Mauro César Santiago Chaves* e Ian Grosner**
No campo das políticas públicas, certos temas, apesar de serem objeto de discussão por longos anos, nem sempre têm espaço na agenda política para serem endereçados com a agilidade que se faz necessária. Felizmente, como a história tem demonstrado, muitas vezes eventos imprevisíveis acabam por viabilizar o ambiente favorável à superação de antigos problemas. No setor aéreo nacional, a edição da Medida Provisória 925, de 18 de março de 2020, convertida na Lei 14.034, publicada em 6 de agosto de 2020, corresponde a um bom exemplo de como problemas antigos às vezes necessitam de eventos extremos para serem solucionados.
Os nefastos efeitos ocasionados pela pandemia de Covid-19, que afetaram profundamente o setor de transporte aéreo em todo o mundo, fez com que o governo federal editasse a Medida Provisória 925 com a finalidade de adotar medidas emergenciais para a aviação civil brasileira. O texto encaminhado ao Congresso Nacional basicamente estabelecia três medidas emergenciais: a) postergava o prazo de pagamento das outorgas das concessionárias aeroportuárias até o final de 2020; b) estabelecia um prazo de 12 meses de reembolso dos valores relativos às passagens aéreas, nos contratos firmados até 31 de dezembro de 2020, sem prejuízo do atendimento das despesas materiais aos passageiros; e c) isentava os consumidores das penalidades contratuais em caso de aceitação de crédito para utilização no prazo de 12 meses contados da data do voo cancelado1. Todavia, ao longo da tramitação da medida provisória no Congresso Nacional, muitas foram as alterações e acréscimos realizados, sendo que o texto originalmente encaminhado com quatro artigos encerrou sua tramitação com 13 artigos e diversos incisos, sendo finalmente convertido na Lei 14.034, publicada em 6 de agosto de 2020.
Este texto não tem a pretensão nem o espaço necessário para abordar todos os dispositivos alterados pela mencionada lei. Os diversos temas merecem análises distintas, ainda que todas sejam de interesse da aviação civil brasileira. Buscar-se-á aqui abordar apenas as alterações realizadas no CBA (Código Brasileiro de Aeronáutica) – Lei 7.565/1986 – relacionadas à responsabilidade civil nos contratos de transporte aéreo, que incluíram o artigo 251-A e alteraram os artigos 256 e 264 do mencionado código.
O tema da responsabilidade civil no transporte aéreo tem sido objeto de debate nacional há anos, mas ganhou maior repercussão nos últimos tempos, em razão da crescente atuação de sites que se especializaram em comprar ações judiciais de passageiros que sofreram atrasos em voos. Esse novo cenário fez com que o setor aéreo brasileiro tivesse um aumento expressivo na judicialização de seus contratos de transporte. Segundo dados do Ibaer (Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico), o número de ações judiciais contra empresas aéreas no Brasil passou de 64 mil no ano de 2018 para 109 mil apenas no primeiro semestre de 2019, sem que tenha havido um aumento expressivo, em contrapartida, no número de voos e passageiros transportados2.
A título ilustrativo, segundo Dany Oliveira, diretor da Iata (Associação Internacional de Transporte Aéreo) para o Brasil, “… de cada 100 voos domésticos no Brasil, 8 são processados por algum passageiro. Nos Estados Unidos, onde está o maior mercado de aviação do mundo, dos mesmos 100 voos domésticos, apenas 0,01 é alvo de processo judicial. E de cada 100 voos internacionais entre o Brasil e os Estados Unidos, 79 serão processados”3. Ainda segundo o diretor, os processos contra as companhias aéreas somam aproximadamente R$ 1 bilhão. “Se fosse uma empresa do setor, com esse valor, estaria no ranking das maiores companhias do ramo.”4
Evidentemente, tais afirmações e estatísticas precisam ser melhor analisadas e suas correlações estudadas por instituições de pesquisa e entes governamentais, para que se possa entender, com maior rigor, as causas e consequências desse aumento expressivo da judicialização no setor e porque o tema tem um tratamento tão distinto no judiciário nacional em relação ao restante do mundo. Todavia, sem prejuízos desses futuros estudos e análises setoriais, o fato é que as alterações realizadas pela recentíssima Lei 14.034/2020 no CBA têm o mérito de corrigir lacunas que geravam insegurança jurídica no setor, especialmente nos casos de responsabilização civil por descumprimento contratual do transportador aéreo. Ao explicitar as condições para indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato, como também delimitar as hipóteses em que há exclusão de responsabilidade, além de estabelecer de forma mais clara as hipóteses de incidência de caso fortuito ou força maior na prestação do serviço, tais modificações reduzem as incertezas atualmente existentes nas relações contratuais de prestação do serviço de transporte aéreo, endereçando um tema relevante que impacta diretamente os custos operacionais das empresas e, consequentemente, o preço da passagem aérea, repercutindo assim para todos os usuários desse importante serviço público.
Nesse sentido, a alteração feita no artigo 4º da Lei 14.034/2020, ao incluir o artigo 251-A no CBA, especificou as hipóteses de responsabilidade da transportadora em casos de danos extrapatrimoniais. O dano extrapatrimonial é aquele que ofende a esfera moral ou existencial de uma pessoa física ou jurídica, consoante recente conceito trazido pelo artigo 223-B, da CLT, na reforma operada pela Lei 13.467/2017. A nova legislação inserta no CBA condiciona a indenização por dano extrapatrimonial, em decorrência de falha na execução do contrato de transporte, à demonstração inequívoca da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga.
