André Luís M. Freire*
A ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) concluiu, entre os anos de 2020 e 2024, a mais abrangente reforma regulatória já realizada entre os setores regulados no Brasil desde a criação do modelo de agências reguladoras. Trata-se do RCR (Regulamento das Concessões Rodoviárias), um marco normativo que reorganiza e atualiza os principais aspectos regulatórios aplicáveis aos contratos de concessão de rodovias federais delegadas. A amplitude da reforma, sua profundidade técnica e a visão sistêmica adotada conferem ao RCR um papel estruturante na modernização da regulação do setor.
Desde sua idealização, a proposta do RCR foi construída com base em diálogo com os diversos agentes públicos e privados que integram o ecossistema das concessões rodoviárias. O processo regulatório adotado privilegiou a escuta ativa e a transparência, com a realização de reuniões participativas, consultas e audiências públicas com representantes do governo, do setor privado, do mercado financeiro e da sociedade civil.
Com a aprovação das cinco resoluções que compõem o RCR – que tratam, respectivamente, de diretrizes gerais, gestão de bens e serviços, gestão econômico-financeira, fiscalização e penalidades, e encerramento contratual – a reforma regulatória encerra seu ciclo normativo e inicia uma nova fase: o ciclo contratual, com sua adesão para adaptação dos contratos vigentes e implementação nos contratos futuros.
Os próximos desafios serão fomentar a adesão dos contratos vigentes às novas regras e garantir que as futuras modelagens de concessões já sejam estruturadas com base nos parâmetros e diretrizes do novo regulamento. A uniformização dos contratos e a consolidação de uma base regulatória clara e estável são passos essenciais para ampliar a segurança jurídica e atratividade do setor.
Neste artigo, pretende-se revisitar o contexto estrutural que permitiu a conclusão da reforma regulatória. Evidenciam-se os elementos que se espera serem aptos a estimular a adesão ao RCR pelas concessionárias. Destaca-se a permeabilidade do regulamento às inovações futuras e como se espera que esse processo venha acontecer. Por fim, apresenta sugestões à ANTT e ao setor quanto à condução do processo de adesão ao RCR, para sua efetiva implementação.
Cumpre registrar que este artigo reflete a perspectiva pessoal do autor, servidor público que integrou a equipe responsável pela concepção e elaboração do RCR no âmbito da ANTT, mas que não mais compõe os quadros da agência. As opiniões e análises aqui apresentadas são de exclusiva responsabilidade do autor e não representam posicionamento institucional da ANTT ou de qualquer outro órgão público. Este texto é uma singela contribuição ao bom debate, de quem o observa agora como cidadão que torce pela evolução do setor.
Fatores estruturais que permitiram a reforma regulatória
A reforma regulatória promovida pela ANTT no âmbito das concessões rodoviárias não surgiu por geração espontânea, alheia ao contexto vigente. Pelo contrário, foi o resultado de um processo cumulativo de amadurecimento institucional, aprendizado regulatório e transformação do ecossistema das concessões.
Ao longo de mais de duas décadas de regulação do setor, fatores estruturais – tanto internos à agência quanto externos ao ambiente regulatório – criaram as condições necessárias para que uma reforma dessa magnitude fosse concebida, debatida e finalmente aprovada.
Um dos fatores mais relevantes foi a evolução do estado da arte dos contratos de concessão, marcada por um processo de tentativa e erro. A título de exemplo, cite-se a evolução na mensuração técnica e econômica dos impactos dos eventos ao longo da vida do contrato.
Enquanto nas primeiras etapas das concessões os contratos eram acompanhados com base em parâmetros simples, porém fictícios, do fluxo de caixa original, com a introdução do fluxo de caixa marginal e do Fator D nas etapas subsequentes a Agência desenvolveu importantes ferramentas de reequilíbrio aptas a capturar as dinâmicas contratuais de longo prazo. No entanto, sua aplicação pouco calibrada em projetos da 3ª etapa evidenciou limitações e reforçou a necessidade de aprimoramento contínuo destes instrumentos regulatórios.
Além da evolução técnica dos contratos, eventos externos também exerceram papel crucial no amadurecimento da regulação. A experiência com choques adversos – como as elevadas taxas de juros dos anos 1990, que influenciaram diretamente as taxas de desconto dos contratos da época, sucessivas crises econômicas e, mais recentemente, os impactos sistêmicos da Operação Lava Jato – evidenciaram a vulnerabilidade dos contratos a fatores exógenos.
