Opinião

Opinião – A marcha da insensatez no saneamento

Luiz Afonso dos Santos Senna*

“A burrice, no Brasil, tem um passado glorioso e um futuro promissor.” (Roberto Campos)

A reforma do Estado brasileiro, iniciada na década de 1990, pressupõe a redefinição dos papéis dos vários entes da gestão pública com vistas a tornar o Estado mais eficiente. Entre as várias iniciativas, houve a preocupação em desfazer a concentração das funções de poder concedente, regulador e ofertador em um único ente (o governo), fato que historicamente levou à ineficiência no provimento de infraestrutura no país.

Além da participação privada na prestação dos serviços públicos, a separação das tarefas de regulação das de exploração de atividades econômicas objetivou também a orientação da intervenção para a defesa do interesse público; a busca do equilíbrio nas relações de consumo no setor regulado, envolvendo usuários/consumidores e prestadores de serviços; e o exercício da autoridade estatal por mecanismos transparentes e participativos.

É nesse contexto que surgem as agências reguladoras, órgãos criados por leis específicas federais, estaduais e municipais, na condição de autarquias ditas especiais, que deveriam ser dotadas de autonomias administrativa, financeira e patrimonial, muito mais amplas do que aquelas das demais autarquias.

As agências reguladoras foram concebidas para atuar em um ponto equidistante em relação aos interesses dos usuários/consumidores, dos prestadores dos serviços concedidos e do próprio poder executivo, de forma a evitar eventuais pressões conjunturais de interesse apenas de curto prazo.

Por esses motivos, as agências precisam ter regramentos claros, transparentes e inequívocos. Para reduzir a discricionariedade nas tomadas de decisão, as agências possuem arranjos que visam a prover governança qualificada, assegurando previsibilidade, tecnicidade, transparência e independência.

Em caso contrário, ocorre o que tecnicamente é denominado “captura”, ou a subordinação às vontades de algum dos grupos de interesse envolvidos, como as concessionárias, os usuários ou o próprio governo.

Há poucas semanas foi proposta a criação de uma Abrasan (Associação Brasileira de Saneamento), entidade de direito privado, conforme anunciado por uma agência reguladora intermunicipal. O objetivo da referida associação é “estreitar laços entre reguladores, prestadores de serviços de saneamento e outras entidades, para criar mais oportunidades de proximidade e colaboração”.

A entidade propõe-se a ser uma associação de reguladores, prestadores e associações do setor. Entre os associados, estão agências reguladoras, quaisquer pessoas jurídicas, públicas ou privadas, que atuem em saneamento, incluindo entidades de pesquisa, associações e prestadores de serviços, além de quaisquer outras entidades ligadas ao setor do saneamento.

É absolutamente inconcebível, primário e sem sentido lógico que agência reguladoras participem de associações que prevejam “estreitar laços entre reguladores, prestadores de serviços de saneamento e outras entidades” ou mesmo o desenvolvimento de “soluções por meio de um esforço conjunto e integrado”. Ao misturar em uma mesma associação entes com interesses conflitantes, são passados sinais confusos, desconexos e destoantes para a sociedade brasileira e para os mercados.

A nova associação foi concebida por uma combinação improvável entre Agesan-RS (Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento do Rio Grande do Sul) e a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico).

A Agesan-RS exerce a presidência e a ANA, a vice-presidência. Com a entrada em vigor do novo marco do saneamento, desde 2020 cabe à ANA a importante missão de emitir diretrizes para orientar e harmonizar a regulação dos serviços de saneamento, responsabilidade dos entes infranacionais – estaduais, municipais e intermunicipais.

Um aspecto absolutamente paradoxal é que a Agesan-RS (que preside a associação) não se enquadra nos requisitos definidos na Resolução de Governança 177/24 da ANA (vice-presidente), que estabelece práticas de governança aplicadas às entidades reguladoras infranacionais que atuam no setor de saneamento básico.

É óbvio e basilar o fato de que as relações entre agências reguladoras, governos, entes regulados e outros agentes devem ser feitas nos seus ambientes tradicionais, concebidos para tal, como as audiências e consultas públicas, ou até mesmo em reuniões privadas, porém com transparência e isonomia, conforme as leis e normas que regem as agências, evitando qualquer possibilidade de captura ou riscos de decisões enviesadas.

A manutenção da integridade do sistema regulatório pressupõe algumas premissas para proteger o interesse público. É essencial que reguladores e regulados mantenham uma relação profundamente profissional, porém totalmente independente.

O ambiente de uma associação que mistura agências reguladoras, concessionárias e todos os CNPJs que dela queiram participar apresenta um grande risco de captura das agências e um risco ainda maior de se tornar um ambiente promíscuo. A separação de regulador e regulado é premissa para garantir que o processo seja justo, transparente e imparcial.

Esse infeliz episódio causa sério prejuízo à imagem pública e à credibilidade do sistema regulatório do país, em um momento crucial para o país e pode até mesmo vir a comprometer a árdua missão da ANA e da sociedade brasileira de tirar o país do atraso do setor de saneamento.

Obviamente, deverá haver ações dos órgãos de fiscalização (Controladoria-Geral da União, Ministério Público federal, Tribunais de Contas, entre outros) e do Poder Legislativo em relação a essa associação inusitada e sem sentido. Esse lapso de lucidez e maturidade implicará um custo adicional para todo o sistema regulatório do país.

A ANA é, ou deveria ser, uma das grandes agências reguladoras nacionais pela árdua missão de acabar com o atraso histórico no saneamento e colocar país no século XXI. Os indicadores da área mostram o nível de atraso e o gigantesco desafio a ser vencido. A expectativa é de que o Brasil dê um salto civilizatório, fundamental para o desenvolvimento.

Da agência são esperados e exigidos muito conhecimento e habilidade, mas, fundamentalmente, muita sabedoria. Não há margem para erro, como o que nitidamente está ocorrendo nessa insensata e absurda iniciativa de criação de uma associação entre reguladores e regulados.

*Luiz Afonso dos Santos Senna é PhD em transportes, professor titular da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), ex-diretor da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e ex-presidente da AGERGS (Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto

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