Pelo que se observa, a modificação ora realizada na legislação aeronáutica buscou alinhar-se ao que restou decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.584.465-MG, de relatoria da ministra Nancy Andrighi. Naquela oportunidade, o tribunal concluiu que, na hipótese de atraso de voo, não há como se admitir a configuração do dano moral presumido (in re ipsa), devendo ser comprovada pelo passageiro a lesão extrapatrimonial sofrida. Segundo voto da relatora, entender em sentido contrário implicaria estender, de forma indiscriminada, a própria configuração do dano moral presumido, passando-se a exigir somente a mera comprovação da prática da conduta ilícita e dispensando a demonstração de prejuízos concretos ou a comprovação do efetivo abalo moral. Isso não deve ser aceito, pois, ao assim proceder, estar-se-ia percorrendo caminho oposto ao sentido da despatrimonialização do direito civil, transformando em caráter meramente patrimonial os danos extrapatrimoniais e fomentando uma “indústria do dano moral” (REsp 1.584.465/MG, rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 13/11/2018, DJe 21/11/2018).
Também foi alterado o artigo 256 para aclarar as hipóteses em que estarão configuradas as excludentes de responsabilidade decorrentes de força maior ou caso fortuito, em razão de atraso do transporte aéreo contratado. O inciso I trata da reprodução da alínea “a”, que foi revogada. O inciso II, por sua vez, exige que, em caso de atraso do transporte aéreo contratado, o transportador comprove motivo de caso fortuito ou de força maior além da impossibilidade de se adotar medidas para evitar o dano. Já o § 3° descreve as hipóteses de caso fortuito e força maior em seus incisos de I a IV, sendo este último quando há decretação de pandemia ou publicação de atos de governo que dela decorram, com vistas a impedir ou a restringir o transporte aéreo ou as atividades aeroportuárias. Dentre os eventos, destaca-se, desde que supervenientes, imprevisíveis e inevitáveis, “a decretação de pandemia ou publicação de atos de Governo que dela decorram, com vistas a impedir ou a restringir o transporte aéreo ou as atividades aeroportuárias“.
Segundo a doutrina, os eventos imprevisíveis e inevitáveis, a despeito de não previstos expressamente na legislação, podem ser considerados excludentes da responsabilidade no sistema do Código de Consumo, visto que constituem fatores obstativos gerais do nexo de causalidade, aplicáveis tanto à responsabilidade subjetiva quanto à objetiva:
“[…] O caso fortuito e a força maior enquadram-se, portanto, como causas de exclusão da responsabilidade civil do fornecedor, embora não previstas expressamente no Código de Defesa do Consumidor. O fundamental é que o acontecimento inevitável ocorra fora da esfera de vigilância do fornecedor, via de regra, após a colocação do produto no mercado, tendo força suficiente para romper a relação de causalidade”. (SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Defesa do Fornecedor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 312)
Por fim, o § 4° dispõe sobre as obrigações do transportador aéreo com o consumidor do serviço, mesmo nas hipóteses de caso fortuito e força maior.
Com relação ao artigo 264, inciso I, ele cuida da responsabilidade por danos à carga e isenta o transportador aéreo de responsabilidade quando o atraso na entrega desta for causado pela ocorrência de um dos eventos previstos no aludido § 3° do artigo 256, que descreve as hipóteses de caso fortuito e força maior. A norma na sua redação original isentava a responsabilidade do transportador apenas quando o atraso na entrega da carga fosse causado por determinação expressa de autoridade aeronáutica do voo ou por fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis de se prever, evitar ou impedir.
Observa-se, portanto, que as alterações realizadas no Código Brasileiro de Aeronáutica modificaram regras com o fim de corrigir lacunas que geravam insegurança jurídica no setor, especialmente aquelas voltadas à responsabilização civil por descumprimento contratual do transportador aéreo.
Como a teoria econômica e a experiência internacional têm demonstrado, a promoção de um mercado de transporte aéreo com menores preços e maior oferta de voos, qualidade de serviços e diversidade de produtos depende diretamente do aumento da concorrência no setor. Para isso, faz-se necessária a melhoria do ambiente de negócios, de forma a reduzir custos e riscos existentes na prestação de serviços de transporte aéreo, incentivando a entrada de novas empresas e a expandindo a operação das atuais operadoras.
As evidências indicam que ampla judicialização existente no setor decorre, em parte, da jurisprudência que se formou a partir de decisões favoráveis à indenização de consumidores por atrasos ou cancelamentos de voos, independentemente de terem sido causados pela empresa aérea, a exemplo de condições meteorológicas adversas. Além disso, frequentemente presume-se dano moral sem a devida comprovação da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga. Tais interpretações muitas vezes contrariam o disposto na Convenção de Montreal, unificadora das regras relativas ao transporte aéreo internacional (Decreto 5.910, de 27 de setembro de 2006), e o disposto no artigo 178 da Constituição Federal5.
Assim, são bem-vindas as alterações realizadas no Código Brasileiro de Aeronáutica pela Lei 14.034, de 5 de agosto de 2020. Espera-se que elas tragam maior segurança jurídica às relações contratuais existentes no setor, reduzindo riscos, promovendo a segurança jurídica e favorecendo a entrada de novas empresas no mercado nacional.