Dimmi Amora*
O lançamento do Programa Pró-Brasil pelo governo federal causou ruído em Brasília nesta semana.
Chamou atenção a disputa entre desenvolvimentistas e ultraliberais, o que deveria ser surpresa zero para quem tem um pouco de memória. Está entranhada no governo Bolsonaro desde a campanha. Quem não lembra que o então candidato a presidente disse que a Eletrobras era a “galinha dos ovos de ouro”, negando que fosse privatizá-la?
O que deu asas ao grupo desenvolvimentista, até então escanteado das decisões econômicas, foi a pífia performance dos ultraliberais, que entregaram crescimento baixo e, em 16 meses de governo, não conseguiram vender uma estatal sequer, nem as que estão sob o comando da Economia.
E, claro, o mundo novo que surgiu da pandemia tem colocado as teses ultraliberais em dificuldade. Subir e descer de grupos no governo é política, acontece em todo lugar.
Faz menos sentido ainda o fato de as pessoas perderem tempo discutindo se o programa vai ser um novo PAC, a volta da farra fiscal, desperdício de dinheiro, que o Brasil não tem recursos para obras e que tais.
Primeiramente, porque não há programa. O que foi apresentado é só uma ideia que começa a ser desenhada hoje, com a primeira reunião do grupo. Em quatro meses é que as ações estarão prontas para apresentação e podem se constituir em um programa de fato.
Segundo, porque se quiser existir, vai ter que vencer a resistência interna nessa briga de poder cada vez maior que virou o governo, batalha bem complicada para os desenvolvimentistas, já que os liberais estão com a chave do cofre.
Mas o terceiro, e mais importante, é porque o que está sendo anunciado é muito pouco perto das necessidades do país em infraestrutura de transportes e saneamento, para ficar apenas nos dois casos mais graves de falta de infraestrutura.
Números do Instituto Infra2038 apontam que o país gastava, até o ano passado, algo próximo de 0,9% do PIB nessas duas áreas. Para se colocar numa condição minimamente decente em ranking internacional, o instituto projeta investimentos de mais 0,9% do PIB, anualmente, por duas décadas. Ou seja, 1,8% do PIB ao ano. O relatório está neste link.
Usando os dados que o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, apresentou na entrevista coletiva sobre o programa – R$ 250 bilhões em investimentos de concessões privadas e outros R$ 30 bilhões em obras públicas em três anos – temos não mais que R$ 50 bilhões a mais em obras, por ano (considerando que 80% dos R$ 250 bilhões seriam usados nos cinco primeiros anos de concessões, isso equivaleria a R$ 40 bi ao ano; executar os R$ 250 bilhões é uma previsão extremamente otimista).
Os R$ 50 bilhões corresponderiam a 0,7% do PIB de 2019. Ou seja, seria insuficiente para manter o pouco que já se faz. Outro dado: se os R$ 10 bilhões em obras públicas ao ano se concretizarem e forem todos para o DNIT, será um valor semelhante à média de gastos do órgão, nos anos de 2010 a 2014, corrigida pela inflação, mesmo se somado ao atual orçamento de investimentos do departamento que cuida das estradas federais.
Há alguma dúvida de que são necessários 50 km de metrôs em São Paulo, 30 km no Rio de Janeiro, passar de 8 mil para 20 mil as rodovias federais duplicadas, dragar portos para navios de grande porte, sair dos 8 mil km de malha ferroviária efetiva, tirar metade da população do país do século XIX em esgotamento sanitário? O bom senso diz que não.
O bom senso também indica que nem o setor privado nem o setor público darão conta sozinhos de tamanha necessidade. Então, qual o motivo para se estar brigando por querer fazer mais? Se houver dinheiro privado, ótimo; público, ótimo; dinheiro marciano pode vir também.
Deve-se torcer pela vinda do dinheiro privado porque, para alguns casos, ele é muito eficiente. Mas o fato é que o mundo mudou e agora ele poderá mostrar-se mais avesso a risco, sendo eficiente para menos projetos.
Será necessário um tempo e testes para entender a nova dinâmica que os fluxos de capitais de longo prazo terão. Isso pode demorar até o fim da epidemia e necessitar de ajustes em propostas de concessões, que têm um ritmo próprio, em geral, mais lento que o das vontades de governantes.
Além disso, nada muda o que já é: há tipos de riscos que o setor privado não compra e o Estado tem que fazer. Por isso, no mundo todo, se chama parceria público-privada, e não conflito público-privado. Se passar a outro o que tem que fazer, o Estado vai encontrar os espertalhões de aditivo para não realizar a entrega e dar dor de cabeça ao gestor seguinte do contrato.
Portanto, achar que o país simplesmente não pode mais usar recurso público para fazer obras ou incentivar uma parceria é rasteiro. Apresentar infraestrutura como se fosse gasto permanente que vai gerar como único resultado mais dívida pública é primarismo econômico.
O que se pode e se deve brigar é para que o governo não caia no conto do empreiteiro que vai gerar milhões de empregos abrindo buraco para fechar depois. É necessário apresentar projetos que tenham retorno socioeconômico claro, licitados e licenciados corretamente para não gerar os efeitos negativos conhecidos.
Aos Acadêmicos do Resultado Primário, cabem alguns questionamentos:
Onde está escrito que dinheiro público só pode pagar financiamento da dívida, aposentadoria e salário de servidor?
A sociedade não pode pagar mais impostos, mas pode pagar mais tarifa de pedágio?
Quem vai poder dizer, diante de um mundo ao avesso, que a dívida pública ideal é de 84,3%, 92,4% ou 96,7% do PIB? E a taxa de desemprego, qual seria?
É justo tirar dinheiro do sistema de infraestrutura, pago pela sociedade nas outorgas, para gastar com a máquina pública, quando se tem urgência por investimentos no setor?
Algum lugar do mundo prescindiu do orçamento público para o desenvolvimento da infraestrutura?
Vamos jogar no lixo anos de experiência estatal acumulada em planejar, projetar, contratar, licenciar e fiscalizar por causa de crimes e erros de planejamento cometidos?
As pessoas e, por consequência, a economia sofrem todos os dias com a deficiência secular em infraestrutura, tornando o Brasil ineficiente e caro. Ambas deviam ser lembradas quando se começasse a perder tempo com esse tipo de papo de gabinete.