iNFRADebate: Vamos completar o tanque com etanol hoje?

Marcelo Araújo*

O etanol combustível está entre nós brasileiros há tanto tempo que às vezes não nos damos conta de toda sua relevância para a economia e para nossa jornada de descarbonização. Claramente, se conseguirmos ganhar maior escala e desenvolver novas soluções tecnológicas, seu potencial pode ir muito além, no Brasil e no mundo, como uma das mais importantes soluções para a transição energética.

Os primeiros experimentos com álcool anidro combustível no Brasil datam da década de 1920, durante uma grande crise dos preços de açúcar, à época uma das principais indústrias e fontes de divisas internacionais do país.  Seguiram-se a criação do IAA (Instituto de Açúcar e Álcool) em 1933 e, ainda na mesma década, o primeiro mandato de mistura obrigatória do álcool anidro na gasolina.

A criação do programa Pró-Álcool, em 1975, trouxe uma nova avenida de crescimento com o uso do etanol hidratado como combustível puro, não misturado à gasolina, para atender o mercado interno e, idealmente, para exportação. Hoje, a tecnologia “flex-fuel”, totalmente desenvolvida no Brasil e introduzida em 2003, é largamente dominante em nosso mercado, presente em cerca de 75% da frota atual de veículos leves.

Nessa já centenária jornada, criamos uma tecnologia proprietária e vencedora, com uma pegada de carbono 60% menor que a gasolina e até comparável à veículos elétricos na Europa. Ampliamos a disponibilidade, temos custos bastante competitivos se comparados a alternativas renováveis, consolidamos a indústria de etanol de cana-de-açúcar e, mais recentemente, vimos surgir uma florescente indústria de etanol de milho.

No entanto, ainda vemos um grande paradigma a ser quebrado: por que o etanol não é vendido e consumido de forma crescente e com prêmio sobre sua paridade energética com a gasolina?

Fonte: ANP

Não existe uma só resposta, é claro, mas alguns indícios podem nos ajudar a entender melhor e destravar o valor potencial que este ativo mais que brasileiro pode desempenhar para nosso futuro. A volatilidade na política de preços de combustíveis fósseis no Brasil, por vezes artificialmente reduzidos, que já causaram fortes prejuízos e endividamento à indústria de etanol, ou mesmo a natureza cíclica do mercado de açúcar, muitas vezes com preços mais atrativos, certamente estão entre as principais razões.

Ainda assim, se os consumidores o vissem como sua primeira opção e os frentistas dos milhares de postos de serviços em todo o país sugerissem “vamos completar com etanol hoje?”, por certo ganharíamos todos, produtores, distribuidores, revendedores, consumidores, sociedade e meio ambiente. Melhorar a comunicação de todo seu impacto positivo econômico e ambiental certamente ajudaria, mas para conquistar a confiança e a preferência dos consumidores, precisamos atacar de frente dois graves problemas: a sonegação e a adulteração.

Começando pela adulteração, houve grande avanço no controle de qualidade e redução dos eventos de adulteração do etanol hidratado, trabalho conjunto de produtores, distribuidores e revendedores, com apoio do ICL (Instituto Combustível Legal). Mas o índice de não conformidade de 2,3% em 2022, segundo o PMQC 2022 (Programa de Monitoramento da Qualidade dos Combustíveis em 2022) — supervisionado pela ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) — ainda é 53% superior ao da gasolina.

A tecnologia da informação pode ser uma forte aliada se criarmos um sistema de rastreamento do campo ao posto baseado com tecnologia blockchain, já largamente usada na indústria alimentícia, para acompanhar todas as etapas da cadeia logística. Em complemento, uso de data analytics e algoritmos de inteligência artificial ajudariam enormemente a maior assertividade e redução drástica dos custos de fiscalização das diferentes agências de defesa do consumidor estaduais e federais, lideradas pela ANP.

Mas é na sonegação onde se encontra a maior oportunidade. A complexidade tributária e a enorme dispersão de alíquotas e incentivos no país ajudaram a atrair maus empresários e criar distorções competitivas que, ao longo dos anos, vem reduzindo a rentabilidade para a esmagadora maioria dos empreendedores sérios em toda a cadeia, desestimulando sobremaneira o esforço comercial e de marketing do etanol. Estudos da FGV (Fundação Getulio Vargas) para o ICL estimam que 47,2% dos R$ 29 bilhões anuais perdidos no mercado de combustíveis brasileiro vem de ilícitos sobre o etanol.

Com tamanha sonegação, a alíquota efetivamente recolhida pelos impostos é infinitamente menor que as alíquotas nominais do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços) estabelecidas pelos Estados. É hora de reconhecer essa realidade e assumir um modelo tributário mais atual, com uma alíquota baixa o suficiente para estimular a maior adoção do etanol como a solução mais indicada e com menor custo para a transição energética do país, aproveitando ao máximo a eficiência da indústria e da infraestrutura de distribuição e revenda já implantadas em todo o território nacional.

A Lei Complementar 192/2022 trouxe enorme avanço para a simplificação tributária da gasolina e do diesel, com o instituto do sistema monofásico, com alíquotas específicas por litro e uniformes em todos o país. Infelizmente, o etanol hidratado ficou fora dessa legislação que já traz avanços indiscutíveis na redução da sonegação e otimização logística desses combustíveis.

A PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 45/2019, já aprovada na Câmara dos Deputados e em análise pelo Senado Federal, indicam o caminho para que combustíveis e biocombustíveis compartilhem a mesma solução prevista na Lei Complementar 192/2022. Portanto, já é possível divisar no horizonte a possibilidade desse grande avanço também para o etanol.

Mas será que teremos tempo para esperar toda a necessária transição do ICMS para o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) até 2032, como prevê projeto da PEC 45/2019, ou outras soluções e plataformas automotivas evoluirão e ocuparão esse espaço no mercado mundial e brasileiro, nos condenando a importar insumos e tecnologias em um segmento que hoje lideramos?

Uma alternativa para antecipar todos esses benefícios seria a proposição de um projeto de lei que incorporasse o etanol hidratado na Lei Complementar 192/2022, com alíquota já reduzida para a realidade efetiva da arrecadação, estimulando a um só tempo o aumento da receita dos Estados pela redução da sonegação e uma acelerada descarbonização da nossa matriz energética de transportes.

O potencial do etanol para a jornada de descarbonização irá, por certo, muito mais longe, com o etanol de segunda geração, com pegada negativa de carbono, ou seu uso como matéria-prima para gerar hidrogênio verde ou mesmo combustível sustentável de aviação.

Equacionados os desafios da sonegação e adulteração, superaremos os entraves da oferta e podemos partir seguros para o estímulo da demanda, conquistando o coração não só dos consumidores, mas de todos os brasileiros, pois temos em nossas mãos uma solução para o Brasil e para grande parte do mundo, onde a eletrificação total da frota não é uma realidade viável ou mesmo uma necessidade.

*Marcelo Araújo é diretor-executivo corporativo e de participações do Grupo Ultra e presidente do conselho de administração da Associação Brasileira de Downstream do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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