iNFRADebate: O estado democrático de direito e a desestatização do Porto de São Sebastião

Patrícia Lia Brentano*

No último dia 7 de fevereiro seria realizada a audiência pública sobre a desestatização do Porto de São Sebastião, um dos portos escolhidos pelo Governo Federal para alteração do comando da Autoridade Portuária. 

A comunidade portuária de São Sebastião, apreensiva com a pressa do governo, a falta de respostas para questões fundamentais e o receio de que uma nova autoridade portuária privada (e também operadora portuária) pudesse empobrecer a região e aniquilar com os empregos locais, ingressou com uma ação com pedido de tutela antecipada pleiteando a suspensão da audiência e consulta públicas. 

Após algumas burocracias processuais que levou o processo até o STJ (Superior Tribunal de Justiça) para a definição da competência, a liminar foi deferida no dia 3 de fevereiro de 2022, ou seja, quatro dias antes da audiência pública. 

Decisão publicada no dia 4 de fevereiro de 2022, o Governo Federal entrou com pedido de suspensão de liminar no plantão judiciário do TRF (Tribunal Regional Federal) da 3ª Região no mesmo dia à noite. O Tribunal Regional Federal indeferiu o pedido de suspensão da liminar publicando a decisão na tarde do dia 5 de fevereiro de 2022, dois dias antes da audiência pública. 

No fundamento da decisão foi juntada o seguinte julgado recente do STJ: 

“Não se pode olvidar que o deferimento do pedido de suspensão está condicionado à cabal demonstração de que a manutenção da decisão impugnada causa efetiva lesão ao interesse público. Ademais, a suspensão de liminar e de sentença é medida excepcional que não tem natureza jurídica de recurso, razão pela qual não propicia a devolução do conhecimento da matéria para eventual reforma. (AgInt na SLS 2.938/DF, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, CORTE ESPECIAL, julgado em 17/11/2021, DJe 24/11/2021)” .

Ânimos tranquilizados pela decisão mantida, o momento era de expectativa para os ajustes que deveriam ser feitos pelo Governo Federal no processo licitatório. 

Na manhã do dia 7 de fevereiro de 2022, apesar de não divulgada na página da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) a suspensão da audiência pública, ao se tentar fazer a inscrição era informado que a mesma estaria suspensa por decisão judicial. 

Audiência pública oficialmente suspensa
Às 13h57 do dia 7 de fevereiro de 2022 foi recebido por algumas entidades de classe um áudio de WhatsApp enviado pelo secretário nacional de Portos que a liminar tinha sido derrubada e a audiência pública seria realizada no próprio dia no início da noite. Notícia confirmada pelo LinkedIn.

Na página do TRF da 3ª Região não constava qualquer movimentação do processo, ou seja, a liminar continuava válida. 

Ao se buscar na página do Superior Tribunal de Justiça foi localizada uma SLS (Suspensão de Liminar e de Sentença 3063 – SP, medida prevista na Lei 12.016/2009 e Lei 8.437/1992), constando apenas a informação de que a liminar tinha sido suspensa. A publicação estava prevista apenas para o dia 8 de fevereiro de 2022, portanto, apenas após a realização da audiência pública as partes envolvidas saberiam o teor da decisão.

Esse imbróglio jurídico acarreta inconstitucionalidades substanciais em relação ao princípio do devido processo legal e do processo justo, além dos princípios gerais da Administração Pública, os quais impõem-se na atuação de qualquer agente do Estado. Fica clara a quebra de isonomia processual entre o Governo Federal e a comunidade portuária, uma vez que o litigante particular não dispõe de todos esses meios.  

No dia 8 de fevereiro de 2022, quando enfim foi publicada a decisão do STJ, a decepção foi maior ainda, pois o Governo Federal estava mais preocupado em bater meta cumprindo (seu) cronograma do que interessado no bem da coletividade ao ouvir efetivamente a comunidade portuária de São Sebastião (um dos pleitos da liminar concedida). 

E o mais curioso é que contrariou decisão anterior do próprio ministro Humberto Martins trazida na fundamentação para manutenção da liminar pelo TRF da 3ª Região transcrita acima, demonstrando sua mudança (rápida) de entendimento.  

