José Manoel Ferreira Gonçalves*
O embate entre as políticas do atual governo, que foi cheio de equívocos em inúmeras áreas, e a gestão que se iniciará no plano federal em 2023 com o governo Lula, tem um ponto focal para o desenvolvimento das ferrovias no país, que em grande parte transportam mercadorias para os portos, como é o caso do Porto de Santos.
No que se refere às ferrovias, há muito a ser corrigido. Os chamados “avanços” nessa área, alardeados pelo governo Bolsonaro na figura do ex-ministro Tarcísio de Freitas, certamente contribuíram para a candidatura deste ao governo paulista. Na verdade, as medidas tomadas pelo governo nos últimos quatro anos estão longe de atenderem aos interesses públicos e não representam mudanças à persistente situação de penúria que nossas ferrovias enfrentam.
O que acontecerá no porto tem tudo a ver com o que está acontecendo no conjunto de investimentos que foram contratados e que não estão sendo realizados na velocidade e proporção definidas, inclusive com aprovação do TCU (Tribunal de Contas da União).
Para começar, urge revogar flexibilizações que tendem a atender a interesses isolados. Exemplo disso são as facilidades concedidas à empresa que venceu a antecipação da concessão da Malha Paulista. Obras importantes estão sendo postergadas e chegam a causar acidentes fatais, como aconteceu em dezembro do ano passado na cidade de Cubatão, onde uma criança de oito anos foi morta, esmagada por um trem.
O abominável instrumento de autorização para exploração de linhas férreas também deve ser motivo de suspensão. Entre os efeitos dessa benesse, que só interessa a duas ou três empresas, está a virtual paralisação de qualquer projeto para transporte de passageiros. Caso esse modelo continue a vigorar, nossas ferrovias estarão entregues, por décadas, a interesses meramente comerciais, dissociados de qualquer projeto de integração nacional.
Há ainda uma situação conflitante no mercado, no mínimo passível de discussão. Trata-se da debandada de ex-integrantes do governo federal, especialmente do Ministério da Infraestrutura, que, sem cumprir a quarentena prevista por lei, partiram para cargos de diretoria junto a grandes empresas do setor, que tiveram projetos contratados com a atual gestão.
Isso nos faz refletir sobre a relevância de uma política de desenvolvimento ferroviário consistente no Brasil, com força para atender, de forma soberana, aos dinâmicos setores ligados ao mercado global, tais como o agronegócio e a indústria que se desenvolvem no país, contribuindo para a promoção de uma política de transportes nacional com a dinamização de um setor. Frise-se: soberano, de máquinas e obras no setor ferroviário.
Para isso, é necessário enfrentar o nefasto modelo de autorizações que se estabeleceu desde o governo Temer e que constitui a ideia de um novo padrão de atuação governamental do setor ferroviário no governo Bolsonaro. Foi retirada, do Estado, a sua responsabilidade do planejamento para identificação das demandas e a construção de centros de concentração e de distribuição de cargas, conectando todos os modais de transportes de forma racional e otimizante.
Enquanto isso o Brasil ainda se mantém atrasado em de seus papéis de maior relevância, que são as políticas socioambientais para a infraestrutura. Considerando o setor de energia, o país emite mais de 470 milhões de toneladas de gases com efeitos estufa ao ano. No setor de transporte, destacamos que o modal rodoviário foi responsável por cerca de 93% do total das emissões de responsabilidade do setor de transporte de cargas brasileiro. Em resumo, um vagão transporta 100 toneladas contra 28 toneladas do caminhão. E um trem com 100 vagões retira mais de 350 caminhões das estradas.
Diante deste cenário, de enfraquecimento do setor ferroviário, é impossível não relembrar o modelo que vigorou até 2016, que valorizou as chamadas ferrovias open access, o mesmo adotado na Europa. Apesar de o conceito ter gerado, inclusive, frutíferos debates com as empresas que operam como concessionárias, foi abandonado.
Na época, o modelo abria caminho para que as ferrovias de acesso horizontal permitissem o surgimento de operadores independentes, que utilizariam trens sobre ferrovias concedidas a particulares ou ferrovias públicas. Tal ideia trazia a inovação de adotar a distinção entre as responsabilidades da empresa operadora independente do transporte sobre trilhos e a responsabilidade da manutenção da infraestrutura operacional.
As mudanças, que causaram paralisia do setor, fazem pensar ainda na ampliação de organismos de participação social no setor, por meio da criação de conselhos, hoje praticamente inativos, em virtude da total inércia do governo em instituir órgãos externos de fiscalização das concessões ferroviárias. Esses conselhos devem agregar, de forma democrática, usuários e representantes da sociedade civil, notadamente em regiões de grande adensamento populacional com seus naturais conflitos de localização e instalação dos diversos equipamentos, entre eles os existentes nas regiões retroportuárias. Como exemplo, podemos citar a ideia equivocada de se instalar armazenamento de materiais perigosos próximos de hospitais, escolas, residências, como na região do Outerinhos em Santos (SP).
Assim, a partir dessa perspectiva, o que se requer é a inclusão das seguintes propostas nos debates sobre a infraestrutura nacional de ferrovias: fim das autorizações com delimitação bem definida do papel desse mecanismo para o desenvolvimento do transporte sobre trilhos; retomada das discussões do modelo de concessão horizontal/open access, para determinadas demandas e regiões; ampliação da participação social no controle do setor; e, finalmente, a revogação das flexibilizações para o descumprimento das responsabilidades contratuais citadas acima.
São medidas complexas que merecem aprofundamento nas discussões e depois também nas execuções de implantação para que o transporte sobre trilhos, com cargas gerais e não apenas commodities, e, também, o transporte de passageiros estejam alinhadas com um governo popular, de sensibilidade social e democrático.