20/08/2025 | 12h00

Opinião – Cofaturamento de serviços de saneamento básico na pauta do dia

Foto: Divulgação

Guilherme Reisdorfer*

O cofaturamento constitui mecanismo para viabilizar a cobrança conjunta de serviços distintos no setor de saneamento. Essa solução é usualmente cogitada para viabilizar base de remuneração mais ampla e estável para os serviços de manejo de resíduos sólidos e tem autorização legal (art. 35, § 1º, da Lei 11.445/07), mas é pouco aplicada na prática. Atualmente, estão em curso duas consultas públicas, da ANA (no 06/2025) e da ARSESP (no 05/2025) para disciplinar o tema. Consideram-se aqui especialmente as normas em discussão no âmbito da ANA.

O cofaturamento é um mecanismo que, se bem implementado, tem potencial de gerar múltiplos benefícios: 

(i) alivia o problema fiscal de municípios que arcam com a remuneração desse serviço e suportam maiores índices de inadimplemento da taxa de manejo de resíduos, quando cobrada junto ao IPTU;

(ii) favorece a sustentabilidade das operações de resíduos sólidos e reduz o risco político atinente à dependência do orçamento público; 

(iii) propicia maior equidade tarifária, ao ampliar a base pagante, e maior transparência aos usuários; e

(iv) mais do que benefícios segmentados, o cofaturamento concretiza uma lógica sistêmica, de integração de serviços públicos, apta a reduzir custos pela concentração dos processos de cobrança e ampliar a eficiência operacional como um todo. 

    Contudo, há dois grandes pontos sensíveis a serem endereçados: (i) os riscos e ônus operacionais atribuídos às concessionárias de água e esgotamento e (ii) as dificuldades inerentes à estipulação de novas cobranças junto à população.

    Quanto ao primeiro ponto, se o cofaturamento tem por objetivo ampliar a base de arrecadação para os serviços de manejo de resíduos, a questão da sustentabilidade econômico-financeira é fundamental também para as concessões que viabilizarão o cofaturamento. O cofaturamento pode suscitar a resistência de parte dos usuários ao pagamento de ambos os serviços faturados, ampliando o índice original de inadimplência dos serviços de água e esgotamento. Daí a pertinente previsão proposta pela ANA de que as receitas decorrentes do cofaturamento deverão “garantir a cobertura integral dos custos incorridos na prestação dos serviços de cofaturamento, incluindo encargos administrativos, operacionais, custo de capital e riscos associados” (art. 43, § 1º). 

    As receitas do cofaturamento são qualificadas na minuta da ANA como “receitas adicionais” – e, como tais, em tese sujeitas a compartilhamento dos ganhos, para fins de modicidade tarifária. Mas há duas peculiaridades: 

    (i) conforme o arranjo que seja adotado, como a base pagante de todos os serviços envolvidos no cofaturamento corresponde essencialmente ao mesmo universo de usuários, a eficácia do compartilhamento é limitada. Os custos operacionais em questão são internalizados no contrato de cofaturamento (a ser celebrado entre a operadora que presta o serviço de cofaturamento e aquela beneficiada) e é, grosso modo, repassado aos mesmos usuários na ponta final. Isso explica o art. 43, § 2º, limitar o compartilhamento “a até 5% (cinco por cento) da receita bruta obtida pela prestação dos serviços de cofaturamento”;

    (ii) trata-se de receita adicional sui generis, que se justifica não para fins meramente privados, mas para propiciar a integração de serviços de saneamento básico – e a realização desse fim público agrega riscos novos no âmbito das concessões que assumirão o cofaturamento.

      Ou seja, o cofaturamento não pode ser considerado como uma típica atividade acessória, de interesse particular. Por isso, o art. 47 dispõe que caberá reequilíbrio do contrato afetado caso haja “elevação persistente do índice de inadimplência dos usuários”, “em relação ao percentual médio de inadimplência observado nos 12 (doze) meses anteriores ao início do cofaturamento” (ou outro prazo de referência fixado em nível infranacional – § 1º). 

      Esse regramento reflete o risco subjacente ao cofaturamento, mas deixa perguntas em aberto: o que será considerado como elevação persistente do índice de inadimplência? Como o reequilíbrio contratual será implementado? 

      Se a normativa da ANA for mantida como está, haverá insegurança relevante e esses temas precisarão ser endereçados em nível infracional. Por se tratar de um novo fator de incerteza para as prestadoras dos serviços de água e esgotamento, sabendo-se das dificuldades enfrentadas pelo setor até mesmo para a aplicação de reajustes tarifários, seria adequado que a nova normativa já contivesse diretriz objetiva para determinar aos entes infracionais a estipulação de soluções concretas, como modos de reequilíbrio preferenciais (e com fontes de receita previsíveis) para recomposição célere e efetiva.

      De outra parte, o art. 47, § 2º, merece cautela quanto à exigência de demonstração do reequilíbrio. Prevê-se que deve haver comprovação de que o desequilíbrio “não pôde ser revertido após a adoção de medidas adicionais de cobrança e ocorreu exclusivamente devido à implementação do cofaturamento”. 

