Marco Delgado*
Os debates sobre relação corpo e alma perpassam milênios e em diversas camadas da ciência, bem como das consequências desse dueto – quiçá duelo – nos dogmas religiosos. Há linhas de pensamento que estabelecem a dualidade dos elementos primários que distinguem o corpo da alma. Por outro lado, há uma miríade de abordagens que ovacionam a unicidade por equidade ou por hierarquia. Neste último caso, o corpo como instrumento das vontades da alma.
Não obstante, o objeto filosófico trazido para esse diálogo com o setor elétrico brasileiro é da inovadora ou reveladora acepção do escritor e diplomata francês Henri Bergson, laureado com o prêmio Nobel de Literatura de 1927. Em apertada síntese: independentemente da celeuma entre dualidade e unicidade há uma síntese entre o espírito (alma) e a matéria (corpo), a saber: a memória!
Destarte, o “corpo” do nosso setor elétrico pode ser compreendido pela integração física dos diversos sistemas de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. Neste quesito, fruto da racionalidade técnica, da viabilidade econômica e da competência e dedicação dos profissionais que planejam, operam e administram o setor, a eletricidade chega ao destino útil para ser convertida em produtos e serviços das atividades econômicas, bem como em conforto às famílias. Por sua vez, a “alma”, percebida como leis e regulamentos aplicados ao setor elétrico, está combalida e, para muitos, no limite do desencarnar. Se isso acontecer, o corpo decairá ou, neste contexto, apagará.
Para que a “alma” possa ascender novamente é inexorável ter memória: de que a política de subsídios ao carvão para fins energéticos tem sua revogação postergada desde o final do século passado; de que a redução dos preços das fontes renováveis, notadamente solar e eólica, caíram mais de 85% na última década e, por isso, são as fontes mais competitivas atualmente; e de que as regulamentações mais eficientes e modernas no âmbito internacional para micro e minigeração distribuída já reconheceram a missão cumprida dos subsídios como instrumento de incentivo. Porém, no Brasil, em posição diametralmente oposta, já é o maior epifenômeno de ineficiência e injustiça.
Em “Matéria e Memória” de Bergson encontramos uma passagem inquietante e pertinente a esta crônica: “[…] O último plano de nossa memória, a imagem extrema, é a ponta movente que nosso passado lança a todo momento em nosso futuro…”. Por isso, quanto mais o Parlamento usurpar as atribuições das instituições de regulação, de planejamento e de operação setorial, quanto mais benesses de subsídios e isenções ao arrepio da racionalidade e bom senso forem para as letras da lei, decerto, mais curtailment, mais desperdício e mais caras serão as tarifas de eletricidade que restarão aos consumidores. Além das lembranças dos fatos, espero que nosso Parlamento tenha uma consciência bergsoniana no trâmite da Medida Provisória 1.300/2025 a benefício da sociedade.
* Marco Delgado é doutor em Planejamento Energético e ex-conselheiro da CCEE (Câmara de Comercialização de Energia).
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