iNFRADebate: O fim da discussão da “privatização por fatiamento”?

Thiago Araújo* e Ana Carolina Alhadas**

O julgamento da ADI 6.241, a decisão sobre privatizações e os impactos sobre os desinvestimentos

Não causa surpresa a notícia do ajuizamento de inúmeras ações judiciais após o anúncio de um novo processo de desestatização em que o Poder Executivo recorre a uma das modalidades de alienação dos direitos que lhe conferem poder de controle sob uma determinada empresa estatal. Além deste comportamento marcar uma concretização do fenômeno mais amplo que consiste na própria judicialização da política, esse tipo de ação traz a lume uma polêmica de relevante importância. 

Isso se deve ao fato de que há (ou pelo menos havia) uma grande discussão jurisprudencial e doutrinária quanto à necessidade de edição de um ato normativo específico, pelo Poder Legislativo, apto a autorizar a extinção da empresa pública ou da sociedade de economia mista e a sua consequente transformação em uma empresa privada. 

Toda a controvérsia girava em torno da alegada necessidade de compatibilização do princípio da simetria com a previsão constante do art. 37, inc. XIX, da Constituição Federal, segundo o qual somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista

Tendo em vista que, de acordo com o princípio do paralelismo das formas1, devem ser empregados para a extinção de um determinado instituto jurídico os mesmos procedimentos que foram observados quando de sua constituição, parte da doutrina sustentava que a retirada do Estado de um determinado nicho econômico também demandaria a edição de uma “lei específica”.  

No entanto, uma outra leitura, adotada pelos representantes do próprio Poder Executivo, partia de uma interpretação sistemática do disposto no art. 37, inc. XIX, da CRFB/88, do previsto no PND (Programa Nacional de Desestatização) (Lei 9.491/1997), e, mais recentemente, da disciplina veiculada pela Lei 13.334/2016, que criou o PPI (Programa de Parcerias e Investimentos).

Nessa linha de interpretação, a autorização legislativa que se mostrava imprescindível para a privatização das empresas estatais era aquela concedida genericamente pelos referidos diplomas e complementada pelo chefe do Poder Executivo, através da edição de decretos que indicavam a inclusão das empresas escolhidas no âmbito do PPI, ou diretamente, na pauta de projetos do PND. 

Essas discussões desaguaram em três ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas no STF (Supremo Tribunal Federal): a ADI 5.624-DF; a ADI 6.537-DF; e, a ADI 6.241-DF. 

Na ADI 5.624-DF, o STF foi instado a conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 29, caput, inc. XVIII da Lei 13.303/2016. Naquele julgamento, em junho de 2019, o Plenário, ao referendar a medida cautelar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski, fixou a tese de que a alienação de controle acionário de empresas-mães (ou estatais de primeiro grau) depende de prévia autorização do Congresso Nacional e da realização de um procedimento licitatório. De modo oposto, a transferência do controle das respectivas subsidiárias e controladas (o chamado desinvestimento) prescinde de autorização legislativa específica e dispensa a realização de um processo de licitação stricto sensu.  

No curso das deliberações, o principal argumento apresentado para embasar a referida conclusão, com relação às empresas estatais de segundo grau, foi no sentido de que a opção pela constituição e extinção de subsidiárias e controladas é uma escolha gerencial do acionista controlador que dispensa, portanto, a participação do Poder Legislativo. 

Já quanto às empresas matrizes, os ministros sustentaram que a Constituição Federal é silente quanto ao procedimento que deve ser observado para a respectiva alienação, e que, portanto, o art. 37, inc. XIX da CRFB/88 deveria ser aplicado a esta hipótese, com base no princípio do paralelismo das formas. No entanto, e este é um ponto que mereceu pouco destaque, o STF não se comprometeu em fixar uma tese sobre se o princípio seria atendido com a edição de lei específica ou se bastaria para tanto uma autorização genérica já existente (Lei do PND e do PPI).

