Frederico Turolla* e Bruno Azambuja**
Este artigo avalia, sob um ponto de vista econômico, a minuta apresentada pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) para a sua nova resolução sobre o novo marco regulatório do setor de TRIP (Transporte Rodoviário Coletivo Interestadual Regular de Passageiros), defendida na Nota Técnica 3.990/2023. O artigo sumaria o estudo apresentado pela Pezco Economics como contribuição à reabertura da Audiência Pública 6/2022 da ANTT, comissionado pela Amobitec (Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia).
Nossa avaliação geral está sumariada de forma esquemática na figura a seguir. O diagnóstico da ANTT na sua Nota Técnica 3.990/2023 é de que há contestabilidade nos mercados de TRIP. Porém, após esse diagnóstico inicial, a nota técnica passa a fundamentar uma verdadeira estratégia de redução da contestabilidade desses mercados, de forma a evitar a ampliação da competição. Se a intenção da agência não é essa, os efeitos práticos de sua proposta serão esses.
A minuta de resolução vai exatamente no sentido de reduzir a contestabilidade. Tem ainda outros efeitos. Em primeiro lugar, cuida de aumentar sensivelmente a complexidade regulatória com a criação de pesados custos transacionais, que a literatura aponta como fontes de importantes barreiras à entrada nessa indústria. Para evidenciar este fato, buscamos reconstruir o fluxo regulatório preconizado pela ANTT em sua minuta. A observação da figura a seguir é eloquente no sentido de que a possibilidade de boa compreensão do novo regime regulatório pela sociedade não estará ao alcance até mesmo de especialistas bem treinados.
Em segundo lugar, a complexa minuta busca ressuscitar parâmetros obsoletos do regime precedente, como os que constam da antiga Resolução 1.508/2006. Tais parâmetros foram reconhecidamente criados no ambiente anterior à própria liberdade tarifária do setor que veio em 2019, conforme se pode observar no cabeçalho da planilha apresentada no item 3.154 da Nota Técnica 3.990/2023:
A minuta traz, assim, parâmetros de meados dos anos 2000, como se a tecnologia e os mercados estivessem congelados nessas quase duas décadas. Mas o assunto é ainda mais grave, pois não se trata apenas de atualizar os parâmetros obsoletos. De maneira alguma essa parametrização inicial, que retrata o status quo da indústria, poderia ser tomada como a referência da ANTT ao longo do tempo, sob pena de se engessar a inovação em uma indústria que tem se revelado cada vez mais dinâmica. Os parâmetros definidos com base no histórico recente se mostram inviáveis diante de modelos de negócios internacionais, amplamente mediados por tecnologia, o que pode ensejar a implantação de uma regulação discricionária por parte da agência em um mercado cuja lógica é de autorização, competição.
Entre vários exemplos da disfunção mencionada, pode-se citar a tentativa de regulação de inviabilidade por intermédio de definição de um piso de load factor, ou IAP (Índice de Aproveitamento Padrão). Na experiência internacional, esse indicador é determinado endogenamente de forma conjunta a um sistema de equações pertinentes aos modelos de negócios inovadores presentes nessa indústria. Engessar o IAP significa suprimir entradas viáveis, preservando o status quo com as ineficiências presentes e modelos de negócios correntes, na contramão da lei e das boas práticas regulatórias. Até mesmo a exploração de receitas acessórias fica comprometida nesse ambiente regulatório gessado, que tende a funcionar como um círculo vicioso como o da figura.
Finalmente, a minuta propõe a criação de novas inconsistências regulatórias, incluindo uma definição de parâmetros de “viabilidade” econômica que não focam no operador. Acaba, assim, se imiscuindo nos mercados específicos em franco constrangimento à liberdade de estratégias de malhas e de modelos de mercado que os operadores poderiam perseguir como inovações que beneficiariam os usuários e a eficiência geral. Não faz sentido regular no nível da linha/seção/mercado uma indústria que tem sua lógica voltada a malhas de transporte.
Há diversas outras inconsistências, pontuais e estruturais, apontadas no estudo. Entre essas, o que a minuta propõe carece de qualquer sentido econômico, ao pretender limitar a entrada em mercados com maiores economias de densidade (maior potencial de viabilidade econômica) enquanto pretende permitir a concorrência em mercados menos viáveis. Soa invertida a proposição da agência quando busca definir que: “os mercados classificados como subsidiários não serão objeto de avaliação da ocorrência de inviabilidade econômica” (minuta de resolução, art. 50, parágrafo único). Se existir a possibilidade de inviabilidade, essa condição deverá se manifestar justamente nesse grupo de mercados ditos subsidiários, e não nos mercados classificados como principais.
Concluímos pela inviabilidade da implantação da proposta de resolução, tendo em vista que esta deveria ser concebida para funcionar, no regime de autorização, sob o pressuposto de competição plena nos mercados de TRIP, substituindo o conceito anterior de concorrência apenas em caráter ex ante. Note-se que a simples reabertura para rediscussão da proposta, após amplo debate público no ano passado, já tem impactos anticompetitivos importantes, por postergar ainda mais a implantação do regime competitivo previsto há 9 anos pela Lei 12.996/2014, sem avançar de forma decisiva nas autorizações de mercado que poderiam trazer inúmeros benefícios aos usuários e aos municípios brasileiros. É preciso que a ANTT se movimente urgentemente no sentido de dar fluidez ao fluxo de solicitações de mercados. O longo processo pelo qual, desde a lei das autorizações de 2014, se vem elucubrando propostas regulatórias cada vez mais complexas – a mais recente delas claramente inviável – impõe prejuízos de grande monta aos usuários e à própria promoção da competitividade da economia brasileira.