Tiago de Barros Correia* e Elbia Gannoum**
Recentemente, em 8 de março, o MME (Ministério de Minas e Energia) instaurou uma consulta pública para receber contribuições sobre a realização do segundo leilão para contratação de reserva de capacidade de potência.
Este é um tema técnico e relativamente árido, mas de profundo interesse da sociedade, pois terá impactos tanto na segurança e no preço da energia elétrica no médio e longo prazo, quanto da emissão de gases de efeito estufa.
Para entender o que está em jogo, primeiro é preciso pontuar que o sistema elétrico precisa operar com uma capacidade instalada maior do que a necessária para atendimento do consumo médio por energia.
A esta capacidade ociosa, chamamos reserva de capacidade e é utilizada para atendimento de demandas extremas, como as atingidas nas tardes quentes de verão, para acionamento em momentos de saída programada de usinas e equipamentos para manutenção, ou em emergências que podem decorrer de eventos climáticos ou de acidentes nas redes de transmissão e de distribuição.
Sendo assim, a reserva de capacidade pode ser entendida como um seguro contratado pela sociedade contra o risco de apagões. Mais especificamente, nos termos da proposta do MME, haveria a contratação de dois seguros, um baseado na reserva de potência hidrelétrica e outro na potência termelétrica fóssil.
Todavia, como visto acima, os apagões possuem causas diversas, cada uma delas com probabilidades de ocorrência, tempo de duração e profundidade de impacto distintas, não havendo solução técnica e comercial capaz de cobrir todas as possibilidades de sinistros sem ineficiências e custos relevantes de arrependimento – como o de contratar um seguro com franquia tão alta que nunca é acionado.
Sendo assim, é fundamental que o governo e a sociedade busquem soluções energéticas inovadoras, capazes de conciliar as necessidades de reserva de capacidade com a urgência da modernização e transformação do setor energético na direção da sustentabilidade ambiental, da flexibilidade operativa, da resiliência e da eficiência econômica.
De fato, a reserva de potência hidrelétrica é bastante eficaz para atendimento de cenários de elevação abrupta de demanda e de desligamentos não programados de redes de transmissão, mas é dependente do regime de chuvas e do volume dos reservatórios.
Ademais, devido às restrições ambientais para variações nos níveis dos rios, a manutenção de máquinas hidrelétricas como reserva operativa implica desperdício de recursos por meio de vertimentos turbináveis (água vazada pelas represas sem geração de energia por falta de demanda).
A reserva termelétrica, por sua vez, não depende de eventos climáticos como chuva, vento ou sol, mas também possui restrições operativas, sendo a mais significativa a necessidade de alguns minutos ou horas para acionamento das máquinas e sincronização com a rede elétrica, bem como de intervalos mínimos de permanência na condição de ligado e de desligado.
Como resultado, a reserva de capacidade termelétrica é mais adequada para cenários de baixa hidrologia, quando as hídricas não estão disponíveis, do que para o seguimento da demanda ou atuação em emergências.
Isso já aconteceu no Brasil. O sistema elétrico brasileiro desperdiçou, por meio de vertimento turbinável, o equivalente a 4% da demanda anual de energia em 2022 e a 8% em 2023. Ao todo, o desperdício, valorado pelo custo de oportunidade do preço da energia no mercado de curto prazo, foi equivalente R$ 4,95 bilhões.
O despacho termelétrico é menos frequente, mas, mesmo assim, considerando os dados de novembro de 2023, em um único mês, o custo associado com a inflexibilidade operativa (unit commitment, no jargão setorial) foi de R$ 587 milhões.
Deste modo, ambas as fontes possuem restrições e não podem compor sozinhas a reserva de capacidade, seja por razões de segurança, ou, principalmente, de eficiência econômica. A alternativa mais eficiente é compor uma cesta de soluções explorando as complementaridades de cada tecnologia.
Atualmente, já não existe dúvida sobre a viabilidade econômica e utilidade de recursos de armazenamento, especialmente sistemas de baterias, para a operação de sistemas elétricos, inclusive como reserva de capacidade.
Também não há dúvida sobre os ganhos de eficiência na contratação complementar de hidrelétricas, termelétrica e renováveis com armazenamento, sendo as últimas responsáveis por endereçar os problemas de menor profundidade e duração e por conferir tempo adicional para que a vazão dos rios fosse adequada (menos vertimento turbinável) ou as termelétricas acionadas e sincronizadas (menos consumo de combustível fóssil).
Na atual consulta pública sobre o tema, algumas questões regulatórias levantadas podem ser facilmente endereçadas para a contratação de sistemas de armazenamento associados a centrais de geração.
Não existe incipiência regulatória para a hibridização de centrais geradoras com recursos de armazenamento, havendo exemplos autorizados pela ANEEL para operação nos sistemas isolados.
Na mesma linha, a regulação atual para contratação do uso da rede pode ser aplicada diretamente sem necessidade de adequação, sendo as unidades de armazenamento tratadas como equipamentos elétricos e sua carga como consumo interno da usina.
A operação dos recursos de armazenamento também pode ser realizada por meio dos sistemas computacionais usuais do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico.
Finalmente, é claro que as fontes renováveis com armazenamento não são uma panaceia, mas as tecnologias termelétricas e hidrelétricas também não, e a contratação conjunta das três alternativas oferece uma melhor combinação de eficácia e efetividade com eficiência econômica.
Deste modo, é positiva a sinalização do ministério em permitir a participação de renováveis com armazenamento no próximo leilão de reserva de capacidade, conforme fala do ministro Alexandre Silveira, e a consulta pública conduzida pelo MME deve ser aproveitada para, de um lado, atender ao interesse público e possibilitar a contratação de uma reserva de capacidade abrangente, efetiva e economicamente eficiente, e, de outro, mudar o paradigma de expansão do setor elétrico. Isto possibilitará não apenas a modernização do parque gerador, mas também o desenvolvimento de modelos de negócios inovadores capazes de acelerar a transformação energética do Brasil.