Frente a esta decisão, um conjunto de partidos políticos2 ajuizou a ADI 6.537, em que requeriam, em caráter liminar, a suspensão da MP 995/20203, e, no mérito, sua respectiva declaração de inconstitucionalidade. De acordo com os autores, o ato normativo questionado teria sido editado com o intuito de burlar o entendimento fixado pelo STF quando do julgamento da ADI nº 5.624. 

Na perspectiva dos autores, com a edição da MP 995/2020, a Caixa Econômica Federal poderia, agora, realizar uma “privatização por fatiamento”.

 Haveria, neste caso, uma transferência de titularidade da companhia a partir da segregação dos ativos de maior valor da empresa-mãe e da posterior transferência dos mesmos para empresas subsidiárias. Para que, em seguida, estas últimas fossem alienadas sem a prévia anuência do Poder Legislativo, o que, na perspectiva dos partidos, violaria o art. 3º da Lei 9.491/1997 e o entendimento consolidado no âmbito da ADI 5.624, ao viabilizar uma alienação por completo da CEF. 

Ainda que o STF não tenha proferido qualquer decisão no âmbito desta ação4, ela é relevante na medida em que coloca na mesa o debate acerca da possibilidade de adoção do procedimento de “privatização por fatiamento”, bem como por reviver a discussão acerca da necessidade de autorização específica para a privatização das empresas estatais.

O tema voltou recentemente à agenda do STF por conta da ADI 6.241, em que o PDT (Partido Democrático Trabalhista) arguiu a inconstitucionalidade da Lei do PND e da Lei do PPI. Em sua inicial, o partido questionava exclusivamente a possibilidade de alienação de controle das empresas públicas e sociedades de economia mista federais com base em uma lei genérica, sem a emissão de uma autorização específica por parte do Congresso Nacional. 

O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a matéria no último dia 5 de fevereiro, pôs fim aos questionamentos apresentados nestas três ações ao fixar, nos termos do voto da ministra Carmen Lúcia, que é constitucional a autorização genérica conferida ao presidente da República para incluir uma estatal no PND, sendo desnecessária a edição de lei específica com essa finalidade.

Ainda que a íntegra do referido acórdão não tenha sido disponibilizada até o momento, a justificativa para tal posicionamento pode ser facilmente extraída a partir de uma interpretação sistemática do texto constitucional. É o que resulta de uma leitura harmônica e sistemática do art. 37, inc. XIX em conjunto com o disposto no art. 173, caput da CRFB/88 e do abandono da tese da simetria das formas.

Explica-se. Como já indicado, o art. 37, inc. XIX da Constituição prevê que a criação de empresas estatais, ou seja, que a atuação direta do Estado na economia deve ser precedida da edição de uma lei autorizativa específica. A exigência faz sentido porque, de acordo com o art. 173, caput da CRFB/88, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado deve ser excepcional, ou, para usar os termos usualmente empregados pela doutrina, subsidiária. Por lógica, a retirada do Estado da economia deve ser menos burocrática do que o procedimento adotado para o ingresso do Poder Público na seara da produção e circulação de bens e serviços.

Portanto, se a intervenção direta do Estado em um determinado nicho econômico demanda a edição de uma lei específica, por se tratar de um afastamento da regra da livre iniciativa, a saída do Estado desse setor dispensa a edição desta norma em prol da própria concretização do texto constitucional.

A exigência da lei específica para a intervenção direta do Estado significa que o concurso do Poder Legislativo nesse tipo de processo complexo de tomada de decisão mostra-se uma opção mais adequada do que a atuação unilateral do chefe do Executivo. Os interesses em jogo quando da criação de uma estatal, e consequente afastamento da regra da livre iniciativa, são possivelmente mais bem identificados, considerados e ponderados pelos parlamentares, naturalmente mais acessíveis aos stakeholders e players envolvidos, do que por órgãos técnicos do Executivo. Em termos de assimetria informacional, é crível afirmar que o Legislativo, quando se trata de compor interesses em conflito por conta de uma ação governamental, mostra-se mais capacitado para fazer esse tipo de juízo prudencial do que outros poderes ou entes públicos.

