Opinião

Opinião – Prorrogação da FCA: esticando a corda do mecanismo de conta vinculada

Lucas Navarro Prado*

A recente reabertura da Audiência Pública 12/2020 pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) levanta questões importantes sobre a prorrogação antecipada da concessão ferroviária da FCA (Ferrovia Centro-Atlântica S.A), especialmente no que tange ao uso inovador e potencialmente problemático do mecanismo de conta vinculada para promover investimentos cruzados. Embora o mecanismo tenha sido defendido pela ANTT como uma solução para garantir a execução de novos investimentos, a ausência de definição de tais investimentos levanta preocupações sobre sua legalidade e vantajosidade.

Projetos recentes previram contas vinculadas para reservar recursos passíveis de utilização em reequilíbrio econômico-financeiro tendo em vista os riscos assumidos pelo poder concedente, bem como cobrir eventual indenização decorrente do encerramento da concessão. Na experiência da ANTT, difundiram-se concessões rodoviárias com estrutura relativamente complexa de diversas contas vinculadas para cobrir riscos associados ao projeto, a exemplo de perdas decorrentes do free flow e do desconto para usuários frequentes, entre outros.

Esse movimento, porém, não é isento de críticas. As contas vinculadas muitas vezes são abastecidas por recursos que, até então, teriam sido direcionados à conta única do Tesouro Nacional a título de outorga. Tais recursos ficam represados em contas vinculadas de titularidade da concessionária para evitar que transitem pelo orçamento público.

Discute-se, nesse contexto, se estaríamos diante de um “orçamento paralelo”, ao arrepio do arcabouço jurídico-orçamentário em vigor, em particular, os princípios da unidade e universalidade orçamentária (art. 165, § 5º, da CF) e da unidade de caixa (art. 164, § 3º, da CF), a própria competência constitucional do Congresso Nacional para deliberar sobre orçamento público (art. 48, I e II, da CF) e o princípio de unidade de tesouraria (cf. art. 56 da Lei Complementar nº 4.320/1964 e art. 1º do Decreto nº 93.872/1986).

Em 2023, na análise dos processos de desestatização dos Portos de São Sebastião (SP) e de Itajaí (SC), o TCU (Tribunal de Contas da União) chegou a considerar juridicamente insustentável a manutenção de recursos oriundos de outorga em contas vinculadas sem a devida observância do arcabouço orçamentário (Acórdãos 244/2023 e 245/2023). O tribunal expressamente disse que “valores pagos pela concessionária e destinados a indenizações e reequilíbrios econômico-financeiros a cargo do poder concedente possuem natureza pública, não podem ser depositados em conta aberta e mantida pela Concessionária, tampouco utilizados ao arrepio do processo legislativo-orçamentário”.

O tema segue em discussão no âmbito do Processo nº 008.723/2023-0, aberto especificamente para tratá-lo de forma estrutural. A partir da análise dos autos, fica clara a defesa da União: recursos destinados às contas vinculadas não são de titularidade da União porque estão em conta bancária da concessionária; e essas contas vinculadas seriam fundamentais para assegurar a higidez financeira das concessões, permitindo que os reequilíbrios ocorressem em tempo hábil, sem depender da disponibilidade orçamentária.

A respeito do argumento formal de que os recursos seguem na titularidade da concessionária (enquanto depositados em sua conta bancária), parece ignorar o princípio de que a essência deve prevalecer sobre a forma. É simplório e inadequado olhar apenas para a titularidade da conta bancária para se concluir sobre o regime jurídico aplicável aos recursos nela depositados.

Se a licitante vencedora (ou a proponente no âmbito de uma prorrogação contratual) faz uma oferta ao poder concedente pelo direito de explorar uma concessão, o valor ofertado tem natureza de outorga e, portanto, implica o tratamento de receita orçamentária. Nesse caso, seria ilegal o recolhimento dessa receita em conta bancária de titularidade da concessionária, pois afronta o arcabouço jurídico-orçamentário em vigor.

A situação é distinta quando se estabelece no edital (ou no aditivo da prorrogação) a necessidade de a concessionária abastecer conta vinculada com valor específico, por exemplo, para (a) contemplar despesas de desapropriação / reassentamento de pessoas, (b) eliminar passivo ambiental ou (c) custear investimentos em resiliência climática, tudo no âmbito do próprio projeto. Nesses casos, existe (ou deveria existir) estimativa prévia, baseada em estudo técnico, sobre o montante a ser despendido. Os montantes destinados a essas finalidades claramente não se confundem com “valor de outorga” e, portanto, não há afronta ao arcabouço jurídico-orçamentário.

