iNFRADebate: O BR do Mar e o que a cabotagem realmente precisa

Nelson L. Carlini* e Nilson Mello**

O PL (Projeto de Lei) 4.199 de 2020, também conhecido como BR do Mar, é dessas iniciativas cercadas de boas intenções que, contudo, não deve surtir o efeito esperado, uma vez que parte de diagnósticos equivocados. Encaminhado ao Congresso no início de agosto, o PL tem como objetivo estimular o crescimento do transporte de cabotagem, isto é, entre os portos nacionais, e, para tanto, considera que o principal entrave ao setor é a pequena disponibilidade de navios. Pressupõe, também, que o modal está estagnado, registrando baixo crescimento. Com trâmite de urgência pedido pelo Planalto, o PL passa a trancar a pauta na Câmara a partir da segunda-feira, 28 de setembro.

Ambas as premissas do projeto são falsas, mas, teoricamente, com base nelas, o PL estabelece medidas para que empresas estrangeiras possam ampliar a operação na cabotagem, como se essa participação hoje fosse reduzida, o que também não é verdadeiro, pois 95% do transporte de cabotagem já são feitos por empresas sob controle estrangeiro. Para completar, o PL abre a possibilidade de financiamento a estaleiros estrangeiros, via FMM (Fundo da Marinha Mercante), para a produção de embarcações no exterior, em detrimento da indústria naval nacional. Em vez de atrairmos mais financiamentos para o Brasil, estaremos disponibilizando recursos para garantir o emprego de operários chineses, coreanos e japoneses. 

Na grande maioria dos países do mundo, mesmo nas economias mais abertas, como os Estados Unidos, o transporte de cabotagem é reservado a empresas nacionais, com tripulações nacionais e, de preferência, operando navios produzidos no próprio país. E isso se deve a questões estratégicas atinentes à soberania, à segurança e à economia, que guardam estreita relação entre si. Por sua vez, a vinculação da indústria naval ao modal é feita como forma de estímulo à produção e à geração de empregos. São setores que, por razões óbvias, devem integrar uma mesma cadeia econômica, com crescimento recíproco, retroalimentado, a exemplo do que o agronegócio representa para a indústria de implementos agrícolas, e vice-versa.

A cabotagem é um dos modais que mais crescem no Brasil, e hoje representa 11% de nossa matriz de transportes. Na década passada, cresceu em média 10% ao ano, de acordo com dados da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) e da CNT (Confederação Nacional do Transporte).  De 2010 a 2018, o crescimento do modal foi de 28%, saltando de 127 milhões de toneladas transportadas para algo próximo aos 164 milhões de toneladas. De 2017 para 2018, o crescimento no volume transportado foi de 16,7%.  

Em 2019, em particular no primeiro semestre daquele ano, comparado ao mesmo período de 2018, quando houve a greve dos caminhoneiros, o crescimento do modal foi ainda mais robusto, de 24,7%. Os “donos” da carga perceberam que não poderiam ficar reféns das contingências (políticas e estruturais) das rodovias – ou do transporte rodoviário. O transporte marítimo pelos mais de 8 mil km de costa brasileira é mais seguro e muito menos poluente do que o transporte rodoviário. Por essa razão, é razoável que o governo pretenda dar maior estímulo ao seu desenvolvimento – embora, como demonstram os números acima, esse crescimento esteja sendo sustentável ao longo do tempo. 

Contudo, não será ofertando um número maior de navios que se dará novo impulso ao modal. Muito menos com navios fabricados no exterior com dinheiro brasileiro (via FMM), à custa do desmonte de nossa indústria naval. Isso vai contra os interesses nacionais. Os verdadeiros entraves do setor não estão relacionados à falta de embarcações. Vale dizer que a taxa de ocupação média da frota que opera na cabotagem está em torno de 75% (25% de ociosidade). O gargalo, portanto, não está aí. 