Já no caso da saída do Estado de determinado setor econômico, essa ponderação de interesses em conflito não se faz necessária, ou, ao menos, não se faz tão premente. O que está em jogo aqui é o retorno à posição original de livre mercado, de forma que a participação do Legislativo no processo decisório não se faz necessária: o chefe do Executivo pode avaliar, com base nos pareceres de órgãos técnicos, se há ou não justificativa para a permanência do Estado em um especial nicho econômico, e, se for o caso, decidir pela saída.

Contudo, ainda que a última decisão do STF tenha tido a finalidade de resolver especificamente o ponto sobre a abrangência da lei autorizativa (se genérica ou específica), o certo é que a tese fixada ainda coloca um aparente fim à discussão sobre a privatização por fatiamento.  

Um dos efeitos colaterais da decisão do STF na ADI 6.241 consiste no esvaziamento da discussão sobre uma eventual privatização em fatias das empresas estatais. Isso porque, se não é exigida uma autorização legislativa específica para a total alienação do controle das empresas estatais, não há que se falar que o processo de alocação de ativos em subsidiárias e sua posterior alienação resulte em qualquer tipo de burla ou fraude à lei, tese sustentada, como visto, pelos subscritores da ADI 6.5375. Na medida em que, segundo o próprio Supremo, ambos os procedimentos – desestatização e desinvestimento – prescindem de autorização legislativa específica para serem efetivados, portanto, não há razão para que a privatização por fatiamento siga lógica diversa.

No entanto, a operacionalização dessas desestatizações através de um processo de desinvestimento agora suscita questionamentos de três ordens: (i) quanto à competência para a alienação dos ativos; (ii) quanto ao procedimento de alienação; e, ainda, (iii) quanto ao destino dos recursos obtidos a partir da venda dessas participações. 

Com relação ao primeiro ponto, destaca-se que a opção pela privatização de uma determinada empresa estatal demanda a inclusão dessas entidades no PPI ou, diretamente, no PND, com a correspondente observância de uma série de etapas6.

Por outro lado, para que uma empresa pública ou uma sociedade de economia mista aliene seus ativos ou sua participação em empresas subsidiárias basta uma mera deliberação por parte dos órgãos internos da companhia de acordo com os ritos também internamente previstos. Portanto, enquanto o procedimento de desestatização é o resultado de uma política pública implementada pelo Poder Executivo segundo rito previsto em lei, os processos de desinvestimento fazem parte da esfera de decisões gerenciais da empresa estatal.

Para além dessa diferenciação, a alienação do controle das empresas estatais matrizes depende de prévio processo licitatório, como anteriormente fixado pelo STF quando do julgamento da cautelar da ADI 5.624-DF. Enquanto, nos casos de alienação de participação acionária, dispensa-se tal exigência, nos termos do art. 29, caput, inc. XVIII da Lei das Estatais, bastando que haja um procedimento competitivo que observe os princípios da Administração Pública. 

Por último, há uma distinção substancial quanto à destinação dos valores obtidos nos processos de desestatização daqueles auferidos a partir da mera alienação de ativos. Isso porque, enquanto os recursos obtidos nos processos de desestatização são destinados, prioritariamente, à quitação das dívidas vencidas e vincendas perante a União, nos processos de desinvestimento esses recursos ingressam no caixa das empresas estatais sem uma destinação específica, cabendo, novamente, aos administradores da companhia a decisão acerca do emprego desse numerário.

