Reforma tributária: bala de prata e chance de ouro

Marcelo Araújo*

É chegada a hora do Brasil enfrentar um dos dois principais fatores que nos têm condenado ao baixo crescimento nas últimas décadas. Ao tempo que o gigantesco gap de educação exclui grande parte de nossa mão de obra do mercado qualificado de trabalho, limitando a esperança, a produtividade e a inovação, a extrema complexidade e ineficiência do nosso sistema tributário limita a produtividade de nossas empresas, impõe um enorme custo de arrecadação e fiscalização ao Estado e estimula uma cultura de sonegação que vai corroendo o tecido social, os nossos valores e a nossa chance de ser uma sociedade mais justa e digna para todos os brasileiros. 

Alguns dados são quase inacreditáveis. Segundo o Diagnóstico Judicial Tributário Brasileiro de 2022 realizado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em parceria com o Insper, o contencioso tributário chega a R$ 5,4 trilhões de reais, o que significa 75% do nosso PIB (Produto Interno Bruto). E mais, o Brasil concentra 99% dos processos judiciais tributários dentre as empresas transnacionais que aqui operam. 

Em outro ponto de vista, estudo do Banco Mundial aponta que no Brasil as empresas gastam 1.500 horas anuais para administrar o pagamento de tributos, contra 330 na média da América Latina e Caribe e 159 na média dos países de renda elevada integrantes da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). 

Segundo disse recentemente a ministra do Planejamento, Simone Tebet, o novo arcabouço fiscal é uma bala de bronze, e a reforma tributária, essa sim, uma bala de prata. 

É fato que dados como os acima são de amplo conhecimento da sociedade há muitos anos, mas neste momento temos uma verdadeira chance de ouro para avançarmos na reforma. Temos um novo governo e uma nova legislatura que se iniciam com amplo diálogo e capacidade de articulação em um país refém da falta de oportunidades e crescimento, que clama por mudanças. No front externo, vemos um cenário global com desafios geopolíticos e energéticos e uma intensa transformação tecnológica que nos tira de qualquer zona de conforto. Mas o mais importante, temos uma agenda concreta de trabalho. 

Desafios não faltarão. A simplificação, o não aumento da carga e a máxima neutralidade possível entre entes federativos e segmentos econômicos são os saborosos pratos a serem equilibrados. A competente equipe técnica liderada pelo secretário extraordinário para Reforma Tributária, Bernard Appy, fará sua parte, propondo o que de mais viável, consistente e avançado conseguimos enxergar das melhores práticas tributárias do mundo ajustadas à nossa realidade. 

A seguir, as distintas instâncias de governos farão suas contribuições refinando o projeto e, por fim, o Congresso e estados debaterão com os segmentos profissionais e empresariais, já em cima de uma proposta concreta. Por óbvio se assume que será necessária grande abertura e flexibilidade de todas as partes, pois não se fará essa omelete sem a devida quebra de alguns, ou muitos, ovos. 

Na dimensão de impostos sobre o consumo, as discussões das PECs 45 e 110 e os estudos do governo têm convergido para um consenso de pontos importantes em torno de um imposto geral do tipo IVA, tributado no destino, com mecanismos de créditos na forma da não cumulatividade plena, para evitar a incidência em cascata, sistema multifásico com ampla base de incidência para a grande maioria dos produtos, com poucas exceções monofásicas em casos de cadeias longas, alta tributação e sensíveis à sonegação em grande escala e desoneração de exportações e investimentos. Discutem-se ainda mecanismos de transição e impostos ou alíquotas seletivas para produtos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. O caminho parece estar bem delineado e os benefícios serão imensos.  

Um exemplo do que se pode esperar dessa reforma poderá ser visto nos próximos meses no setor de combustíveis, com a regulamentação da nova sistemática do ICMS para gasolina, diesel e GLP (gás liquefeito de petróleo), prevista pela LC (Lei Complementar) 192/2022. A cobrança em uma única etapa da cadeia, com uma alíquota fixa por litro e única em todo o território nacional, a um só tempo, reduz o custo de apuração, arrecadação e fiscalização, fecha portas para sonegação, traz eficiência ao sistema logístico e reduz a volatilidade dos preços finais ao consumidor. 

Já nos primeiros meses, espera-se reduzir pela metade os R$ 14 bilhões por ano estimados em sonegação do setor e obter ganhos anuais de R$ 618 milhões no custo logístico, o que será repassado ao consumidor. Com melhora na arrecadação, os estados poderão gerenciar a transição e optar por ampliar seus serviços à população ou reduzir as alíquotas no tempo, com impacto positivo para a economia como um todo.

A reforma ainda não está completa, pois PIS, Cofins e Cide ainda não estão integrados e simplificados da mesma forma, mas claramente já nos afastamos do risco de caminhar na direção da situação que o setor enfrenta no México, onde crimes fiscais, roubos e fraudes em combustíveis ganhou até um apelido: “huachicol”. O SAT (Serviço de Administração Tributária) do México estimava em 2021 que 21,2% do mercado de gasolina do país era ilegal. Lá também começa a atacar esse problema endêmico com simplificação tributária e desoneração de importações. 

São exemplos como esse que nos autorizam a crer possíveis os diversos estudos que apontam o enorme potencial de criação de riqueza que derivaria de uma bem sucedida reforma tributária. Estudo do CCiF (Centro de Cidadania Fiscal) estima, em um cenário conservador, que o PIB brasileiro pode crescer adicionais 12 pontos percentuais nos próximos 15 anos, o que significaria a valores de hoje R$ 1,2 trilhão de reais, ou R$ 481,00 por família por mês, e gerar 7,5 milhões de empregos. Em um cenário otimista, as mesmas simulações mostram que o crescimento pode chegar a 20% a partir do aumento da produtividade total dos fatores, da competitividade das exportações, do aumento de investimentos em ativo fixo e crescimento do estoque de capital no país.

Estudos e simulações são sempre passíveis de debate em seus modelos ou premissas, mas creio que a esta altura, não vamos encontrar na gestão pública, na academia ou no setor privado quem não veja nosso intrincado modelo tributário como um dos principais entraves ao nosso sucesso como país e sociedade. Em uma democracia como a que queremos, visões diferentes são mais que esperadas, são desejadas, mas, ao fim, há que prevalecer a convergência em torno do bem maior que é ver nossa sociedade viver com mais dignidade e menor desigualdade.  

O contexto era a pandemia em 2020, mas creio caber extraordinariamente bem aqui a frase do secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), António Guterres, que tomo a liberdade de traduzir livremente: “Vamos sucumbir ao caos, à divisão e desigualdade, ou vamos corrigir os erros do passado e nos mover em frente juntos, por um bem maior para todos?” 

*Marcelo Araújo é diretor-executivo corporativo e de participações do Grupo Ultra e presidente do conselho de administração da Associação Brasileira de Downstream do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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