Esses episódios demonstraram que tanto concessionárias quanto o poder concedente e os usuários podem ser afetados por desequilíbrios estruturais, reforçando a urgência de uma regulação mais resiliente, transparente e adaptável a contextos adversos.
Internamente, a ANTT fez uma escolha organizacional acertada ao reestruturar suas competências técnicas em duas superintendências distintas, com a segmentação entre a Superintendência de Infraestrutura Rodoviária, dedicada à gestão e fiscalização dos contratos existentes, e a Superintendência de Concessão da Infraestrutura, voltada à modelagem e estruturação de novos projetos.
Essa separação funcional permitiu uma maior especialização técnica, reduziu conflitos de interesse entre as fases do ciclo de vida dos contratos e criou um ambiente institucional mais robusto para o desenvolvimento de soluções regulatórias de longo prazo.
Por fim, o amadurecimento da própria agência e de seus interlocutores diretos foi fundamental. A ANTT passou a exercer de forma mais plena seu papel como regulador de contratos e de investimentos – e não apenas como indutora de obras de infraestrutura.
Do lado das concessionárias, houve uma transição no perfil dos operadores, com maior presença de grupos com visão de longo prazo, capacidade técnica e compromisso com a governança.
Já os usuários passaram a contar com representação mais institucionalizada por meio de associações, que têm se qualificado tecnicamente e contribuído de maneira cada vez mais ativa nos processos regulatórios. Esse novo equilíbrio de forças, mais técnico e menos centrado em interesses conjunturais, foi determinante para o êxito da reforma.
Por que o RCR merece ser abraçado pelo setor?
Mais do que um novo conjunto de normas, o RCR representa uma oportunidade concreta de modernização institucional para o setor de rodovias concedidas. Sua implementação oferece benefícios tangíveis às concessionárias, usuários e ao próprio regulador, ao estabelecer um ambiente mais previsível, transparente e eficiente para a gestão dos contratos de concessão. Por isso, o RCR não deve ser visto apenas como uma obrigação normativa, mas enquanto instrumento estratégico que merece ser compreendido, adotado e valorizado pelos agentes regulados.
Em primeiro lugar, destaca-se a uniformização e clareza das regras aplicáveis a todas as concessões. Embora cada contrato continue refletindo as particularidades técnicas, operacionais e econômicas de seu respectivo projeto, a existência de um arcabouço regulatório único confere maior previsibilidade e segurança jurídica ao setor.
A padronização dos conceitos, procedimentos e obrigações regulatórias fortalece a isonomia no tratamento das concessionárias e facilita a interlocução com os usuários, que passam a operar em um ambiente regulado com linguagem, expectativas e diretrizes mais estáveis e compreensíveis.
Outro fator relevante é a otimização dos recursos da ANTT. Ao reduzir a fragmentação normativa e consolidar procedimentos antes dispersos em normativos isolados, o RCR permite à agência alocar seus recursos humanos e materiais de forma mais estratégica. Essa eficiência institucional tende a se traduzir em maior capacidade de resposta aos temas que realmente desafiam a sustentabilidade dos contratos, reduzindo disputas de menor relevância e promovendo soluções mais céleres e qualificadas para os problemas estruturais do setor.
Por fim, o RCR também promove uma revisão inteligente dos incentivos à boa execução contratual. As normas trazem mecanismos que reconhecem e valorizam o desempenho das concessionárias comprometidas com a prestação de um serviço adequado, contínuo e eficiente.
Acima de tudo, a classificação periódica das concessionárias é a espinha dorsal da responsividade esculpida no RCR. Por esse mecanismo, pretende-se distinguir os bons dos maus concessionários, fazendo uso de indicadores afetos à execução das obras, aos parâmetros do serviço e à percepção dos usuários.
Há, ainda, previsões normativas que condicionam benefícios tarifários ao cumprimento das fases contratuais e de metas de desempenho, bem como reforçam os incentivos para a antecipação de investimentos. Essa lógica premial aumenta a atratividade dos projetos, sobretudo para operadores com visão de longo prazo e foco na excelência operacional.
Como o RCR convive com as inovações para modelagens futuras?
