Gabriel Vasconcelos e Lais Carregosa, da Agência iNFRA
A discussão sobre o modelo de pagamento das tarifas de transporte do gás natural usado pelas usinas termelétricas que vão concorrer no LRCAP (Leilão de Reserva de Capacidade na forma de Potência) está dividindo as secretarias de Petróleo e Gás e de Transição Energética e Planejamento do MME (Ministério de Minas e Energia), apurou a Agência iNFRA. Fontes dizem que a decisão caberá mesmo ao ministro Alexandre Silveira, que acompanha a comitiva do presidente Lula em visita à França nesta semana.
Segundo fontes, haveria propensão de, na próxima portaria, retirar o custo de transporte da molécula da receita fixa das usinas e viabilizar seu pagamento por meio de preços pré-fixados pela ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), diretamente pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia). Mas, segundo interlocutores, os técnicos da pasta ainda estudam as possibilidades para “calibrar” os termos da mudança. O tema será alvo da próxima consulta pública, que terá duração menor, se comparada àquela que serviu ao processo finalmente anulado.
A ideia seria não deixar as transportadoras de gás desassistidas e evitar tarifaços no setor decorrentes da evasão de usuários da sua malha, mas, em paralelo, evitar mais custos significativos ao consumidor de energia elétrica, que seriam incorporados na conta de luz.
A Agência iNFRA apurou que a Secretaria de Petróleo e Gás, chefiada por Pietro Mendes, está convencida da necessidade de mudar as regras nesses termos. Já a Secretaria de Transição Energética e Planejamento, de Thiago Barral, é mais resistente à ideia por temer aumentos no repasse dos custos e impacto na conta de luz.
O pano de fundo dessa discussão é a disputa ferrenha sobre este aspecto do leilão entre as empresas donas de gasodutos de transporte (TBG, NTS e TAG), que pedem pelo novo arranjo, e empresas geradoras como a Eneva, que planejam disputar o certame com projetos desconectados da malha de transporte, ou seja, alimentados por navios de GNL (Gás Natural Liquefeito) ou instalados na boca do poço.
Mudança
Em leilões anteriores e até o momento, o custo do transporte de gás esteve incluído na receita fixa das empresas geradoras de energia, ou seja, uma variável precificada dentro dos projetos ofertados no leilão.
Mas, como essa receita é reajustada pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), enquanto as tarifas de transporte não são — por respeitarem uma lógica condominial, ou seja, proporcional ao número de usuários —, as empresas transportadoras de gás e donas de usinas conectadas à malha se dizem expostas a um risco de descasamento futuro que as levam a incluir uma margem de segurança nos preços.
Segundo essas empresas, esse sobrepreço torna os empreendimentos conectados à malha menos competitivos nos leilões, aumentando os custos de todo o setor elétrico, e estimulando a profusão de termelétricas desconectadas, o que também elevaria o custo geral do sistema.
Por essa razão, ainda na Consulta Pública 10/2025, que serviu ao certame cancelado, a ATGás (Associação de Empresas de Transporte de Gás Natural por Gasoduto) propôs a mudança no modelo de remuneração do serviço. O valor passaria a ser calculado pela multiplicação de tarifas futuras, estimadas oficialmente pela ANP, pelos pontos de entrada e saída dos gasodutos pela capacidade de gás reservada pelo gerador, sendo pagas pela CCEE.
Por outro lado, empresas com projetos à GNL ou na boca do poço, que não usam a malha para transportar molécula, são contrárias à mudança porque isso retira a vantagem delas de não terem de incluir na receita fixa dos projetos o custo das tarifas de transporte.
Eneva
Marcelo Lopes, diretor-executivo de Marketing, Comercialização e Novos Negócios da Eneva, lembra que os projetos desconectados não usam a malha de gás, mas têm outros custos de infraestrutura que, à luz da mudança de regra, não seriam igualmente “subsidiados” como as tarifas de transporte passariam a ser com a mudança.
“Isso traz uma discricionariedade, prejudica os agentes desconectados na disputa e gera prejuízo ao consumidor de energia elétrica”, diz. A Eneva tem colecionado vitórias em leilões de reserva de capacidade com seus projetos apoiados no modelo R2W (da reserva para o fio, na sigla em inglês) e no GNL.
Segundo Lopes, se o novo expediente valer para todas as termelétricas conectadas na malha de gás, haveria um custo de R$ 3,8 bilhões a R$ 4 bilhões por ano às tarifas de luz, considerando um custo de transporte da molécula a US$ 2 por milhão de BTU, o que equivaleria a R$ 90 por MWh.
ATGás nega
O presidente da ATGás, Rogério Manso, nega categoricamente aumento de custos ao consumidor final. Ele alega que o custo já está presentes no sistema e que a mudança serviria para aumentar a competitividade de projetos conectados, preservando e aumentando usuários na malha de gasodutos, o que reduziria as tarifas aos geradores e, paralelamente, frearia o que define como “farra do GNL”, combustível com preço mais volátil que a forma gasosa.
Segundo Manso, a ATGás não se opõe a uma sistemática diferenciada para privilegiar projetos a gás na boca do poço. “Quanto mais gás nacional, melhor”, diz.
“A proposta não traz um centavo a mais para as transportadoras de gás. E o formato atual só faz aumentar o custo do país a cada leilão. Porque ele é vantajoso ao GNL, que só agrega mais custo a cada navio adicionado”, afirma.
“As regras do leilão não vieram nas tábuas de pedra de Moisés. Elas devem ser aprimoradas conforme as circunstâncias, e faz todo sentido mudar agora”, continua, ao lembrar que o diálogo com o ministério sobre o tema já tem mais de dois anos.
Manso argumenta que, com os oito navios de regaseificação presentes na costa brasileira, a capacidade de oferta chega a 150 milhões de m³ por dia, quando a demanda máxima para o sistema foi uma média de 26 milhões de m³ em 2021. “No ano pico, eles operaram com mais de 80% de capacidade ociosa. A flexibilidade que o sistema precisa é menor do que isso”, diz.
Pressão adicional
Um alto executivo do setor de gás lembra que mais do que a redução de usuários da malha e a reorientação de investimentos para unidades à GNL, há uma pressão nas tarifas de transporte relacionada ao fim de contratos de termelétricas da Petrobras, cujos custos do transporte de gás eram assumidos pela estatal, que tinha atuação verticalizada, e assim seguiram nos contratos legados, após a privatização dos gasodutos. Mas isso não vai continuar e esse custo terá de ser incorporado pelo sistema, mesmo que a estatal renove ou emplaque novos projetos termelétricos.
Consumidores
O diretor de Gás Natural da Abrace (Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres), Adrianno Lorenzon, destaca que a discussão sobre o modelo de pagamento é travada enquanto as transportadoras passam por uma onda de revisões tarifárias na ANP. “São dois eventos paralelos, um mexe com o numerador e outro com o denominador”, disse.
Para Lorenzon, as térmicas existentes que estão conectadas ao sistema de transporte, e que porventura vençam o leilão, devem pagar pelo sistema de transporte. “Não faz sentido uma térmica ganhar um leilão, para ter um compromisso de gerar energia a qualquer momento, e não ter a contratação da capacidade de transporte reservada para ela. E, se está reservada, ele [o agente] tem que pagar”, declarou.
No caso das térmicas novas, que motivam o debate sobre a fuga de demanda da malha de transporte, o diretor da Abrace afirma que é preciso “garantir a isonomia do processo competitivo” entre as térmicas conectadas, que têm o custo de transporte, e as desconectadas, que teriam outras despesas.