iNFRADebate: Os equívocos e meras suposições sobre o gasoduto de distribuição Subida da Serra

Alexandre Santos de Aragão*

Nos últimos anos, uma das mais relevantes discussões do setor de gás natural diz respeito à possibilidade de reclassificação do gasoduto Subida da Serra, estrutura de distribuição endógena à malha da Comgás, devidamente autorizada pela ARSESP (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo) e também chamada de “reforço metropolitano”.

Embora observe os requisitos da legislação vigente à época de sua autorização (estrutura endógena com início após o city-gate da distribuidora para mera movimentação, reforço e integração do sistema de distribuição), alguns agentes transportadores vêm pleiteando junto à ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) a requalificação do Subida da Serra a fim de enquadrá-lo como um gasoduto de transporte.

A despeito do posicionamento inicialmente favorável ao pleito das transportadoras, a ANP, após visitar as obras do projeto e ouvir os esclarecimentos da Arsesp, concluiu que o gasoduto poderia mesmo ser operado como estrutura de distribuição.

Foi elaborada, então, minuta de acordo entre as agências reconhecendo a possibilidade de o Subida da Serra ser operado pela Comgás como gasoduto de distribuição, desde que observados certos requisitos que em grande parte apenas refletem as suas próprias características (cláusulas 2.1.1 a 2.1.3 da minuta).

A redação final do termo se encontra em consulta pública, razão pela qual entendemos ser o momento oportuno para contribuir com as discussões, pluralizando o debate para a maior participação da sociedade civil e contribuindo para a melhor decisão das entidades públicas envolvidas.

Sobretudo porque, em resposta à posição agora mais refletida da ANP, alguns agentes de transporte apresentaram estudo contratado junto ao FGV-Ceri (Centro de Estudos e Regulação em Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas), que, talvez até pela impossibilidade de se desconstituir juridicamente a classificação dada pela ARSESP, focou em supostos aspectos econômicos que decorreriam da atual qualificação do Subida da Serra.

O raciocínio construído é simples – e também simplista: a operação do Subida da Serra pela Comgás faria com que a distribuidora adquirisse uma quantidade menor de gás a ser entregue por meio do sistema de transporte, acarretando uma permanente redução no volume de gás movimentado pela malha das transportadoras e em uma queda na arrecadação daqueles agentes.

Nesse contexto, o estudo dá a entender que, como os ganhos das transportadoras seriam sempre garantidos, as tarifas de transporte seriam necessariamente aumentadas em uma eventual revisão tarifária, encarecendo os preços praticados no restante da cadeia.

Como solução para esse problema, sustenta-se que o reforço metropolitano deveria ser, então, classificado como um gasoduto de transporte, pois, se assim o fosse, seria automaticamente incorporado à malha da transportadora prejudicada, permitindo a recomposição de seus prejuízos.

No entanto, as próprias premissas dessa construção são equivocadas, o que acaba levando o estudo a conclusões naturalmente inconsistentes.

Vejamos, então, alguns equívocos e suposições em quatro aspectos centrais do raciocínio desenvolvido pelo estudo.

Possibilidade de oferta de capacidade excedente ao fim dos contratos legados
A projeção de queda na quantidade de gás transportado e, portanto, na arrecadação das transportadoras, na forma aventada pelo estudo, não passa de mera suposição.

A capacidade de transporte de uma das principais transportadoras que atendem o mercado paulista (NTS Brasil), por exemplo, encontra-se integralmente contratada pela Petrobras por meio de contratos legados (contratos de longo prazo celebrados pela Petrobras junto às transportadoras entre 2006 e 2011) que se encerram entre 2025 e 2031. Até essas datas, independentemente de quaisquer variações de mercado, a receita das transportadoras está já resguardada, nos termos daqueles contratos.

No entanto, mesmo após o vencimento desses ajustes, não há como afirmar que a capacidade de movimentação daquele sistema não será recontratada, ainda que por mais de um agente, após a realização de chamada pública.

Mesmo que a quantidade de gás fornecido pela Petrobras à Comgás diminua em razão do novo contrato de fornecimento firmado entre elas e aquela empresa, não se interesse em manter a capacidade atualmente contratada junto às transportadoras (o que também não passa de mera suposição), nada impede que outros carregadores interessados em fornecer gás a clientes da região Sudeste mantenham a movimentação nos níveis atuais.

Ilustrando essa possibilidade, números recentemente divulgados pela ANP indicam que o índice de participação de mercado da Petrobras na oferta de gás natural na malha integrada reduziu, apenas de 2021 para 2022, de 100% para 83%. Essa redução, no entanto, foi compensada com a abertura do mercado para outros carregadores, fazendo com que a quantidade destes crescesse 900%, passando de dois para dezoito no mesmo período mencionado.

