Ana Tereza Marques Parente*, Luciana de Andrade Costa** e Morganna Capodeferro***
No segundo aniversário da Lei nº 14.026 de 15 de julho de 20201, que estabelece o novo Marco Legal do Saneamento Básico (“Novo Marco”), ainda é difícil dizer se a universalização acontecerá no prazo estabelecido, tendo em vista os diversos desafios de sua implementação nos 5.570 municípios brasileiros. Apesar disso, já é possível notar sinais positivos do mercado, com a expansão de investimentos, os quais favorecem o crescimento econômico e a melhoria das condições de vida.
Este artigo se debruça sobre a uniformização regulatória pretendida por meio da criação das NRs (normas de referência) pela ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) e os incentivos econômicos que o Novo Marco estabeleceu para estimular a adoção das NRs pelas agências reguladoras infranacionais. A regulação centralizada, juntamente com as metas de universalização de acesso, regionalização, ampliação da concorrência/incentivo à abertura do mercado e privatização compõem os cinco pilares do Novo Marco.
Segundo o SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento)2, em 2020, 84% da população brasileira contava com fornecimento de água potável, 55% com coleta de esgoto e 50% do esgoto gerado recebia tratamento. Para superar esse déficit, o Plansab (Plano Nacional de Saneamento Básico)3, elaborado pelo Governo Federal, estimou que seriam necessários investimentos da ordem de R$ 28,9 bilhões anuais, a preços de 2020.
Os investimentos realizados nos últimos anos que antecederam o Novo Marco corresponderam, em média, a R$ 13,6 bilhões anuais de 2007 a 2020. Além de abaixo do necessário, os investimentos se concentraram nas regiões Sudeste e Sul, enquanto os piores índices de cobertura dos serviços se encontram nas regiões Norte e Nordeste. Estas últimas também apresentam o maior percentual de municípios atendidos com abastecimento de água em situação irregular (FGV CERI, 2020)4.
Os investimentos em saneamento desde a aprovação do Novo Marco triplicaram graças à abertura do mercado, com o ingresso da iniciativa privada através dos bens sucedidos leilões de novas concessões regionalizadas. Somente em 2021, foram investidos R$ 42,8 bilhões, valor acima da necessidade anual de investimentos indicada no Plansab, sendo R$ 37,7 bilhões vindos da iniciativa privada. Certamente, uma vez atingida a universalização do saneamento, seu grande legado serão os ganhos ambientais, sociais e econômicos, através da redução dos custos com a assistência à saúde, do aumento da produtividade do trabalho, da valorização imobiliária e do crescimento do turismo5.
Apesar do crescimento dos investimentos, um dos principais empecilhos continua sendo a tão falada (e necessária) modernização regulatória, que prescinde de uma maior estabilidade, a fim de contribuir para a segurança jurídica dos contratos. Isso porque o número elevado de agências infranacionais6, aliado à complexidade dos modelos de regulação e de contratualização da prestação dos serviços, compromete a efetivação dos objetivos das políticas públicas do saneamento.
Para fazer frente ao desafio de redesenho institucional, optou-se pela adoção de uma estratégia regulatória já conhecida no país. Dado que a maioria dos projetos de saneamento é financiada pelo Governo Federal e os principais tomadores são os municípios7, o Novo Marco adicionou requisitos de: regularidade da operação; adesão à prestação regionalizada; e de observância das normas de referência da ANA para acesso a recursos federais (Art 50 da Lei 11.445/2007, disciplinado pelos decretos regulamentares 10.588/2020 e 11.030/2022). O Novo Marco pretendeu gerar incentivos pelo acesso (e sua limitação) aos recursos federais, que ainda hoje são elemento central de viabilização dos projetos de saneamento. Tais incentivos resultam da criação do mecanismo de referenciação de normas em nível federal, de implementação não obrigatória pelos reguladores subnacionais, e da intensificação do uso do spending power.
Apesar dos esforços legais para a criação de incentivos econômicos para a observância das NRs da ANA, efeitos indesejáveis podem emergir desse processo. Isso porque quem deve analisar e aplicar as NRs são as agências reguladoras infranacionais, enquanto a comprovação do atendimento das condicionantes definidas no Art. 50 da Lei 11.445/2007 – entre elas, a observância das NRs – recai sobre o tomador do empréstimo. Em tese, as agências reguladoras subnacionais deveriam ser autônomas e independentes, nos moldes preconizados pela Lei 13.848/2019. Partindo da premissa da independência, qual seria o poder dos concessionários ou dos titulares para exigir a observância das NRs por parte das agências reguladoras?
Ante a pressão sofrida pelo tomador do empréstimo, majoritariamente o titular do serviço, ou seja, os municípios, percebe-se um possível incentivo para o reforço da supervisão destes sobre as agências reguladoras. Esse tipo de relação estabelecida entre regulado e regulador pode acabar resultando em captura regulatória. Nota-se, portanto, uma possível violação de importante princípio de governança regulatória que é a independência das agências reguladoras.
Vincular a observância das NRs ao acesso a recursos públicos federais ou para a contratação de financiamentos com recursos da União a serem aplicados na atividade pode, na prática, incentivar a captura das agências infranacionais. A rigor, os prestadores não têm poder algum para exigir a adoção das normas de referência imediata por parte de seus reguladores. Em regra, o titular pode rescindir o contrato de delegação com a agência reguladora em caso de não observância das NRs, nos termos do Art. 23 § 1º-B da Lei 14.026/2020. Esse processo, no entanto, não é desejável por incorrer em custos regulatórios.
Soma-se ao problema acima exposto o atraso na edição das NRs por parte da ANA. Tudo isso tem desfavorecido o debate sobre a dificuldade prática de enforcement da condição prevista no Novo Marco para a aplicação dos recursos federais. O que poderia ser o comportamento mais óbvio por parte do titular para induzir a agência reguladora a observar as normas de referência – não pagar a taxa de regulação – é contraproducente, visto que sem recursos as agências reguladoras perdem capacidade de se equipar para cumprir as disposições normativas. O controle direto por órgãos externos também não parece factível, em razão do tempo necessário para o desenrolar de uma ação civil pública ou procedimento fiscalizatório.
Talvez a criação de compromissos contratuais na modelagem dos novos leilões, em processos de regionalização ou não, que contemplem não apenas a delegação da regulação às agências reguladoras, mas também a vinculação destas à adoção das NRs (ou justificação da não adoção, caso a caso), sob pena de autoaplicação por parte dos entes regulados, seja uma saída. Esta seria uma alternativa menos morosa frente à rescisão contratual, prevista no Art. 23 § 1º-B da Lei 14.026/2020, que possibilitaria a aplicação automática das disposições normativas da ANA pelo próprio titular diante da inobservância por parte do seu regulador.
De qualquer forma, o fator reputacional parece ser ainda um bom incentivo para adoção das NRs.