Gabriel Vasconcelos, da Agência iNFRA
As petroleiras donas de gasodutos submarinos e UPGNs (unidades de processamento), que permitem a chegada de gás natural do pré-sal ao mercado nacional, tentam um acordo com o governo sobre os termos dos futuros leilões de gás da União, a serem realizados pela PPSA. Isso pode balizar a relação com demais produtores privados no futuro. Fontes do setor e do governo dão conta de que o grupo de empresas liderado pela Petrobras, com Shell, Repsol e Galp, resiste a uma redução de mais de 70% nas tarifas cobradas pelo uso de suas instalações por terceiros interessados, conforme proposto pelo MME (Ministério de Minas e Energia) com base em nota técnica da EPE (Empresa de Pesquisa Energética).
Essas empresas questionam a condução técnica e legal da questão pelo governo. E, conforme apurou a Agência iNFRA, já consideram judicializar a questão se não for consensuado um patamar de tarifas calculado sobre outras premissas. A contrariedade e a disposição do grupo de ir à Justiça teriam sido mencionadas por executivos da Petrobras em reunião sobre o assunto na Casa Civil no início do mês. O impasse está por trás do adiamento da reunião do CNPE (Conselho Nacional de Política Energética), que chegou a ser marcada para 5 de agosto, mas foi adiada e ainda não tem nova data.
Na última terça-feira (12), representantes das petroleiras e do governo reuniram-se mais uma vez com os ministros da Casa Civil, Rui Costa, e do MME, Alexandre Silveira. Uma foto divulgada nas redes sociais de Silveira revela a participação da presidente da Petrobras, Magda Chambriard, da diretora de Transição Energética, Angélica Laureano, responsável pelo gás natural da companhia, e do gerente-executivo da área, Alvaro Tupiassu. Perto dos ministros, aparecem seus secretários-executivos, que acumulam cadeiras no Conselho de Administração da Petrobras, Bruno Moretti e Pietro Mendes.
Uma pessoa que esteve no encontro disse à Agência iNFRA que permanecem as divergências sobre os dados a serem considerados no cálculo das tarifas (valor da base de ativos e curva de capacidade, conforme detalhado a seguir), mas as empresas teriam se mostrado dispostas ao diálogo, no sentido de revisitar os números. Isso ainda não configura recuo, mas pode ser considerado um “avanço mínimo”, definiu o interlocutor.
As empresas donas dos ativos reclamam por não terem visto o que seria a resolução do CNPE preparada para o início do mês. “Não fomos consultados. É um item que preocupa toda a indústria. E, caso o governo tome a decisão de seguir em frente com isso, ir à Justiça é sim uma das opções que vamos ter de avaliar para proteger a estabilidade jurídica e fiscal das empresas”, afirma um alto executivo da parte das petroleiras.
Como exemplos negativos, ele cita as consequências da disputa judicial no setor elétrico decorrente da MP 579, do governo Dilma Rousseff, e as ações, mais recentes, das petroleiras contra a União sobre o imposto de exportação de petróleo, que ainda correm, mas já contam com vitórias para as empresas em 1ª instância.
‘Precedente’
Entre outros pontos, as petroleiras temem que o desconto vá além da PPSA e se estenda a outras empresas interessadas em acessar essas “infraestruturas essenciais”, o que é previsto na Nova Lei do Gás, de 2021. Essa sistemática deveria ser regulada pela ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), o que ainda não aconteceu. E, para acelerar esse acesso, ao menos para o gás da União, o governo incluiu na MP (Medida Provisória) 1.304/2025 a prerrogativa de o CNPE definir não só os preços de escoamento e processamento, mas também do transporte dos volumes a serem leiloados pela estatal PPSA.
Sozinhos, os leilões da PPSA, que devem começar na casa dos 200 mil m³ por dia e, nos próximos anos, alcançariam pouco mais de 3 milhões de m³ por dia, volume pequeno, relativamente à produção nacional, teriam, impacto limitado na receita do serviço das petroleiras donas das estruturas. Mas já existem emendas à MP 1.304 prevendo a extensão dos preços especiais da PPSA ao restante do mercado. Uma delas, do deputado Ubiratan Sanderson (PL-RS), altera o artigo 45 da MP para que a determinação do CNPE tenha caráter provisório até deliberação da ANP e seja aplicada “de forma isonômica para todos os agentes”.
