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Leilões de capacidade dividem setor e colocam em dúvida a separação de lastro e energia


Nestor Rabello e Leila Coimbra, da Agência iNFRA

A realização de leilões de capacidade – mecanismo trazido pela Lei 14.120, oriunda da MP (Medida Provisória) 998 – está dividindo os agentes do setor elétrico. Há dúvidas se o mecanismo poderá inviabilizar a separação de lastro e energia, conforme proposto no projeto de modernização do setor (PL 414/2021).

Para alguns dos especialistas e executivos consultados pela Agência iNFRA, esse tipo de leilão (baseado na necessidade de potência, em vez da demanda das concessionárias) será um mecanismo importante para garantir a segurança do sistema, dispensando a necessidade de separação de lastro e energia no futuro.

Outros acreditam que o dispositivo é o primeiro passo rumo à separação de lastro e energia, mas há ainda os que demonstram dúvidas sobre se há a priorização de fontes térmicas em detrimento de outras, ou até mesmo se os leilões serão transitórios ou não.

O governo pretende realizar um leilão de capacidade no segundo semestre. O dispositivo é tratado pelo MME (Ministério de Minas e Energia).

O CEO da Thymos Energia, João Carlos Mello, argumenta que a medida é suficiente para garantir a compra de potência pelo sistema sem necessidade de mudança do modelo ou alteração em contratos legados: “O velho problema de lastro e energia. Isso tem que ser superado. O mercado de capacidade, mesmo marginal, já resolve. Não é preciso fazer a separação. Um leilão de capacidade anual resolve o problema”, defende Mello.

Segundo o executivo, o sistema elétrico brasileiro está ficando cada vez mais difícil de operar e por isso o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) precisa ter essa opção de maneira firme. “Capacidade firme significa estar disponível o tempo todo para o ONS. Não é só para atender na ponta, pode ser no meio do dia ou de manhã.” 

Para Mello, a legislação oriunda da Medida Provisória 998 satisfaz as necessidades atuais e veio em boa hora. “Essa Lei 14.120 veio em um momento muito adequado. A inserção renováveis na matriz nacional vem baixando preços, mas não tem outros atributos. É preciso garantir a confiabilidade do sistema, com um encargo de capacidade no Brasil que seja pago por todo mercado por esse benefício sistêmico.”

Previsibilidade
Para o presidente da consultoria PSR, Luiz Barroso, o conceito “faz todo sentido se o sistema tiver essa necessidade física e na ausência de um produto explícito nas regras de mercado para assegurar sua entrega”.

Sobre separação entre lastro e energia, Barroso afirma que “é um dos instrumentos que podem ser escolhidos para assegurar a adequabilidade do suprimento”. E completa: “Mas observe que, no limite, não ter instrumento algum, confiando apenas nos sinais de preços do mercado como faz o Texas, pode ser também uma escolha. Da forma posta, o leilão de capacidade é uma solução transitória. Mas se assim não for, é importante então deixar logo isso claro, explicitando os prós e contras que esta escolha significa em relação às demais. Esta é uma escolha técnica, e não dogmática ou apaixonada”, afirmou. 

Segundo o CEO da PSR, diversas fontes podem fornecer potência e diversos modelos de negócios podem ser aplicados combinando distintas fontes de receitas, com o cuidado de não ter duplo-contagem de valor.

“Se houver a opção por um leilão exclusivo para térmicas, o modelo de negócio será ainda mais importante, dado que o atendimento de potência naturalmente exige recursos com flexibilidade operativa e rampas rápidas […]. Térmicas inflexíveis, embora não sejam as candidatas naturais, até podem participar, mas competindo com outras fontes e com flexíveis”, completou.

Mercado de capacidade
Na visão da Abrace (Associação Brasileira de Grandes Consumidores e Consumidores Industriais), a criação de um mercado de capacidade anda em sentido contrário à separação de lastro e energia, no âmbito da modernização do setor.