Os grandes óbices à cabotagem são o excesso de burocracia nos portos – onde há uma dezena de órgãos intervenientes, sem a devida uniformidade de atuação –, as elevadas taxas portuárias, a obrigatoriedade dos serviços de praticagem (pilotos específicos para cada porto), os elevados encargos trabalhistas das tripulações brasileiras e o alto preço do bunker (combustível naval), sobre o qual incide o ICMS, ao contrário do diesel rodoviário, subsidiado. Nenhum desses entraves é enfrentado pelo BR do Mar, que, grosseiramente, aposta numa maior entrada em serviço de navios estrangeiros, fabricados no exterior, com financiamento brasileiro. O que deve então ser feito em prol da cabotagem? 

De forma prática, acabar com a incidência de ICMS sobre o bunker, tornando a competição com o modal rodoviário justa; eliminar a obrigatoriedade do serviço de praticagem para os navios que operam regularmente na cabotagem; permitir o livre trânsito de carga entre os portos nacionais, sem burocracia; e reduzir os encargos trabalhistas sobre as tripulações brasileiras, bem como equiparar o número de tripulantes a níveis internacionais, o que hoje não ocorre, enquanto não se tem uma efetiva reforma trabalhista que desonere de vez o emprego no Brasil. 

Complementarmente, como concessão às empresas internacionais que operam no Mercosul, determinar a abertura do mercado entre Brasil, Argentina e Uruguai. Paralelamente, conceder às embarcações produzidas no Brasil prioridade na renovação de contratos de transporte de afretamento marítimo de longo prazo, nos afretamentos por viagem. Por fim, conceder às Ebins (Empresas Brasileiras de Investimentos Navais) isenção de imposto de renda, a exemplo do que está sendo feito com os fundos de infraestrutura, quando o investimento for realizado em construção de navios no Brasil. Esse roteiro é desafiador, mas muito mais realista.

Nota de esclarecimento enviada pelos autores em 29/09/2020:

Em nosso artigo “O BR do Mar e o que a cabotagem realmente precisa”, publicado pela Agência iNFRA em 25/09, dissemos que o “PL abre a possibilidade de financiamento a estaleiros estrangeiros, via FMM (Fundo da Marinha Mercante), para a produção de embarcações no exterior, em detrimento da indústria naval nacional”, o que suscitou dúvidas por parte de entidades ligadas ao setor de navegação.

De fato, o Projeto de Lei 4.199 não estabelece expressamente essa alternativa. Contudo, na prática é o que indiretamente aconteceria, na medida em que a essas empresas com sede no Brasil, mas controladas por matriz no exterior, seria dado acesso ao AFRMM (Adicional de Frete da Marinha Mercante).

O PL autoriza a importação sem restrições (isenção) de um navio, mas a matriz poderá criar quantas subsidiárias considerar convenientes para transferir para o Brasil a quantidade de navios que entender necessária à sua operação na cabotagem. Ao mesmo tempo, a matriz no exterior poderá construir embarcações em outros países, uma vez que tem colocação assegurada para as suas embarcações usadas: o mercado brasileiro de cabotagem.

Na prática, como essa “triangulação” poderá acontecer? De acordo com os incisos I e II do artigo 11 do PL 4.199 (BR do Mar), essas subsidiárias passam a fazer jus aos recursos do AFRMM, tributo pago por importadores e que é destinado à quitação do financiamento do FMM, teoricamente, usado na construção de embarcações em estaleiros brasileiros.

No caso do segmento de contêineres, por exemplo, esses recursos seriam suficientes para a matriz amortizar ou quitar o financiamento usado para pagar navios produzidos em outros países. Na prática, é o que ocorrerá, razão pela qual dissemos que o “PL abre a possibilidade de financiamento a estaleiros estrangeiros, via FMM, para a produção de embarcações no exterior, em detrimento da indústria naval nacional”.

Um aspecto ainda mais controverso é que, no caso de origem ou destino Norte e Nordeste, o AFRMM não é pago à empresa de navegação pelo dono da carga (embarcador), mas na forma de ressarcimento do FMM.

Isso significa que o navio afretado, construído no exterior, fará jus ao recebimento de recursos originalmente destinados a pagamento de financiamentos para construção no Brasil. Com esta possibilidade aberta pelo artigo 11 do PL 4.199 esses recursos do FMM estariam liberados à EBN para amortizar a compra de navios, mesmo na China, Japão, Cingapura e Coréia, entre outros.

*Nelson L. Carlini é engenheiro naval.
**Nilson Mello é advogado e jornalista.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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