Na região Nordeste, onde o movimento foi mais intenso, a crescente participação de vendedores de gás natural foi capaz inclusive de aumentar a quantidade de gás movimentada pela malha de transporte, mesmo em um cenário de redução da participação da Petrobras, conforme figura abaixo:

Volume de vendas de gás natural na região para o mercado não-térmico atendido pela malha integrada de gasodutos de transporte entre 2020 e 2023. Fonte: ANP

A maior oferta de gás do pré-sal e o aumento de consumo, principalmente diante de um preço mais baixo possibilitado pelo aumento da concorrência, apenas reforçam que o mais provável é até que o volume de gás transportado não sofra qualquer redução caso seja mantida a atual classificação do Subida da Serra.

Ausência de garantia de receita: art. 9º da Lei do Gás
A Nova Lei do Gás (Lei 14.134/2021) teve por objetivo ampliar a competição no setor, diminuindo a influência de agentes historicamente privilegiados, para beneficiar o consumidor final. Ainda que houvesse alguma redução no volume transportado, é preciso relativizar bastante a premissa de que as transportadoras poderiam, em razão disso, adotar medidas para conservar seus lucros.

Por força sobretudo do art. 9º da Nova Lei do Gás, a receita máxima permitida não se traduz em uma “receita mínima garantida”, que se manteria inalterada inclusive após o vencimento dos próprios instrumentos que as definem. Afinal, expressa o artigo que a “receita não será, em nenhuma hipótese, garantida pela União”. Violaria até mesmo o espírito da lei uma interpretação que buscasse garantir ao monopolista uma determinada receita, mesmo após o fim de seus contratos atuais, em prejuízo do mercado consumidor. “Máxima” não pode querer dizer “mínima”.

Se, portanto, não há direito de recomposição pela diminuição de receitas, também inexiste qualquer correlação absoluta entre a suposta diminuição do gás transportado e um aumento das tarifas de transporte.

Multiplicidade de critérios para definição das tarifas de transporte
De toda sorte, ainda que o Subida da Serra viesse mesmo a resultar em uma menor movimentação de gás pela malha de transporte e que houvesse alguma garantia de receita para as transportadoras, é impossível afirmar que, apenas desses fatores isolados, decorreria um necessário aumento tarifário.

Por força dos arts. 3º e 13 da Nova Lei do Gás e dos dispositivos da Resolução ANP 15/2014, a definição e a revisão das tarifas de transporte se baseiam em diversos outros fatores que não só a quantidade de gás movimentada, como (i) o aumento ou a redução dos custos de operação; (ii) a depreciação dos ativos de transporte; e (iii) a amortização dos bens utilizados na atividade etc.

Essa lógica parece ter sido reconhecida pelo próprio Estudo, ao admitir que as consequências projetadas foram alcançadas “ao isolar o efeito [da movimentação] para as tarifas atuais das transportadoras”.

Todavia, em um contexto em que diversos critérios devem ser considerados, quaisquer projeções isoladas acabam por não refletir a realidade, levando a resultados que muito provavelmente nem têm como se materializar na prática.

Na realidade, se todos os critérios legais e regulamentares fossem considerados em uma eventual revisão tarifária, o mais provável é que ocorresse uma redução dos preços de transporte, tendo em vista o cenário de baixíssimos investimentos no segmento, em sua maior parte amortizados e depreciados pelo tempo.

Qualificação como de transporte não afastaria as consequências mencionadas pelo estudo
Por fim, ainda que toda a lógica pressuposta pelo estudo estivesse correta, a reclassificação do Subida da Serra não seria suficiente para superar a suposta queda de receitas das transportadoras que alegadamente aumentaria os preços de transporte. Afinal, não haveria garantia de que o Subida da Serra, enquanto eventual novo gasoduto de transporte, seria incorporado à malha das transportadoras teoricamente prejudicadas.

Isso porque o art. 12 da Nova Lei do Gás determina que deve ser realizado “processo seletivo público para identificar a existência de transportador interessado” na operação de novas estruturas, limitando eventual direito de preferência às hipóteses de ampliação de gasodutos já existentes. Seria, pois, plenamente possível que o Subida da Serra fosse operado por outro agente que não aqueles suscitados como potenciais prejudicados, persistindo, assim, o cenário cogitado.

Considerações finais
O escopo do Subida da Serra é otimizar a rede de distribuição de gás do estado de São Paulo, por meio de estrutura endógena ao sistema local, de modo a garantir maior segurança energética a áreas ameaçadas de desabastecimento e economia para os consumidores paulistas em razão de desenho operacional mais eficiente que permite a ampliação da concorrência no fornecimento.

Essas são as consequências que, de fato, decorrerão do projeto. Quaisquer outras suposições se reduzem a um exercício falho de futurologia impossível de ser afiançado.

O estudo em questão, apesar de certamente bem-intencionado, não pode servir como parâmetro para qualquer avaliação da ANP quanto à conveniência do acordo que encerrará o imbróglio.  Esperamos assim contribuir com os debates públicos em curso, exortando todos à promoção de ainda maior diálogo sobre os relevantes temas do setor de gás.

*Alexandre Santos de Aragão é doutor em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo), professor titular de Direito Administrativo da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e professor de Direito do Petróleo do doutorado da UERJ.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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