do livre mercado, seria deixar que o setor privado tomasse decisões quanto a que veículo comprar e quando comprar. Entretanto, quando se está diante de uma situação com fortes externalidades (a questão climática, por exemplo), uma orientação do governo tem um papel importante em dar um direcionamento para uma indústria nascente. Este direcionamento orienta pesquisas, prioriza o desenvolvimento de certas tecnologias e permite aos diversos setores envolvidos – tais como o setor elétrico – tempo para definir sua visão de futuro.  É comprovado que esforços do governo motivam a indústria a se superar. 

A discussão de ambição e velocidade de políticas públicas em áreas relacionadas às mudanças climáticas é extremamente complicada. As discussões sobre metas de atingimento de 100% em renováveis, veículos elétricos, hidrogênio e outros têm como pano de fundo, a percepção de cada um de nós quanto à urgência na tomada de decisões que enderecem os desafios climáticos. Existem opiniões diversas, e o mesmo vai ocorrer sobre a implementação de veículos elétricos na Califórnia e as razões da crise atual. Isso é algo válido e construtivo. 

Mas vale o refrão de que cada um tem direito às suas próprias opiniões, mas não aos seus próprios fatos. Não é isso que tem ocorrido com a enxurrada de artigos associando veículos elétricos com a crise na Califórnia. Os leitores devem analisar os apaixonantes temas resumidos neste artigo com muito senso crítico.

1 Esta é um análise extremamente simplificada, apenas para ilustrar os conceitos. Não considera, por exemplo, que existem carregadores públicos super-rápidos (Nível 3, 50 -150 kW, DC), bem como carregadores lentos, que já vem com o veículo (Nível 1, 120 V, AC).
*Luiz Maurer é consultor internacional na área de energia e estratégia. Trabalhou no setor financeiro (Banco Mundial, IFC), como consultor e como executivo em empresas de energia no Brasil e exterior. É um dos fundadores da Abraceel. Foi gerente do projeto de reestruturação do setor elétrico brasileiro, ao final dos anos 90.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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