“No conjunto de emendas, surgiram várias ideias que reforçam as nossas preocupações. Outros agentes podem entrar solicitando isonomia de tratamento e levar a discussão para muito além do gás da União. É a história do precedente”, diz outro interlocutor que fala pelas majors (petroleiras grandes) envolvidas. Os executivos também falam em “traços de ilegalidade” na MP 1.304, pela previsão de interferência do governo federal, via CNPE, em um assunto (tarifas de infraestrutura privada) que deveria ser conduzido de forma negociada pelas empresas interessadas ou arbitrado pelo regulador, a ANP, conforme a legislação vigente.
Discussão técnica
As empresas alegam ao governo que as premissas usadas para os cálculos das tarifas de escoamento e processamento pela EPE estão equivocadas. Recentemente, houve novo compartilhamento de informações por parte das petroleiras, detalhando o funcionamento dos equipamentos sob acordo de confidencialidade (NDA, na sigla em inglês). Fontes do governo afirmam que dados dessa natureza eram solicitados desde 2023 para municiar os modelos da EPE, mas sem sucesso, em uma espécie de “boicote parcial” ao trabalho de definição de tarifas menores que as atuais, capazes de incorporar a amortização dos investimentos. Frente ao resultado final da nota técnica da EPE, as empresas teriam finalmente decidido enviar informações mais detalhadas. Sua expectativa, agora, é que o mais recente intercâmbio de dados permita revisão para baixo dos cortes pretendidos.
“Alguns princípios usados pela EPE não são totalmente corretos, como o investimento feito nas infraestruturas, que foi três vezes superior ao valor que consideram, e a taxa de utilização. Consideram que, do momento zero até hoje, tem sido de 100% da capacidade, o que não é realidade e faz com que a tarifa futura calculada pelo modelo seja mais baixa. Agora as empresas estão falando com a EPE e tentando chegar a algum tipo de estudo teórico que chegue mais próximo da realidade”, diz um executivo do setor.
Uma fonte técnica do governo contesta com veemência, ao dizer que os valores adotados pela EPE para a base de ativos foram retirados de bases de dados consagradas pelo mercado, como S&P Global, e coincidem com outras, como as da Wood Mackenzie, além de contemplar diferentes cenários de capacidade.
De sua parte, o governo reconhece que as trocas estão acontecendo, mas o diagnóstico é que as empresas donas das instalações apenas resistem, tentando protelar uma “regulamentação justa” das tarifas, que viabilize o acesso das estruturas por outros produtores de gás e reduza o preço da molécula na ponta da cadeia. Não são esperadas, portanto, grandes modificações nos resultados, mesmo porque o IBP (Instituto Brasileiro do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) já tinha feito contribuições alinhadas às petroleiras reclamantes em consulta pública da EPE que antecedeu a publicação da nota técnica.
Governo irritado
Sobre o questionamento técnico das empresas, que apontam sobretudo uma subestimação do capex total, um segundo interlocutor do governo a par das discussões afirma que essa posição “coloca para dentro [do cálculo] todas as ineficiências” das empresas na etapa de construção. “Eles querem incluir [no capex] compras de equipamentos superfaturados. Fora que a Petrobras ficou dez anos construindo a Rota 3 e a UPGN ainda não está funcionando a contento. A sociedade não tem que pagar por isso”, diz.
O governo e a PPSA reclamam que petroleiras têm oferecido uma espécie de contrato de adesão, com cláusulas consideradas “abusivas e antieconômicas” pela empresa, motivo pelo qual não se chegou a um acordo negociado. Procurado, o diretor-presidente da PPSA, Luis Fernando Paroli, afirmou que, se a empresa tivesse assinado esses contratos por adesão, já estaria incorrendo em prejuízo à União. A lei, lembrou, já prevê que o acesso às infraestruturas essenciais precisa ser negociado e ter remuneração justa e adequada. “Abrimos negociação com a Petrobras e estamos evoluindo para criar condições contratuais mais favoráveis e diminuir as penalidades impostas nos contratos [que escalam as tarifas]”, disse Paroli.
O preço proposto pelas empresas proprietárias seguiria uma abordagem de “custo de oportunidade”, ou seja, o custo de construir um gasoduto alternativo, o que não encontraria paralelo na literatura para regulação de acesso a infraestruturas essenciais que servem a atividades consideradas monopólio constitucional da União, como produção de óleo e gás. A avaliação de uma fonte é que as empresas estão tratando o governo como “analfabeto” no tema.