Um dos méritos mais relevantes esperados do RCR é sua capacidade de combinar estabilidade normativa com abertura à inovação. Desde sua concepção, o RCR foi pensado como um arcabouço regulatório dinâmico, apto a evoluir conforme a experiência regulatória e as transformações do setor. Suas normas não estão cristalizadas: podem ser aprimoradas mediante processo regulatório fundamentado em evidências técnicas e com ampla participação social.
Nesse sentido, os contratos de concessão estruturados a partir de novas modelagens funcionam como verdadeiros tubos de ensaio para a experimentação de instrumentos e práticas inovadoras. Essas inovações contratuais, uma vez testadas e avaliadas em ambiente real de execução, podem subsidiar revisões futuras do RCR.
A agência passa, assim, a dispor de uma base empírica robusta para decidir sobre a ampliação ou não de determinada prática ao conjunto das concessões reguladas, promovendo um processo de aprendizado contínuo e institucionalizado.
Da mesma forma, o RCR está apto a absorver contribuições oriundas dos órgãos de controle. Determinações ou recomendações oriundas do tribunal de contas ou outros controladores podem ser inicialmente incorporadas em contratos específicos, como forma de avaliar sua eficácia e aplicabilidade prática. Caso os resultados se mostrem positivos e compatíveis com os princípios da boa regulação, tais recomendações podem ser internalizadas de forma definitiva no regulamento, conferindo segurança jurídica e isonomia ao seu cumprimento por todos os agentes regulados.
Tem-se observado nos últimos meses a renegociação de contratos estressados entre a ANTT, a concessionária e o TCU (Tribunal de Contas da União). A iniciativa é bastante meritória e dá solução para passivos históricos em algumas concessões, mas é de se reconhecer seu caráter custoso e moroso. Note-se que o RCR 4 já contempla um capítulo próprio a disciplinar o regime de recuperação regulatória, que dá cabo de forma transparente e adaptável a esse tipo de desafio.
Com isso, projeta-se, para o futuro, a consolidação de um ciclo virtuoso entre desenvolvimento e experimentação de inovações nos contratos de concessão e sua eventual incorporação no RCR. Essa dinâmica reafirma o papel da ANTT como reguladora moderna, responsiva e orientada por evidências, ao mesmo tempo em que contribui para a estabilidade das regras aplicáveis às concessões e para a constante melhoria da prestação dos serviços aos usuários.
Adesão dos contratos atuais ao RCR: propostas de abordagens
Concluído o ciclo normativo da reforma regulatória, a implementação efetiva do novo modelo passa necessariamente pela transição contratual, por meio da adesão dos contratos vigentes às regras estabelecidas no RCR. A proposta aqui apresentada visa contribuir com o debate institucional, oferecendo sugestões para o próximo passo dessa transição, a partir da negociação de termos aditivos entre a ANTT e as concessionárias.
Recomenda-se que a agência adote duas abordagens autônomas e complementares: (1) a compatibilização entre o conteúdo dos contratos de concessão em vigor e as regras do RCR, de forma geral; e (2) o tratamento específico a ser conferido à matriz de riscos prevista em cada contrato.
No que se refere à adesão às regras do RCR em geral (1), é possível classificar o conjunto normativo do regulamento em três grandes grupos.
O primeiro é composto por regras autoaplicáveis, cuja natureza jurídica e conteúdo técnico permitem sua aplicação imediata e uniforme, independentemente de ajustes contratuais detalhados. É o caso da integralidade do RCR 1, que trata das diretrizes gerais, e do capítulo 2 da segunda resolução do RCR, que disciplina o regime de bens da concessão.
Para esse grupo de normas, recomenda-se a inclusão de uma cláusula geral de adesão nos termos aditivos, estabelecendo que a concessionária e a ANTT acordam em submeter-se ao modelo normativo do RCR, com prevalência sobre as cláusulas dos contratos originários e seus aditivos anteriores – ressalvadas, naturalmente, as disposições particulares expressamente tratadas no novo termo aditivo.
O segundo grupo compreende normas do RCR cuja aplicação requer compatibilização contratual, por dependerem de especificações técnicas ou operacionais ausentes no contrato originário. São exemplos disso os mecanismos de desconto ao usuário frequente e os fatores tarifários previstos nos no RCR 3, que necessitam de uma calibração individualizada.