Na minuta do aditivo de prorrogação do contrato da FCA, está previsto o pagamento de 132 parcelas trimestrais de pouco mais de R$ 8 milhões cada, que seriam destinadas à conta vinculada para aplicação em eventuais reequilíbrios, indenizações ou investimentos cruzados. Não foi disponibilizado qualquer estudo técnico específico sobre o que se pretende fazer com esses recursos nem sobre eventuais riscos específicos que justifiquem o seu represamento.

Nesse contexto, parece-nos claro que existe um certo desvirtuamento do mecanismo da conta vinculada, o qual, nesse caso, apenas serve para driblar as regras do arcabouço jurídico-orçamentário, evitando que os recursos transitem pelo orçamento público.

Por mais louvável que seja a pretensão de assegurar recursos para cumprimento de obrigações contratuais do poder concedente e de ampliação do modal ferroviário na matriz de transportes do Brasil, as contas vinculadas não são instrumentos legítimos para blindar os órgãos setoriais da submissão ao procedimento jurídico-orçamentário típico. Também não podem ser pensadas como instrumentos de proteção contra o risco de não liberação dos recursos pelo Tesouro Nacional, em busca do equilíbrio fiscal.

A utilização das contas vinculadas para essas finalidades seria uma solução heterodoxa para problemas que não deveriam sequer existir em um país com maturidade institucional.

Nem se diga que o art. 25, § 1º, da Lei Federal nº 13.448 embasa juridicamente a pretensão de “orçamento paralelo” para financiar o aporte de recursos necessários aos novos projetos ferroviários. O investimento cruzado — previsto na referida norma — é instrumento para ampliar a vantajosidade da prorrogação, viabilizando a antecipação de investimentos em outras concessões ou até mesmo em projetos totalmente greenfield. Trata-se de exceção às regras gerais do arcabouço jurídico-orçamentário, pois permite ao Executivo implementar o desenvolvimento de determinadas obras sem ter que buscar prévio alinhamento com o Legislativo.

Por se tratar de “exceção” à regra geral, a possibilidade jurídica do investimento cruzado deve ser interpretada restritivamente, conforme princípio basilar da hermenêutica. Assim, não se devem admitir referências genéricas à possibilidade de investimento cruzado, até mesmo porque isso em nada contribui para o reforço da vantajosidade da prorrogação, servindo apenas de instrumento de burla do sistema jurídico-orçamentário.

Se não existe sequer a definição do investimento cruzado que se pretende implementar, muito menos seu projeto e orçamento, não há segurança de que será executado, muito menos que tal investimento possa ser antecipado em relação à alternativa de licitá-lo em separado.

Nesse caso, parece mais adequado que os recursos sejam dirigidos à conta única do Tesouro e, oportunamente quando houver a definição do investimento, a disponibilização de seu projeto e orçamento —, os órgãos competentes disponibilizem tais recursos na proposta orçamentária, em atenção ao disposto no art. 66 da Lei de Ferrovias, segundo o qual os valores arrecadados com outorgas e indenizações “devem ser reinvestidos em infraestrutura logística ou de mobilidade de titularidade pública”.

É recomendável, nesse contexto, que a ANTT revise o mecanismo de conta vinculada previsto na minuta do aditivo de prorrogação do contrato da FCA, seja para especificar os riscos que busca mitigar ou os investimentos cruzados que pretende implementar (com base em análise técnica, que contemple projetos e orçamentos), seja para deixar claro que os valores serão efetivamente recolhidos à conta única do Tesouro Nacional. Esse encaminhamento parece melhor alinhado ao arcabouço jurídico-orçamentário em vigor.

Se ANTT, por outro lado, insistir no modelo proposto nos documentos ora submetidos a consulta público, reforçará a imagem, aparentemente já existente no Tribunal (ao menos já manifesta pelo Ministro Walton em seu voto no TC 008.508/2020-8), de que as contas vinculadas cada vez mais são utilizadas de forma desvirtuada, para retirar recursos do debate orçamentário típico. Nesse caso, corre-se o risco de uma decisão do TCU mais dura, que acabe por inviabilizar o uso das contas vinculadas de forma geral, o que seria um retrocesso para o setor de infraestrutura. Vale a pena esticar a corda nesse nível?.

* Lucas Navarro Prado é advogado especialista em estruturação de negócios e soluções de litígios envolvendo ativos de infraestrutura no Brasil.

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