É acompanhada, também, a situação de petroleiras que poderiam escoar o gás que produzem, mas optam por reinjetá-lo para escapar das tarifas associadas. A chinesa CNOOC teria experimentado o SIE em fevereiro de 2025 a uma tarifa de escoamento de US$ 16,70 por milhão de BTU para escoar um gás que vendeu no mercado a US$ 11 por milhão de BTU, tendo prejuízo. A tarifa considerada abusiva pelo governo tem a ver com penalidades relativas ao descumprimento do escoamento acordado, que estariam previstas em contrato. Já a Galp, embora tenha parte nos dutos, teria produção de gás superior em volume superior à sua capacidade nas infraestruturas e também estaria evitando o envio de volumes maiores de gás ao continente para evitar prejuízos.
O problema se repete fora do pré-sal. Em situação parecida na Bahia, o CEO da Brava Energia, Décio Oddone, já reclamou da falta de acesso a infraestruturas de processamento de gás operadas pela Petrobras, de quem é sócia no campo de Manati (Bacia de Camamu), com 45% de participação. “Hoje a gente injeta gás que a gente produz na Bahia por não ter acesso a uma UPGN que está ociosa”, disse Décio em evento da Fiesp (Federação das Indústrias de São Paulo). Na avaliação do governo, mais do que servir à produtividade dos campos, o alto grau de reinjeção de gás natural teria a ver com as dificuldades de acesso e as tarifas altas das infraestruturas.
Números
A metodologia da EPE observa os seguintes itens: remuneração do investidor (medida pela multiplicação de uma taxa de retorno pelo valor remanescente da base de ativos); depreciação do ativo; ajustes de inflação; despesas operacionais (opex); necessidade de capital de giro; e impostos. Tudo é projetado para o período remanescente do prazo de 27 anos de operação das estruturas. Os preços são calculados para cada uma das instalações, e conjuntamente para os Sistemas Integrados de Escoamento e Processamento (SIE e SIP), sendo apontados para diferentes cenários, de acordo com a capacidade de processamento (100%, 80% e 60%) e variações no valor dos ativos, de 50% abaixo e 100% acima do caso base. Quanto menor a capacidade operada e maior o investimento calibrado no modelo, maiores as tarifas resultantes.
Na média do SIE, que reúne os dutos de Petrobras, Shell, Galp e Repsol (Rotas 1, 2 e 3), o caso base parte de uma capacidade total de 44 milhões de m³ por ano, sendo o remanescente para o horizonte de 27 anos de US$ 1,92 bilhão e opex de US$ 988 milhões, a EPE chegou a um preço de US$ 1,39 por milhão de BTU no primeiro ano, 2025, que cai a US$ 0,60 por milhão de BTU em 2051, com aumentos pontuais ligados a investimentos em manutenção das estruturas.
Já no SIP, que reúne as unidades de processamento de gás nos três polos de propriedade da Petrobras no Rio (Cabiúnas e Boaventura) e em São Paulo (Caraguatatuba), o caso base parte de uma capacidade de processamento inicial total de 63 milhões de m³ por dia, com capex remanescente de US$ 1,5 bilhão e opex de US$ 1,31 bilhão, o que implica em tarifas de processamento de US$ 0,84 por milhão de BTU neste ano e US$ 0,52 no último dos 27 anos projetados.
Se o CNPE adotar os valores, ao menos para o gás da União, essas duas etapas da formação de preço – escoamento e processamento – veriam um recuo de 74% se considerados cálculos em cima da situação do mercado em 2023, usados pelo MME em apresentação recente, sobre o programa Gás Para Empregar. Trata-se de queda do valor então praticado de US$ 8,58 para US$ 2,23 por milhão de BTU.
Segundo o diretor de gás natural da Abrace Energia (Associação dos Grandes Consumidores de Energia), Adrianno Lorenzon, essa queda percentual seria um pouco maior hoje (76%), já que os custos e margens das operadoras das estruturas estão em uma média de US$ 9,22 por milhão de BTU. O governo ainda estima queda de preço na boca do poço e uma redução considerável na etapa de transporte – em revisão tarifária pela ANP –, que poderiam reduzir o preço final do gás em mais de US$ 9,00 por milhão de BTU.