O que surpreende é a pressa sem fundamento do Governo Federal. O que custaria adiar em algumas semanas a audiência pública, atender o pedido da comunidade (e da Justiça) e tornar o certame licitatório efetivamente público, transparente e acessível a todos? 

A única preocupação, como dito na decisão do ministro presidente do STJ, é com a imagem do próprio Governo, onde “a interferência judicial paralisa todo o processo de forma desarrazoada, gerando risco de grave lesão aos entes públicos envolvidos por comprometer todo o cronograma pensado ao projeto”.

No balanço entre os prejuízos financeiros que poderiam ser experimentados, o da coletividade (dos autores da ação) é muito maior do que o do Governo Federal. 

Mais uma mentira foi escrita. 

Parte da fundamentação da SLS proferida pelo presidente do STJ: 

“Ademais, verifica-se lesão à economia pública, porquanto, como demonstrado na exordial da presente suspensão, através da Nota Técnica 8/2022/CGMC SNPTA/DNOP/SNPTA, ‘a atual administração do Porto de São Sebastião vem  suportando prejuízos em valor médio de R$11 milhões ao ano, destacando ainda que o atraso na sua desestatização, particularmente nessa etapa da consulta pública, põe em risco a obtenção de receitas estimadas na ordem de R$ 237 milhões de reais durante a vigência do contrato de concessão’ (fl. 14).” 

Fora o pífio valor trazido de R$ 11 milhões ao ano de prejuízo, que nunca seria motivo para uma desestatização, essa receita estimada de R$ 237 milhões prevista ao longo de 25 anos de concessão só existirá se o novo concessionário quiser, pois não há nenhuma obrigação contratual para que esse investimento seja realizado. 

Repito: não há no contrato obrigação alguma de investimentos nos próximos 25 anos para o arrematante do Porto de São Sebastião. O novo concessionário pode não fazer nada durante todo o contrato e devolver o porto exatamente como o recebeu. Então onde está o dito prejuízo financeiro? 

Esse é mais um dos argumentos trazidos (e provados) que possibilitaram a concessão da liminar em 1º e 2º graus de jurisdição.

Levar o assunto para a presidência do STJ na mesma manhã em que seria realizada a audiência pública e em prazo recorde conseguir suspender a liminar (o pedido foi protocolado pouco depois das 7h da manhã e antes das 14h já tinham conseguido “derrubar” a liminar) é de uma eficiência do Governo Federal que faz inveja até à iniciativa privada. 

Por que não usam toda essa eficiência na administração dos portos públicos brasileiros?  

E mais, a liminar não era para impedir a desestatização do Porto de São Sebastião, mas sim para trazer transparência e publicidade ao certame. A pressa do Governo Federal em patrolar quem cruza pelo seu caminho segue assustando, pois nitidamente o que menos importa é o bem da coletividade. 

Como dito na decisão do ministro Humberto Martins: 

“Verifica-se que a decisão impacta nas etapas a serem cumpridas, conforme cronograma apresentado pela Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários, comprometendo toda a atividade administrativa em torno do projeto, para finalização e remessa ao TCU em tempo razoável a fim de oportunizar a publicação do edital e a realização do leilão nos prazos previstos”. 

Para o Governo Federal o importante é cumprir com seu cronograma (já de olho nas eleições estaduais e federais) mesmo que para isso sejam vilipendiados os princípios da transparência, da publicidade e do interesse da coletividade. 

E a função basilar da audiência pública não foi atingida, que era a participação efetiva da comunidade (não apenas portuária), pois muitos, diante da “derrubada” da liminar de última hora, não conseguiram se programar, e tantos outros nem souberam da sua realização, pois sua divulgação ocorreu timidamente por WhatsApp e LinkedIn. 

E mesmo assim a ANTAQ, o MInfra (Ministério da Infraestrutura) e o BNDES, às 17h10 (antes do horário programado) do dia 7 de fevereiro de 2022, bateram sua meta e iniciaram a audiência pública em clima de festa, todos se parabenizando pelo sucesso da manutenção do “cronograma”, mas sem tocar no assunto da suspensão de horas antes. Faltou apenas o espumante. Foi constrangedor. Talvez inconstitucional.

*Patrícia Lia Brentano é advogada do Grupo de Trabalho de São Sebastião.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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