Segundo o diretor técnico da associação, Fillipe Soares, o mecanismo introduzido pela nova legislação criará distorções no sistema. Para ele, seria melhor concentrar os esforços na CP (Consulta Pública) 33 do MME, que deu origem aos projetos de modernização que tramitam no Congresso Nacional (PLS 232 do Senado, agora PL 414 na Câmara).

“Com o leilão de capacidade, o governo não vai precisar se preocupar como anda a economia, o setor produtivo. Faz-se um estudo, define-se a capacidade a ser contratada, compra-se, e a conta vai para o consumidor depois – mesmo quando ele não consome”, aponta.

‘Bom ensaio’
Já a presidente da Abeeólica (Associação Brasileira de Energia Eólica), Elbia Gannoum, vê os leilões de capacidade como uma prévia do que ocorrerá no futuro. “Todos entendem que é um bom ensaio, um bom passo para aquilo que já estava na CP 33, para aquilo que a EPE [Empresa de Pesquisa Energética] tem feito, para que a gente se mova para um setor mais justo com alocação mais adequada desses custos e riscos”, aponta.

No entanto, ela defende que a modelagem dos leilões deve considerar a participação de outras fontes, e não só a geração térmica. Essa abertura, que considera ser uma “neutralidade tecnológica”, será proposta pela Abeeólica ao MME.

“Nosso senso comum leva a crer que essa contratação [de capacidade] é de térmicas. Mas não necessariamente. Porque se algum agente tiver um sistema híbrido, com bateria – como eólicas e solar –, ou trouxer outra solução de suprimento, como feito em Roraima, ele poderá fazer”, defendeu.

“Na prática, as térmicas têm uma competitividade muito maior, e é possível que elas que sejam atendidas. Mas veja, você não vai contratar térmica na base gerando energia. Você vai contratar disposição de gerar. Possibilidade de gerar. A energia é contratada separadamente. Então, de fato, você está separando uma necessidade sistêmica da energia. Que, em resumo, é uma separação lastro e energia. É uma espécie de treinamento de situação prévia da separação efetiva de lastro e energia, mas as bases e os requisitos já estão ali”, completou Elbia.

Na avaliação do presidente da Abraget (Associação Brasileira de Geradoras Termelétricas), Xisto Vieira, as térmicas constituem a única forma de garantir energia firme ao sistema, sobretudo em períodos recorrentes de escassez hídrica.

“Você sair do período chuvoso com níveis de reservatórios em cerca de 30% é realmente muito ruim, e isso tem se mantido todos os anos. Temos bastante esperança que vamos ter leilões de energia e capacidade que podem balancear isso. O  leilão de capacidade é de extrema importância”, aponta Xisto.

Para o executivo, as térmicas devem ser priorizadas nesses leilões “porque é a única geradora que tem 100% de controle sobre o combustível”. Segundo ele, a alta nos preços recente não é uma preocupação para o segmento, no âmbito da viabilidade das térmicas nos leilões, por ser uma “oscilação no curto prazo”.

“Inflexibilidade é necessária”
Visão similar tem o presidente do Conselho da Amazonas Energia, Gustavo de Marchi. Para ele, o novo dispositivo pavimenta o caminho para a separação definitiva de lastro e energia, mas o modelo deverá considerar térmicas inflexíveis em suas premissas para ser efetivo.

Marchi defende que a discussão sobre essas térmicas ficou polarizada, em razão do embate observado no âmbito da Nova Lei do Gás (PL 4.476/2020). “Defendo a térmica inflexível sob o ponto de vista da confiabilidade, da razoabilidade e da modernização do setor, uma vez que vamos ter que considerá-la.”

“Elas têm papel fundamental. Episódios recentes, inclusive o do Amapá e no cenário externo, no Texas e Califórnia, nos permitem concluir isso, desde que o desenho seja racional para o planejamento. É uma questão de premissas”, diz.

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