Portanto, ainda que o STF tenha, aparentemente, resolvido a questão acerca da dispensa de lei específica para a privatização de estatais, a decisão não enfrentou todas controvérsias que podem advir dos processos de alienação de ativos de empresas públicas e sociedades de economia mista. Para além disso, como resultado de sua decisão, o Supremo, por si só, abriu margem para o seguinte questionamento: até que ponto os administradores das empresas estatais podem alienar ativos da companhia, a título de desinvestimento, sem que sua atuação corresponda à concretização de uma política pública de desestatização, de competência exclusiva do Poder Executivo?  Desse modo, nos resta aguardar até que o Tribunal seja instado a se manifestar novamente, o que não deve demorar. Haja vista que o tema das estatais está em voga no Judiciário, e que só no último mês questões relacionadas à previsão de golden shares em processos de desestatização, ou ainda, aos limites dos poderes conferidos ao acionista controlador, especialmente na nomeação e destituição de membros do conselho de administração, suscitaram debates intensos que não ficaram restritos à academia. Portanto, tudo leva a crer que o STF ainda terá muito trabalho, ao longo dos próximos anos, em pautas relacionadas a criação, funcionamento e extinção de empresas estatais.

*Thiago Araújo é professor da EPGE/FGV, procurador do Estado do Rio de Janeiro e sócio do escritório Bocater, Camargo, Costa e Silva, Rodrigues Advogados. Mestre e doutor em Direito pela UERJ.
**Ana Carolina Alhadas é advogada do escritório Bocater, Camargo, Costa e Silva, Rodrigues Advogados e mestranda em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.
1 “O princípio da simetria representa que os pressupostos formalísticos utilizados para a elaboração de um instituto deverão ser utilizados para o desaparecimento desse instituto também. Isto é, o raciocínio esposado pelo princípio do paralelismo das formas nada mais representa do que uma lógica coerente a ser adotada tanto para a elaboração de um ato quanto para a exclusão desse mesmo ato”. REIS, Luciano Elias. Dos Tratados Internacionais: o procedimento para a sua elaboração e a existência de pressupostos formalísticos para a concretização de uma denúncia sob o prisma da Constituição de 1988 in. DPU No 49 – Jan-Fev/2013 – Parte Geral – Doutrina.
2 Os partidos que constam no polo ativo da referida ADI são: PT (Partido dos Trabalhadores); PSB (Partido Socialista Brasileiro); PDT (Partido Democrático Trabalhista); Psol (Partido Socialismo e Liberdade); PCdoB (Partido Comunista do Brasil); e Rede Sustentabilidade.
3 MP 995/2020 – “Dispõe sobre medidas para reorganização societária e desinvestimento da Caixa Econômica Federal e de suas subsidiárias”.
4 A ação perdeu o objeto dada a não conversão da MP em lei.
5 Destaca-se que são excluídas de tal afirmação as estatais indicadas no art. 3º da Lei 9.491/1997, uma vez que estas não podem ser incluídas no PND, nos termos do artigo: “Art. 3º  Não se aplicam os dispositivos desta Lei ao Banco do Brasil S.A., à Caixa Econômica Federal, e a empresas públicas ou sociedades de economia mista que exerçam atividades de competência exclusiva da União, de que tratam os incisos XI e XXIII do art. 21 e a alínea “c” do inciso I do art. 159 e o art. 177 da Constituição Federal, não se aplicando a vedação aqui prevista às participações acionárias detidas por essas entidades, desde que não incida restrição legal à alienação das referidas participações”.
6 A saber: (i) a concordância do ministro, ao qual a estatal encontra-se vinculada, e do presidente da República com a desestatização da companhia; (ii) a deliberação, pelo Conselho do PPI, sobre a inclusão da estatal na lista de possíveis privatizações, resultando na edição pelo presidente da República de um decreto formalizando tal inclusão; (iii) caso a estatal seja incluída no PPI (etapa facultativa), a realização da fase de estudos técnicos para a escolha da modelagem de desestatização a ser adotada; (iv) posteriormente, como uma etapa obrigatória, a inclusão da companhia no PND, novamente via decreto presidencial; (v) em seguida, a análise e aprovação do edital de privatização pelo Tribunal de Contas da União; e, (vi) por fim, a publicação do edital e o início da venda das ações.
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