      A primeira parte da norma (exigência de medidas adicionais de cobrança) deve ser objeto de disciplina específica. A segunda parte deve ser considerada em termos razoáveis e não pode ignorar a realidade, que revela a possibilidade de concausas impactarem a receita tarifária em um mesmo momento. Por força do princípio da legalidade, a aplicação do regulamento que venha a ser editado deve ser compreendida segundo as normas gerais de causalidade vigentes, que indicam ser exigível não mais do que a prova de nexo causal adequado e suficiente para gerar o desequilíbrio, observando padrões técnicos para apuração das diferenças havidas. 

      Além disso, há uma questão prática: a sinalização de um rigor extremo em relação à prova de reequilíbrio pode inviabilizar o cofaturamento, visto que ele não pode ser imposto aos operadores: o art. 35, § 1º, da Lei 11.445/07 condiciona a sua implementação à anuência dos operadores envolvidos. Logo, o êxito da regulação depende do nível de segurança jurídica proporcionado aos operadores.

      A operacionalização do cofaturamento envolve duas relações jurídicas principais: (i) dos operadores entre si (ii) e dos operadores com os usuários.

      A relação dos operadores entre si assume natureza contratual e privada, sob a forma de um contrato de cofaturamento. Trata-se de exemplo de contrato regulado, a ser submetido à anuência da entidade reguladora infranacional (art. 48).

      O art. 49 da minuta prevê que o contrato deve dispor sobre todos os aspectos necessários para viabilizar o cofaturamento. Destacam-se as regras (i) para delimitação de obrigações e responsabilidades inclusive quanto aos riscos, notadamente quanto ao inadimplemento dos usuários, (ii) relativas a prazos, condições para repasse e segregação bancária e contábil dos recursos arrecadados e (iii) para atendimento ao usuário.

      Esse modelo evidencia a preponderância da vontade dos operadores na fixação das condições de cofaturamento e aponta para três funções principais do ente regulador: (i) de aferição da compatibilidade do contrato com as regras cogentes, sobretudo na interface com os usuários; (ii) de posição subsidiária em relação aos demais aspectos negociais de interesse direto dos operadores; e (iii) de compor e arbitrar conflitos que possam surgir, observada a prevalência dos mecanismos de resolução de disputas definidos pelas operadoras (art. 49, X).

       A outra relação jurídica envolve os usuários. Diante da histórica resistência à cobrança pelo manejo de resíduos sólidos – amplificada pelo fato de a inadimplência dos usuários não interromper a prestação dos serviços –, essa relação deve aliar regras tradicionais (como transparência e modicidade das cobranças, segundo os respectivos contratos) com elementos de economia comportamental. Para tanto, a ANA propõe soluções relevantes:

      • Sem prejuízo da identificação dos custos relativos a cada serviço, prevê-se a possibilidade de cobrança por código de barras único (art. 44, § 1º). A solução, que já tem sido adotada em alguns contratos, é vantajosa não apenas pela sua simplicidade e conveniência, mas porque o pagamento conjunto de serviços favorece o adimplemento do serviço cofaturado, em comparação às alternativas de cobrança autônoma ou junto ao IPTU.
      • Ainda considerando fatores comportamentais, há previsão acerca da implementação gradual da cobrança (art. 46) e referência à necessidade de o operador cofaturante elaborar e implementar “estratégia de comunicação clara, acessível e estruturada” aos usuários, a ser divulgada pelo menos 60 dias antes do início das cobranças (art. 48, § único). A estratégia de implementação gradual é relevante para favorecer a adesão inicial ao pagamento cofaturado e mitigar os riscos de inadimplemento.

      Por fim, há previsão que faculta ao usuário solicitar “(…) desmembramento ou retirada da cobrança dos serviços cofaturados, nos termos do contrato de cofaturamento ou regulamento (…)” (art. 44, § 2º). Essa cautela, norteada pela legislação consumerista, justifica a previsão de desmembramento das cobranças (como previsto na minuta da ARSESP – art. 7º). No entanto, a minuta da ANA alude também à “retirada da cobrança dos serviços cofaturados”, sem justificativa ou contrapartida. Desmembramento e retirada tendem a ampliar os índices de inadimplência em relação aos serviços cofaturados, o que demandará remédio específico.

      Em síntese, o cofaturamento constitui mecanismo com custos reduzidos de implementação e potencial de facilitar a adesão dos usuários e produzir eficiência sistêmica e melhoria dos serviços públicos à população. Mas o atingimento desses resultados pressupõe o tratamento equilibrado dos riscos envolvidos, especialmente daqueles introduzidos nas operações cofaturantes. Um caminho para lidar com as incertezas pode ser a admissão de soluções experimentais (sandboxes tarifários, como previsto na Resolução 966/2021 da ANEEL para o setor elétrico), de modo a possibilitar a operadores e reguladores buscar a testagem e o aprimoramento progressivo de alternativas.

      *Guilherme Reisdorfer é sócio da Siqueira Castro Advogados. Doutor e mestre em Direito do Estado pela USP.

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