Para essa categoria, sugere-se que a ANTT adote uma política regulatória diferenciada conforme a etapa do contrato. Para as concessões da 2ª e 3ª etapas, a agência deve avaliar caso a caso a conveniência de incorporar essas inovações, considerando o custo de transição e os efeitos sobre o equilíbrio econômico-financeiro. Já para os contratos da 4ª etapa em diante, recomenda-se uma postura mais deferente à modelagem contratual original, priorizando a preservação dos termos contratuais sobre a aplicação do RCR. Em ambos os casos, é essencial que o termo aditivo trate expressamente da adoção ou não das disposições regulamentares aplicáveis.
O terceiro grupo envolve regras do contrato original que não encontram correspondência no RCR, sendo resultado de soluções customizadas adotadas nos contratos em vigor. Como exemplo, podem ser citadas as cláusulas 16.69 e 16.70 dos contratos da 2ª etapa, que tratam da distribuição de dividendos, bem como o modelo de resolução de controvérsias previsto na cláusula 42 de alguns dos contratos da 5ª etapa.
Para esse conjunto, sugere-se uma abordagem similar à do grupo anterior, buscando a superação dessas especificidades nos contratos mais antigos, sempre que isso for viável e vantajoso, e preservando as soluções já consolidadas nos contratos mais recentes. Novamente, a clareza no termo aditivo quanto à prevalência ou não da regra contratual frente ao RCR será fundamental para assegurar segurança jurídica e previsibilidade.
Em relação à matriz de riscos dos contratos (2), identificam-se duas abordagens possíveis e excludentes entre si, ambas passíveis de consideração pela ANTT em diálogo com os parceiros privados.
A primeira consiste na adoção integral da matriz de riscos do RCR, o que implicaria superação da alocação de riscos originalmente prevista no contrato. A segunda opção é a preservação completa da matriz de riscos contratual original, afastando, para esse aspecto, a aplicação das normas do RCR.
Independentemente da escolha, é recomendável que o termo aditivo preveja a preservação explícita das disposições contratuais sobre riscos não tratados pelo RCR, evitando interferências indesejadas na estrutura econômico-financeira da concessão.
Por exemplo, alguns contratos mais recentes preveem o compartilhamento do risco de demanda entre a concessionária e o poder concedente, como forma de garantir a atratividade e sustentabilidade do projeto. Dado que essa forma de alocação de risco não é disciplinada pelo RCR, sua manutenção expressa nos termos aditivos é essencial para preservar o equilíbrio original e a lógica da modelagem contratual.
Conclusão
O setor de concessões rodoviárias vive um momento regulatório singular. Após anos de construção normativa, o RCR se apresenta como uma base sólida e moderna para a regulação do setor. O desafio que se impõe agora é a efetivação do ciclo contratual da reforma, no qual o novo modelo será incorporado ao dia a dia das concessões.
Cabe à ANTT, com escuta ativa e permanente diálogo com concessionárias e representantes dos usuários, liderar esse processo de transição, indicando com clareza os caminhos regulatórios que pretende seguir para garantir a adesão e a padronização progressiva do setor ao novo regime.
Do lado das concessionárias, cabe-lhes o exercício legítimo de análise quanto à vantajosidade da adesão ao RCR, submetendo internamente a proposta de aditivo ao crivo da racionalidade econômica para entender se, e em que medida, as novas regras contribuem para a sustentabilidade de seus contratos. Esse movimento é esperado e necessário.
Entretanto, é desejável que essa análise não se restrinja ao horizonte imediato, mas leve em conta os ganhos de médio e longo prazo, especialmente aqueles advindos de um ambiente regulatório mais claro, previsível e isonômico. As vantagens aqui apontadas – como a padronização normativa, a valorização do bom desempenho e a permeabilidade à inovação – devem pesar na balança.
Por fim, é importante reconhecer que a adesão ao RCR, nos casos em que se demonstrar vantajosa, pode implicar a necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos. Nessa etapa, será essencial que a ANTT e as concessionárias adotem uma postura pragmática, focada nos impactos mais relevantes das alterações normativas.
Evitar um processo excessivamente detalhista e oneroso é condição para que os aditivos possam ser celebrados em tempo razoável e com segurança jurídica. A convergência entre regulação moderna e contratos aderentes à realidade operacional e econômica do setor é a chave para que a reforma se torne realidade, com benefícios concretos para o interesse público.
*André Luís M. Freire é advogado da União, bacharel em Direito pela USP e em Economia pela UnB.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.